2 de novembro de 1975, o Príncipe Juan Carlos em El Aaiún: "nunca os abandonaremos..." |
Diego Camacho López-Escobar, o autor do artigo, é coronel
do Exército espanhol, diplomado em Operações Especiais, licenciado em Ciências
Políticas e membro da Comissão Diretiva da APPA (Asociación para el Progreso de
los Pueblos de África).
Realizou diversas missões de Inteligência e Cooperação
na Guiné Equatorial, Costa Rica, Marrocos e França. É co-autor com Fernando J.
Muniesa do livro: “La España otorgada” (Anroart Ediciones, 2005). Pertenceu à
direção do Centro Superior de Información de la Defensa (CESID) (Serviços
Secretos do Estado espanhol). Ver
entrevista neste blog.
O saída e o abandono do Sahara foi, para Espanha, a
principal causa do seu desprestígio internacional durante o último terço do
século XX. Nenhuma potência colonial, depois de 1945, promoveu uma negligência
semelhante da sua responsabilidade em relação a uma população colonizada como a
que o nosso país fez com os saharauis, que um dia tiveram a nossa nacionalidade
e o seu território foi declarado como província espanhola. Passados mais de 35
anos de abandono, os nómadas ainda não conseguiram concluir o processo de autodeterminação,
a que segundo a lei internacional têm direito.
Hassan II aproveitou da melhor maneira, nos últimos dias da
vida do General Franco, a debilidade que o Estado espanhol apresentava, causada
principalmente pela insegurança da sua classe política no momento de assumir o
poder e as responsabilidades do Estado. Para os que pertenciam ao regime que
então agonizava, tratava-se de o conservar sem perder legitimidade; e para os
que chegavam, tratava-se de o tomar sem provocar uma rutura social. A classe
política espanhola estava com um olho na sucessão da Chefia de Estado e nos
problemas que colocava a articulação de um novo regime político. A Guerra Fria,
o Magrebe e o destino dos habitantes do Sahara não estavam entre as suas
preocupações mais prementes. Mas, para os EUA, o Sahara vai constituir uma peça
essencial para alcançar a estabilidade regional, mas sobretudo o controlo sem
sobressaltos do Mediterrâneo.
O Secretário de Estado dos EUA, Henry Kissinger |
Vernon Walters, Chefe da CIA |
A análise geoestratégica que Henry Kissinger e Vernon
Walters realizam a partir do Departamento de Estado e da CIA são coincidentes e
muito favoráveis para Marrocos nos seus interesses regionais de curto e médio
prazo. Espanha, ocupada noutros assuntos de carácter interno, não vai dar à
questão a importância que tem e nem sequer vai estar ciente do desgaste
internacional que isso lhe irá causar, ao não encontrar uma saída válida capaz
de conciliar a legalidade internacional com os interesses que, então, apoia a
Casa Branca.
Os elementos que os analistas americanos manipulam para recomendar
uma linha de ação são de grande complexidade política pelo risco envolvido na
situação regional existente e para defender o seu principal objetivo no sul da
Europa, que não é outro que o Estado de Israel. São os seguintes:
1º - Os acontecimentos políticos em Portugal, na sequência da
Revolução dos Cravos, abrem uma dúvida quanto ao seu papel na NATO. Isto é, se
a abertura à liberdade vai significar apenas isso ou se, pelo contrário, vai
significar algo mais, como seria a hipótese no cenário mais perigoso a uma
aproximação à URSS. Neste último caso, a operacionalidade futura da base dos
Açores estaria em perigo e, em consequência, o controle seguro sobre o Estreito
de Gibraltar.
2º - A incerteza provocada pela doença do general Franco em
Espanha, aumenta o risco de instabilidade no norte do estreito pela incerta mudança
de um regime político que levava quase 40 anos no poder. O sucessor na Chefia do
Estado, o Príncipe Juan Carlos, é aceite com grande relutância pelas principais
famílias do regime de Franco; é recusado de início pela Esquerda que o apelida de
"o breve" devido à sua falta de legitimidade democrática, por ter
sido escolhido a dedo pelo ditador, e tão pouco ser aceite pelo seu pai, Don
Juan, legítimo sucessor da dinastia da Casa de Bourbon.
3º - A tradicional aspiração da Argélia, firme aliada da
URSS, de alcançar a costa do Atlântico para alcançar a hegemonia no Magreb,
seria facilitada com a criação de um novo país, entre Marrocos e a Mauritânia
que, por ser politicamente dependente de Argel, abriria o desejado corredor para
o Oceano Atlântico.
4 °- A riqueza em fosfatos e petróleo que o Sahara possui.
Marrocos e os EUA. São os maiores produtores mundiais de fosfatos e a partir do
ácido fosfórico pode obter-se urânio. Permitir o acesso a essas reservas
estratégicas pela Argélia pressupunha facilitar uma maior penetração da URSS em
África.
5º - A debilidade política que atravessa Marrocos. Em 1971, tem
lugar um levantamento militar com o assalto ao palácio de Skirat e que tem um
saldo de 100 mortos, na sua maioria diplomatas e membros da Corte; e, em 1973,
o ministro do Interior, o general Ufkir, encabeça outra intentona para acabar
com a vida do rei durante sua viagem de retorno de Paris. Qualquer acontecimento
que tivesse lugar na região e fosse desfavorável a Marrocos, no equilíbrio que Rabat
mantinha com Argel pela hegemonia no Magreb, poderia ter repercussões negativas
para a estabilidade política do trono e aos interesses norte-americanos e
franceses.
Todos esses fatores vão convergir na necessidade estratégica
de garantir a estabilidade no Mediterrâneo Ocidental, que permita a liberdade
de movimento da Sexta Esquadra, peça essencial para manutenção dos interesses
dos EUA no Médio Oriente. Estabilidade para a qual se avaliam os riscos que
colocariam, por um lado, a instabilidade política existente em Espanha e em
Portugal e, por outro, um eventual reforço da Argélia em detrimento de
Marrocos. Para Kissinger, a hipótese mais perigosa era que a instabilidade da
Península Ibérica acabasse por se materializar e que, simultaneamente, o fortalecimento
de Argel desequilibrasse o trono alauita e a correlação de forças existente no
Magrebe, permitindo a expansão soviética na região. A decisão dos EUA era
sustentada por critérios objetivos e um pragmatismo político em que, como é
evidente, se sobrepunham os seus interesses de controlo militar a qualquer
consideração de direito internacional.
Tendo em conta a avaliação anterior, a linha de ação que o
Secretário de Estado propõe ao presidente Ford é reforçar Marrocos militar e
economicamente, com a ajuda da França, para garantir assim a sua estabilidade
política interna, a partir da qual pudesse exercer o controlo absoluto da costa
atlântica e do Norte de África, caso a mais
perigosa das hipóteses viesse a ocorrer. A partir desse momento, a "Marcha
Verde" já só será apenas um problema logístico pois a decisão de a
realizar já havia sido tomada como a melhor forma de materializar a linha de
ação adotada. Foi organizada por agentes da CIA com o dinheiro do Kuwait, uma
vez conseguido que o governo espanhol não coloque problemas. É interessante assinalar
que, ao ser questionado pelo seu presidente sobre o conteúdo do parecer do Tribunal
Internacional de Haia, Kissinger lhe tenha respondido que o dictamen tinha sido
favorável a Marrocos, o que era uma mentira, em relação às duas questões de
fundo que tinham sido colocadas ao Tribunal pela Assembleia Geral da ONU e,
dessa maneira, o Secretário de Estado contornava o obstáculo que poderiam
representar as reservas morais e mentais de um Presidente que teve de
substituir Nixon na sequência do escândalo Watergate, e cuja insegurança pessoal
era o traço mais marcante do seu caráter.
O maior obstáculo espanhol reside na personalidade do
próprio Franco que não é, por princípio, favorável e permitir pressões ou
chantagens do vizinho do sul. Quando informado por Arias Navarro, num dos seus
momentos de lucidez durante o seu internamento no Hospital Gregorio Marañón, em
1974, chega a ordenar a declaração de guerra a Marrocos. Poucos minutos depois
volta de, novo, a entrar em crise e Arias, com a colaboração com de Carro e Solís,
não cumprem a ordem do General e apressam-se a seguir as instruções do
"amigo americano" para abandonar o Sahara. Anteriormente, o ministro
das Relações Exteriores, Cortina Mauri, partidário de resistir à pressão marroquina
foi removido da sua responsabilidade em relação a esta matéria, a qual passou a
ser assumida pelo ministro do Trabalho Solís Ruiz, que além do seu cargo ministerial
estava incumbido também de representar os interesses económicos do Rei de
Marrocos em Espanha.
A maior ignomínia da política externa espanhola desde as
abdicações de Bayona, por Fernando VII e Carlos IV a favor de Napoleão, teve
lugar no palácio de Marraquexe. Pela parte espanhola o ministro da Presidência Carro,
por Marrocos Hassan II. Este último só consentiria parar a "Marcha
Verde" quando o ministro espanhol acedesse a solicitá-lo através de uma
carta cujo texto seria ditada pelo próprio sultão!
O Príncipe Juan Carlos, como chefe de Estado interino, também
não tem um papel airoso durante estes dias. Realiza uma viagem relâmpago a El
Aaiún, onde convence com facilidade os comandantes militares da firmeza do
governo e da necessidade de se manterem firmes. Enquanto negociava com Hassan
II — usando os bons ofícios de Vernon Walters — a retirada das tropas
espanholas e a anexação da antiga província espanhola pelo reino alauita. A
verdade é que, aproveitando a sua influência sobre os militares, o Príncipe faz-lhes
acreditar que aquilo que eles desejam é também o que o governo quer, ocultando-lhes
a realidade dos factos.
A Marcha Verde |
A atitude do Príncipe é motivada pelo quadro estratégico
descrito, que é o fator determinante, e a necessidade imperiosa de contar com o
apoio norte-americano e francês para tomar posse do trono. Para estes dois
países, a estabilidade de Marrocos, em 1975 não era uma questão negociável e,
por isso, se Juan Carlos necessitava do apoio internacional para assegurar o
poder em Espanha, não poderia seguir outro caminho que não fosse o que ditavam Washington
e Paris. É evidente que a solução que favorecia as ambições marroquinas constituía
uma violação em toda a linha do espírito e da letra da Carta de São Francisco,
que foi o germe do nascimento da ONU, no final da Segunda Guerra Mundial.
A dívida contraída para com os saharauis para assegurar o
trono espanhol, tornava claro que as promissórias iriam ser pagas pela nação
espanhola, ao longo dos anos, na forma de prestígio internacional.
Se do ponto de vista da práxis política a traição de 1976 pode
ser entendida, ainda que não compartilhada; o desprezo dos sucessivos governos
espanhóis em continuar a apoiar a pilhagem do Sahara, a violação sistemática
dos Direitos Humanos e o incumprimento do Direito Internacional, à custa da
nossa reputação, é muito mais difícil de explicar em 2012, uma vez que já não
podem ser argumentadas razões geoestratégicas ou de defesa de uma transição. Há
apenas uma explicação: a dos interesses pessoais criados ao longo destes anos
entre os dois países; o sultão pagando a fatura e muitos espanhóis a receber por
trabalharem para ele. O Rei de Espanha, que tem uma dívida para com o povo
saharaui, ainda não a pagou, e é, talvez, o maior beneficiário desta situação… e
agora não pode atribuir à instabilidade do trono. Espanha não pode ir bem se o
seu prestígio é inversamente proporcional ao benefício material que obtém a Coroa
em relação ao Marrocos, a longo prazo tão pouco é um bom sinal para a
monarquia.
Pelos Acordos de Madrid, a Espanha cedeu a administração do
Sahara a Marrocos e à Mauritânia, com o compromisso das novas potências ocupantes
organizarem um referendo em que os saharauis pudessem escolher o seu destino.
Uma vez abandonado o território pelo nosso país, começou uma guerra de
resistência liderada pela Frente Polisário, que impede o controlo territorial
efetivo e leva a Mauritânia a abandonar o território, em 1979, que é ocupado
por Marrocos. A ONU tomou conhecimento dos acordos, como foi confirmado pelo
seu Secretário-Geral, Kurt Waldheim, e os EUA só contemplavam a anexação final
por Marrocos, mas sem questão de tempo. Embora nunca tenham reconhecido a
mudança da titularidade da administração do território, que continua a recair
sobre Espanha.
Diego Camacho López-Escobar, Ver
entrevista neste blog.
Fonte: Espacios
Europeos
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