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| Sidi Mohamed Omar, embaixador do Frente Polisario na ONU |
O
'Público' (Espanha) fala com o representante da Frente Polisario junto da ONU
e coordenador junto da MINURSO no 50º aniversário da Marcha Verde.
Emilia
G. Morales Madrid-07/11/2025 | Publico
O
50.º aniversário da Marcha Verde de Marrocos sobre o Sahara apanhou
as partes na mesma posição de há décadas. Desde que, em 1991, a
ONU estabeleceu a sua folha de rota para o referendo de independência
da antiga colónia espanhola — através da MINURSO (Missão das
Nações Unidas para o Referendo no Sahara Ocidental) —, o boicote
de Marrocos impediu qualquer avanço na sua concretização.
Pelo
contrário, no passado 31 de outubro, a resolução do Conselho de
Segurança da ONU que deveria renovar o mandato da MINURSO propôs
como ponto de partida para as negociações sobre o referendo de
autodeterminação o plano marroquino para o Sahara.
Esta
mudança de narrativa deu novo fôlego às ambições expansionistas
de Rabat e aprofundou a desproteção do povo saharaui, já
fragilizado pelo apoio do governo de Pedro Sánchez ao plano
marroquino em 2022. O Público falou sobre estas questões com Sidi
Mohamed Omar, embaixador do Frente Polisario na ONU e coordenador
junto da MINURSO, quando se cumprem cinco décadas do deslocamento
forçado da população saharaui do seu território histórico.
“Os
EUA tentaram impor a sua posição nacional sobre o Sahara”
Quais
são, na sua opinião, os aspetos mais lesivos da última renovação
da MINURSO aprovada pelo Conselho de Segurança a 31 de outubro?
Porque acha que o Conselho mudou agora a sua posição sobre o plano
de Marrocos?
É importante sublinhar que a última resolução
adotada pelo Conselho de Segurança sobre a MINURSO — a resolução
2797 (2025) — foi o resultado de longas e intensas negociações
entre os seus membros, uma vez que os Estados Unidos procuraram
simplesmente impor a sua posição nacional através do projeto de
resolução que apresentaram como penholder (redator principal) das
resoluções sobre a MINURSO.
Como se sabe, os EUA tomaram uma
decisão sobre o Sahara Ocidental em 2020, durante a administração
do presidente Donald Trump, decisão reafirmada em abril de 2025. A
França também adotou uma posição semelhante no ano anterior.
Naturalmente, vários membros do Conselho — incluindo membros
permanentes — opuseram-se firmemente à abordagem unilateral dos
EUA, apoiada por França, e insistiram na necessidade de uma
resolução equilibrada, coerente com a Carta das Nações Unidas e
com as resoluções anteriores sobre o Sahara Ocidental.
É
certo que o Conselho menciona a “proposta” de Marrocos como “uma
base” para negociações, mas não a estabelece como “a única
base”. Além disso, acolhe com agrado outras propostas e ideias
para alcançar uma solução definitiva. O mais importante é que
reafirma que a solução deve ser mutuamente aceitável para ambas as
partes — o Frente Polisario e Marrocos — e que deve garantir a
autodeterminação do povo saharaui.
“A
proposta marroquina é juridicamente inaceitável”
Pode
explicar aos leitores qual é o problema de incluir o plano
marroquino como ponto de partida para resolver a questão do
Sahara?
Como confirmado pelo Tribunal Internacional de
Justiça, pelas resoluções da Assembleia-Geral da ONU e por
tribunais africanos e europeus, Marrocos não exerce soberania nem
tem mandato administrativo sobre o Sahara Ocidental. Há, pelo menos,
quatro razões que tornam a sua “proposta” totalmente inaceitável
do ponto de vista jurídico e político.
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Marcha Verde, a invasão civil e militar marroquina da colónia espanhola do Sahara Ocidental - 06 de novembro de 1975 . Foto AFP |
Em primeiro lugar,
Marrocos é apenas uma potência ocupante do território, que
continua a ser um caso de descolonização. Por essa razão, não
pode conceder “autonomia” nem qualquer outro “estatuto
territorial” ao Sahara, pois isso violaria o estatuto internacional
do território e as resoluções pertinentes da ONU.
Em segundo
lugar, a proposta compromete o direito do povo saharaui à
autodeterminação, pois pré-determina o resultado da consulta ao
restringi-lo a uma única opção — a “autonomia”. Isso
equivaleria a Marrocos decidir em nome do povo saharaui, algo
incompatível com o direito internacional.
Em terceiro lugar, o
plano elimina a opção da independência, que sempre foi a principal
reivindicação do povo saharaui sob liderança do Frente
Polisario.
E, em quarto lugar, trata-se de uma proposta
extremamente perigosa, pois não só inviabiliza uma paz justa e
duradoura, como recompensa Marrocos pela ocupação ilegal do Sahara
Ocidental através da força. Tal criaria um precedente muito grave
em África e no mundo. Por tudo isto, a “proposta” marroquina,
que não passa de uma farsa, não pode servir de ponto de partida
para resolver a descolonização do Sahara Ocidental — nem hoje,
nem amanhã, nem nunca.
A
Argélia não se absteve — recusou participar na votação”
A
Argélia foi vista como tendo vetado a resolução ao não votar.
Concorda? E como estão as relações com Argel?
Na
realidade, a Argélia não se absteve; optou por não participar na
votação, o que é diferente. Como explicou o seu representante
permanente na ONU, a Argélia quis assim marcar distância de um
texto que não reflete fielmente a doutrina da ONU sobre a
descolonização.
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Manifestantes saharauis em El Aaiun, poucos dias antes da Marcha Verde. |
As relações entre a Argélia e a República
Árabe Saharaui Democrática (RASD) são excelentes, como sempre
foram. Fiel à sua história e princípios, e como defensora do
direito dos povos à autodeterminação e à liberdade, a Argélia
foi um dos primeiros países a apoiar a luta de libertação saharaui
— apoio que continua a prestar de forma generosa, em conformidade
com as resoluções da ONU desde a década de 1970.
“A
ONU continua a ser o fórum legítimo”
A
ONU continua a ser um espaço válido para resolver o conflito?
Procuram outras vias diplomáticas?
A Carta das Nações
Unidas é a “constituição suprema” do mundo, e a organização
continua a ser a garante do direito internacional. Por isso, a ONU
mantém plena validade como foro para resolver a questão do Sahara
Ocidental, que é essencialmente um processo de descolonização
inacabado.
A solução baseia-se no exercício do direito
inalienável à autodeterminação e independência por parte do povo
saharaui, através de um referendo livre e justo sob supervisão
internacional.
“Se
a diplomacia falhar, recorreremos a todos os meios legítimos”
Se
a via diplomática falhar, o que resta ao Frente Polisario?
Como
aprendemos nos estudos sobre paz e conflitos, as guerras eclodem
geralmente quando a diplomacia falha. O povo saharaui e o Frente
Polisario continuam a optar pela paz e pela via diplomática, tendo
feito enormes sacrifícios por uma paz justa e duradoura.
Mas o
nosso povo está firmemente comprometido com o seu direito
inalienável à autodeterminação, e continuará a usar todos os
meios legítimos para defender os seus direitos e resistir à
ocupação ilegal de Marrocos.
“Trump
violou a Carta da ONU”
Como afetaram as
políticas de Obama e Trump a causa saharaui?
A decisão
tomada por Donald Trump, em 10 de dezembro de 2020, foi um verdadeiro
quid pro quo, e é lamentável porque viola a Carta da ONU e as
resoluções que os próprios EUA redigiram e aprovaram nas últimas
décadas.
Esta posição rompe com a política tradicional
americana sobre o Sahara e com o respeito histórico dos EUA pelo
direito à autodeterminação, consagrado na sua própria
Constituição. O resultado é o enfraquecimento dos esforços da ONU
e o encorajamento do regime marroquino, agravando as tensões dentro
e fora da nossa região.
“Mantemos
diálogo aberto com todos, exceto França”
Qual
é a relação atual do Frente Polisario com Rússia e
China?
Mantemos contactos diretos e abertos com todos os membros do Conselho de Segurança, incluindo os cinco permanentes — com exceção de França, por razões óbvias.
As nossas
relações com Rússia e China baseiam-se na defesa comum dos
princípios da Carta da ONU, da resolução pacífica dos conflitos e
do direito dos povos à autodeterminação. Ambos os países
reafirmaram recentemente esta posição ao abster-se na votação da
MINURSO, sublinhando a necessidade de uma solução mutuamente
aceitável que garanta a autodeterminação do povo saharaui.
“Sahara
e Palestina são espelhos da descolonização falhada”
Que
paralelismos vê entre os casos do Sahara e da Palestina?
Existem
muitos paralelismos. Ambos os povos sofrem ocupação estrangeira,
ambos têm direito reconhecido à autodeterminação, e ambos
enfrentam potências ocupantes que cooperam para consolidar a sua
presença ilegal.
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| Elemento da MINURSO com populares saharauis - Foto ONU |
Sofremos políticas de terra queimada,
colonização, deportações, violações de direitos humanos e
pilhagem de recursos naturais. Em suma, somos dois povos que apenas
procuram justiça, liberdade e dignidade nas suas próprias terras.
“A
viragem de Sánchez foi deplorável”
O
governo espanhol tem sido crítico de Israel, mas evasivo quanto ao
Sahara. Há diálogo com Madrid?
A nossa posição sobre a
mudança de postura do governo espanhol é bem conhecida: foi
deplorável. Viola o direito internacional aplicável ao Sahara como
caso de descolonização e rompe o consenso histórico entre forças
políticas espanholas sobre esta questão.
Além disso,
contradiz a responsabilidade jurídica e moral de Espanha, que
continua a ser, segundo o próprio direito espanhol e a doutrina da
ONU, a potência administrante do Sahara Ocidental. Não posso
confirmar se houve conversações recentes com o governo espanhol,
mas mantemos o tema ativo através dos nossos representantes no país.
“Os
refugiados não querem caridade, querem justiça”
Depois
de 50 anos, quais são as principais necessidades da população
saharaui nos campos de refugiados na Argélia?
O nosso povo
vive há cinco décadas nos campos de Tindouf, no sudoeste da Argélia
— uma das situações de refúgio mais longas de África. Não
somos refugiados por catástrofes naturais, mas por expulsão forçada
pelas forças de ocupação marroquinas.
Graças às
instituições da RASD, à ajuda internacional e ao apoio da Argélia,
conseguimos satisfazer muitas necessidades básicas. Mas continuamos
dependentes de ajuda humanitária, vulnerável a crises globais. O
que o nosso povo precisa não é de uma solução humanitária, mas
de uma solução política justa que permita o regresso a uma pátria
livre e soberana.
“Nos
territórios ocupados, o povo saharaui vive um inferno”
Qual
é a situação da população saharaui nos territórios
ocupados?
Como documentam inúmeras organizações de
direitos humanos, os saharauis nos territórios ocupados vivem sob
repressão brutal, sujeitos a violência física e psicológica
diária, sem escrutínio internacional devido à censura imposta por
Marrocos.
O regime aplica uma política de colonização e
deslocamento, incentivando a instalação de colonos marroquinos para
alterar a composição demográfica e perpetuar a ocupação
ilegal.
Marrocos recusa qualquer monitorização internacional
de direitos humanos no território, temendo que o mundo conheça as
atrocidades cometidas pelas suas forças de segurança.
“Recorremos
à justiça europeia para travar o saque de recursos”
Nos territórios saharauis ocupados por Marrocos, Rabat está a levar a cabo um processo de colonização económica, normalizando o turismo e espoliando os recursos naturais ao permitir que empresas ocidentais os explorem. O que pode a Frente Polisario fazer para travar este processo?
É
verdade que, desde 1975, o regime marroquino tem tentado impor à
força um facto consumado no Sahara Ocidental ocupado, ao mesmo tempo
que procura «normalizar» a sua ocupação ilegal através do
envolvimento de terceiros no território, nomeadamente por meio de
acordos transacionais. Como é sabido, o Sahara Ocidental é um país
rico em recursos naturais, razão principal pela qual Marrocos o
invadiu em 1975.
De acordo com o direito internacional, o povo
do Sahara Ocidental, como povo de um território não autónomo, tem
direito não só a um processo de autodeterminação, mas também à
soberania permanente sobre os seus recursos naturais. Neste contexto,
a Frente Polisario tomou medidas firmes para defender os direitos do
nosso povo, apresentando ações judiciais perante a justiça
europeia para contestar os acordos comerciais e de pesca assinados
entre a UE e Marrocos que afetam o Saara Ocidental. O resultado foram
sentenças muito significativas, a última das quais proferida em
outubro do ano passado.
“As
sentenças da UE são uma arma jurídica e moral”
Há
alguns meses, o Tribunal de Justiça da UE manifestou-se contra a
inclusão de produtos do Sahara
Ocidental no acordo comercial entre a UE e Marrocos. À luz dos
acontecimentos, esta sentença serve para alguma coisa?
Não
há dúvida de que as sentenças proferidas recentemente pelo
Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) são significativas e
úteis tanto do ponto de vista jurídico como político, uma vez que
constituem um valioso instrumento legal e um elemento dissuasor
contra a pilhagem dos nossos recursos naturais.
Como se
recordará, as sentenças anularam os acordos comerciais entre a UE e
Marrocos em matéria de pesca e agricultura que envolvem o Sahara
Ocidental. Também deixaram inequivocamente claro que qualquer acordo
ou atividade económica que envolva o Território e que não tenha o
consentimento autêntico e livremente concedido pelo povo saharaui
seria ilegal segundo o direito internacional e europeu.
As
decisões do TJUE obrigam claramente a UE, incluindo os seus
Estados-Membros e instituições, a cumprir e fazer cumprir o seu
mandato. Resta saber se a UE acatará as decisões da sua própria
justiça ou se será tentada a sacrificar a justiça e o Estado de
direito em nome da conveniência política no caso do Sahara
Ocidental.
Em qualquer caso, a Frente Polisario está determinada a utilizar todos os meios legais para defender os direitos inalienáveis do nosso povo, incluindo o seu direito à soberania permanente sobre os seus recursos naturais.
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