segunda-feira, 3 de dezembro de 2012

Como levou Felipe Gonzalez o seu "governo da mudança" à Africa Hispânica


Vídeo do histórico discurso de Felipe González nos territórios libertados 
sob controlo da Frente Polisario no dia 14 de novembro de 1976. 

Artigo de Ana Camacho, En Arenas Movedizas. Ana Camacho, cursou jornalismo na Universidade Complutense de Madrid e foi, durante anos, jornalista do "El Pais", cobrindo a região do Magreb.
  
Sem o prestígio e a autoridade moral necessários para enfrentar os desafios colocados pela sua convalescença, o PSOE lançou-se em resgatar o passado para lembrar que hoje, 02 de dezembro, se cumprem 30 anos desde que Felipe Gonzalez foi empossado primeiro presidente do governo socialista pelo rei Juan Carlos, depois de conseguir uma maioria que nunca se veio a repetir.

A África hispânica constitui um bom exemplo da trajetória que ia tomar o "governo da mudança", convertendo-se num grande golpe para a ilusão dos seus eleitores, vítimas da ingenuidade juvenil e da inexperiência política, depois de 40 anos de hibernação numa ditadura deplorável e miserável.

O caso mais evidente foi o do povo saharaui, que Felipe Gonzalez já estava traindo mesmo antes de jurar a Constituição. Sempre que se toca neste assunto, é quase obrigatório recordar o discurso solene nos acampamentos saharauis, onde ele disse que estava ali para algo mais do que prometer, porque isso já o haviam feito muitos outros e não haviam cumprido. O seu discurso, disse-o aos saharauis, seria o genuíno de um governo que ia cortar as amarras com o passado: "Sabemos que a vossa experiência é a de terem recebido muitas promessas nunca cumpridas. Nós não prometeremos nada que não seja o nosso comprometimento com a história. O nosso partido estará com vocês até à vitória final".

Este discurso de 1976 (ver o vídeo completo), tornou-se o símbolo da segunda traição espanhola ao povo saharaui, após os acordos de 14 de novembro de 1975, através dos quais o último governo de Franco os tinha entregado — como dizia Felipe Gonzalez — aos "governos reacionários de Marrocos e da Mauritânia". No entanto, este não foi mais do que um dos muitos atos de denúncia dos Acordos de Madrid, numa linha de oposição que Felipe Gonzalez não alterou até ao seu triunfo nas urnas. Então, para o PSOE, era tão claro que os chamados acordos de Madrid eram nulos em termos de Direito, que o XXVII Congresso do partido aprovou uma resolução que ratificava o comunicado conjunto adotado durante a visita de Gonzalez ao Sahara libertado, reiterando a sua denúncia do falso tratado. "Ante a situação colocada no Sahara Ocidental pelo abandono do regime franquista das obrigações que lhe correspondiam como potência administrante no processo de descolonização do território, o PSOE manifesta a sua profunda rejeição ao acordo tripartido de Madrid, de 14 de novembro de 1975, através do qual entregou o território aos regimes marroquino e mauritano… "

Em setembro de 1977, o então Secretário-Geral do PSOE, juntamente com o Secretário-Geral adjunto da Frente Polisario, Bachir Mustafá Sayed, tornaram público um comunicado em que se afirmava que a Espanha, como potência administrante, não poderá extinguir as suas responsabilidades enquanto o povo saharaui não tiver obtido o efetivo exercício do seu direito à autodeterminação e à independência. Respaldando Felipe González encontravam-se outros importantes dirigentes socialistas, como Luis Yáñez Barnuevo, Javier Solana e Luis Fajardo.

Na altura, não se falava de solidariedade, mas de vergonha e de obrigações não cumpridas por Espanha. De acordo com a promessa que havia feito aos saharauis de tomar todas as iniciativas possíveis no plano interno e externo para anular oficialmente os Acordos de Madrid, em 1979, Gonzalez enviou à Mesa do Congresso dos Deputados uma proposta de lei em que se pedia ao Governo a denuncia formal do acordo tripartido.

Durante esses anos de oposição, os socialistas acusaram o então governo da UCD de Adolfo Suarez de "irresponsabilidade histórica" ​​e, até mesmo, de corrupção por ratificar o acordo de pesca com Marrocos, salientando o perigo para a segurança das Ilhas Canárias que representava conceder facilidades ao expansionismo de um estado falso, como é o marroquino. Mas, antes mesmo que Felipe González jurasse a Constituição, o seu ministro dos Negócios Estrangeiros, Fernando Moran, já havia declarado a 30 de novembro uma clara advertência do que estava por vir: "Não só não faremos nada para desestabilizar o rei de Marrocos, como tudo faremos, no que estiver à nossa mão, para manter a sua estabilidade. "

Felipe González em 2009. Marrocos é o país mais democrata do mapa muçulmano
 e não há exploração ilegal dos recursos saharauis por parte dos invasores do território saharaui. 

Efetivamente, assim foi. A anulação dos chamados acordos Madrid foi enterrada no esquecimento com malícia e premeditação, a começar pelo silêncio na imprensa sob a sua esfera de influência. Foram firmados novos acordos de pesca e fizeram-se todo o tipo de concessões a Hassan II, entre elas obstaculizar a divulgação das violações dos direitos humanos e a campanha a favor dos desaparecidos pela repressão marroquina. Sem mencionar que Narcís Serra conseguiu uma venda de armas a Marrocos sem precedentes.

Atirou-se a culpa pela metamorfose à CIA e ao Pentágono. Mas não há que excluir que, tal como ocorreu no caso da Guiné Equatorial, abandonada também por Felipe González à tirania do tirano Obiang, o fenómeno não tivesse que ver com a premente necessidade do novo governo ganhar o apoio da França na luta contra a ETA, na altura, num dos seus momentos de máximo recrudescimento, ou à entrada na Comunidade Europeia que, em Bruxelas, ia sendo adiada, sob o pretexto de dúvidas sobre a mudança democrática espanhola, enquanto nos bastidores políticos se travava um duro braço-de-ferro em que a Espanha teve de fazer sérias concessões à Itália e, especialmente, à França, a custo da sua produção agrícola e, no caso da Inglaterra, à custa do esquecimento sobre Gibraltar.

A pista francesa e a sua obsessão de francofonizar e estender a sua hegemonia aos remanescentes da presença espanhola em África também atingiu a Guiné Equatorial. Na época, a oposição à ditadura de Obiang (entre os quais, Severo Moto) denunciou que na cimeira franco-espanhola de La Granja, em 1983, haviam sido feitas cedências às pretensões imperiais francesas em troca de contrapartidas noutros cenários mais urgentes para a Espanha. Moran negou-o, mas a trajetória seguida reflete uma entrega progressiva da influência política e económica: a entrada da Guiné na comunidade de países africanos francófonos, o abandono da moeda apoiada pela peseta e substituída pela moeda da zona franco, apoiada pela França; a súbita mudança de opinião que, no último minuto, levou a que, em vez de se enviar um contingente da Guardia Civil, como estava planeado, fosse decidido não fazê-lo, facilitando assim o surgimento da nefasta guarda marroquina que durante anos maltratou o povo guineense…


Vídeo da expulsão de  simpatizantes da causa saharaui que empunharam bandeiras da RASD 
num comício de Rubalcaba em Santa Cruz de Tenerife durante a última campanha eleitoral. 
Rubalcaba limitou-se a comentar ante o desenlace pouco democrático da cena:  
"O que sinto é que agora há lugares vagos e há gente lá fora"

Desde esse primeiro Governo de Felipe González, em 1982, o PSOE não só não fez nada pela causa saharaui; mas, ao contrário, desenvolveu todo o tipo de atitudes de apoio ao anexionismo marroquino: desde expulsar dos seus comícios os eleitores que ousam empunhar bandeiras saharauis; a legalizar, nas Canárias, associações de "vítimas do terrorismo" e aprovar, com desavergonhada desenvoltura, iniciativas para distorcer os factos da história, cujo único objetivo é equiparar a Polisario com a Eta, impensável mesmo ​​para os signatários dos Acordos de Madrid.

O passar do tempo tem mostrado que a conversão pró-marroquina de Felipe González foi sincera em relação ao coração. Caso contrário, uma vez afastado das suas responsabilidades de governo, pelo menos, poderia ter mantido um prudente e dissimulado silêncio. Mas não, sempre que pôde mostrou um grande entusiasmo em favor dos interesses de Marrocos diz que, para o bem de Espanha e dos espanhóis.

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