terça-feira, 22 de janeiro de 2013

"Política de Blocos" e Guerra Fria prejudicaram Luta de Libertação do Sahara Ocidental


Mohamed Lamin Ahmed
As potências Ocidentais diziam que a Frente POLISARIO era comunista… Os soviéticos, e seus «compagons de route», taxavam-os de pró-ocidentais…
Memórias, para a história da Luta de Libertação do povo Saharaui, aqui relatadas por Mohamed Lamin Ahmed, dirigente histórico da Frente Polisario, e durante muito tempo primeiro-ministro do 1.º Governo da RASD.

Tenho sempre evitado, nas últimas décadas, escrever ou comentar eventos que possam pôr em relevo a minha própria pessoa, considerando que, isso, poderia obscurecer o processo da valente luta que o povo saharaui continua a travar, o único habilitado a escrever sobre os seus heróicos sacrifícios.

Mas, uma vez que qualquer regra conta com uma exceção, daí a razão que respondo a um pedido que me foi dirigido pelo Comité Suíço de Apoio do Povo Saharaui, de revelar algumas das minhas lembranças, sabendo - como testemunha histórica - que este mesmo Comité foi a primeira organização humanitária a nível europeu e mundial a solidarizar-se com o povo saharaui. Talvez isso tenha também contribuído a fazer-me desatar um pouco a língua.

No entanto, há uma realidade incontornável que deve ser levada em consideração. Há coisas que não podem ser publicadas no momento presente, e se a guerra de libertação se tivesse prolongado mais, importantes memórias poderiam ter sido enterradas com os atores que as viveram ou participaram da sua elaboração. Ao revelá-las agora, antes do tempo, esses atores poderiam perder sua consideração de estadistas, embora a fraqueza, seja humana.
Com efeito, se o estadista revela apenas 5% dos segredos de Estado ou do movimento de libertação a que pertence, ele poderá sucumbir à imprudência, ou mesmo à irresponsabilidade. Embora fosse malicioso entrar em recriminações contra aqueles cujas posições foram louváveis numa fase difícil, e que, por razões próprias, recuaram ou reviram as suas posições. Partindo essa postura, sinto-me obrigado a debruçar-me apenas a eventos específicos. A memória pode, eventualmente, trair-me, e por isso peço aos meus amigos que me perdoem. Pode ser que num futuro de melhores tempos possa desenvolver o que eu escrevi nas minhas lembranças pessoais, sem no entanto cair no individualismo.

A decisão de proclamação da República Saharaui nos finais do mês de janeiro de 1976, surge no seguimento de uma reunião do Comité Executivo da Frente POLISARIO, que mandatou o seu Secretário-Geral, o Mártir El Ouali Mustapha Sayed, juntamente com Brahim Ghali, membro do Bureau Político, a deslocarem-se a alguns países do Sahel e, especificamente, ao Mali, através da rota sahariana. O comunicado que proclamava esta decisão estipulava que a Organização seria dirigida, na ausência do seu Secretário-Geral, por Mahfoud Ali Beiba.

Um comunicado que viria, depois, a inquietar os nossos amigos líbios que pensavam que El Ouali tinha sido vítima de uma conspiração.

El Ouali e o seu companheiro tinham chegado, entretanto, a Bamako, durante a primeira semana de fevereiro, após as dificuldades de uma estrada muito difícil, especialmente na temporada das chuvas. Reuniram com o ex-presidente do Mali, Moussa Traoré, mas foram obrigados, devido à falta de recursos financeiros, a parar o seu périplo na primeira etapa e retomar o caminho de França para depois seguirem para Líbia. As preocupações dos amigos líbios foram então dissipadas com a chegada de El Ouali.

Durante a mesma reunião do Comité Executivo, a ideia da constituição de um governo no exílio e das repercussões interna e externas de tal decisão foram discutidas. A oportunidade dessa iniciativa, que procurava preencher o vazio jurídico que, certamente, a retirada de Espanha do Sahara Ocidental provocaria, também foi examinada.

Esses eventos ocorrem no momento em que a guerra eclode e prossegue nas duas frentes Norte e Sul, e quando os aviões marroquinos descarregam os seus carregamentos mortíferos de napalm e de fósforo sobre os acampamentos de refugiados.
Os nossos dois emissários retornam da Líbia convencidos da ideia da proclamação da República e com os seus estatutos provisórios, enquanto a OUA discutia, a nível do Conselho
De Ministros, o reconhecimento da Frente POLISARIO como movimento de libertação. A questão virá a ser ultrapassada pela proclamação da República Saharaui.

Declaração da indepedência da RASD, 1976

A RASD será proclamada pelo Secretário-Geral da Frente Polisário e sancionada por um comunicado do Conselho Nacional provisório. A euforia era geral entre os cidadãos e os combatentes saharauis, apesar das atrocidades da guerra e dos bombardeamentos dos acampamentos de Um Draiga e de Tifariti. Esta proclamação foi amplamente comentada pelos media na época. Ela irá preencher o vazio jurídico e enterrará a questão do reconhecimento Frente POLISARIO pela OUA como o movimento de libertação.

A constituição do primeiro governo da RASD

Reunido a 28 de fevereiro de 1976, o Comité executivo examina a nova situação criada pela proclamação da RASD e decide, por proposta do Secretário-Geral da Frente Polisário, proceder à constituição do primeiro governo Saharaui no exílio, ao qual será atribuída a missão de promover o reconhecimento da jovem república.

A data será marcada para o dia 4 de março de 1976, a nível nacional. O comunicado de imprensa anunciando a notícia deveria ser divulgado simultaneamente em três capitais africanas. Conakry, já que o presidente Ahmed Sékou Touré tinha sido o primeiro Presidente africano a receber uma delegação da Frente POLISARIO, em novembro de 1974. Tripoli, porque o líder líbio foi o primeiro a apoiar materialmente, moralmente e militarmente a luta do povo saharaui. E também porque foi da Líbia que El Ouali trouxe a ideia da proclamação da RASD. E, finalmente Argel, que tinha afirmado o seu apoio histórico ao povo saharaui que fugia do genocídio.

Conakry iria, mais tarde, optar por não receber a nossa delegação, enquanto a Líbia e a Argélia concordaram em transmitir o nascimento do primeiro governo Saharaui a partir das suas respetivas capitais. Desde então, a Guiné Conakry permanecerá, até aos nossos dias, no grupo dos adversários dos Saharauis.

Da esquerda para a direita, alguns historicos dirigentes saharauis:
Mahfud Ali Beiba (já falecido), Gali Mustafa, Mohamed Abdelaziz,
Mohamed Lamin Ahmed e Mohamed Lamin Buhali

Gostaria de mencionar, para a história, que Madagáscar foi o primeiro país a reconhecer a RASD. Será seguido pelo Burundi e pela Argélia, após o que os reconhecimentos se sucederão.

A intervenção francesa com os aviões “Jaguars"

Ninguém poderia imaginar que uma potência mundial, membro do Conselho de Segurança, poderia intervir contra unidades de guerrilheiros. A França baixou-se a esse nível fazendo intervir os seus aviões "Jaguars" contra os nossos combatentes, em outubro de 1977, na região sul do Tiris Zemmour e no norte da Mauritânia.

Esta intervenção, que irá levar a guerra a um novo desenvolvimento, produziu um grande número de vítimas, na sua maioria prisioneiros de guerra mauritanos. A aviação
Utilizou bombas de fósforo e outras armas incendiárias.

Os Franceses intervieram com a desculpa de que o movimento (Frente POLISARIO) era um prolongamento do comunismo. Para a história, afirmo a falsidade desta argumentação e que nunca recebemos apoio do bloco de Leste e menos ainda da URSS.

Para apoiar o que eu digo, revelo-lhes o conteúdo de um encontro que decorreu entre o chefe da delegação saharaui e a delegação soviética, à margem da Conferência do Povos Árabe, em Trípoli, em novembro de 1977, após a visita do falecido presidente egípcio, Anwar Sadat a El Qods (Jerusalém).

O chefe da delegação soviética criticou os saharauis por não terem elogiado o que era designado então de bloco socialista, e o representante saharaui disse: "agradecemos aqueles que nos apoiam, tragam-nos o vosso apoio e esperem os nossos elogios depois."

Neste contexto, gostaria de lembrar que, ao longo da nossa guerra de libertação contra Marrocos, a Frente POLISARIO nunca recebeu uma única arma, ou uma simples bala da URSS, e ainda menos dos países que se encontravam na sua órbita. Este bloco limitava-se a apoiar a resolução aprovada anualmente pela Assembleia Geral das Nações Unidas sobre o direito do povo saharaui à autodeterminação.

Eventos diversos

Durante uma visita oficial que efetuava ao Benin, em setembro de 1977, o presidente do Conselho de Ministros, que se aprestava a deixar o Benin e regressar ao Sahara Ocidental, teve que mudar o seu percurso para uma etapa imprevista. Às onze horas da noite, o Presidente do Togo em pessoa falava-lhe ao telefone, pedindo-lhe para passar nessa mesma noite em Lomé. Uma receção cerimonial teve lugar no aeroporto, presidida pelo ministro togolês da Informação e o alojamento fez-se numa belíssima villa que coroava a receção.

Muito cedo pela manhã, o protocolo comunica-nos que o President Ayadéma nos esperava para o pequeno-almoço no Palácio presidencial.

Sem delongas, Ayadéma informa-nos que o Presidente francês, Valéry Giscard d'Estaing, havia-lhe pedido para interceder junto da Frente POLISARIO em relação aos seis cooperantes franceses capturados no dia 1 de maio de 1977 em  Zouerate, durante uma operação sem precedentes que teve por alvo esta cidade mineira, nó nevrálgico da economia da Mauritânia. Seis homens, aos quais se vieram juntar posteriormente dois ferroviários capturados na via-férrea que liga Zouerate a Nouadhibou, na Costa Atlântica.

Tendo colocado como condição prévia a manutenção do segredo dos nossos contatos, e qualquer referência aos meios de comunicação, fomos surpreendidos no avião que nos trouxe de volta no mesmo dia em Argel pela divulgação da notícia na Radio France Internationale.
O locutor anunciava que o Presidente togolês reafirmara, após uma entrevista com um alto dirigente saharaui, que os oito franceses estavam nas mãos dos Saharauis e estavam muito bem.

Mohamed Lamin Ahmed, 1981,
foto Pedro Sousa Dias
As negociações entre a França e a Frente POLISARIO são reatadas e conduzirão à libertação dessas oito pessoas em outubro de 1977. Em outubro de 1980, uma delegação saharaui, liderada pelo presidente do Conselho de Ministros, participa nas festividades que assinalam a independência da Coreia do Norte.

Tendo transitado por Moscovo, passagem obrigatória das companhias aéreas, a delegação foi recebida pelo comité afro-asiático de solidariedade. À margem do encontro, a delegação saharaui solicita uma reunião com responsáveis do Partido Comunista soviético. O qual
nos envia o seu responsável pelas relações externas. Traçamos-lhe um quadro sombrio da situação do povo saharaui e expressamos a nossa consternação face à posição soviética. "Afirmam-se homens de princípios, mas na verdade vós sois gente que apenas procuram o vosso interesse. Caso contrário, como explicar o negócio do século sobre o fosfato, que vocês assinaram com Marrocos? E que dizer da frota de arrastões soviética que pilha a riqueza haliêutica do Sahara Ocidental" — atacou o delegado Saharaui. Interpelado por questões tão concretas, o responsável soviético replicou: «Vocês não são comunistas, vocês estão mais próximos do Ocidente. Além disso, as armas que usam são de fabricação soviética."
"Naturalmente, vocês são uma potência mundial e as vossas armas podem ser encontradas em Marrocos. Vocês já adotaram a mesma posição para com o nosso inimigo? E não responderam às nossas perguntas", replicámos.

O encontro terminará sem resultados. Não ma perderei em conjeturas a enumerar as diferentes armas capturadas ao exército marroquino, ou a esclarecer a origem da sua fabricação, no entanto, gostaria de lembrar aqui que 56 tanques soviéticos T55 de fabricação soviética figuravam entre as armas pesadas destruídas pelo Exército Popular de Libertação Saharaui durante a histórica operação militar de Lebeiratt, em 1979. Em março de 1984, uma delegação norte-americana de 20 membros, incluindo funcionários do governo e liderada pelo Congressistas Wolpe, deveria ter-se encontrado nos Campos de refugiados com a Frente POLISARIO. Uma tempestade de areia, que nesse dia fustigou Tindouf, forçou a delegação a regressar a Argel. Serão recebidos pelo Ministro da Educação na época, que estava de passagem por Argel. A reunião entre as duas partes, que teve lugar nas instalações da Embaixada saharaui, foi marcado pela postura norte-americana, que afirmava que "o Rei de Marrocos é um aliado Americano, enquanto a Frente POLISARIO faz parte do movimento comunista mundial " (lembrem as palavras do responsável soviético citado acima).
Vejam, pois, como somos vítimas dos grandes.

Em seguida, argumentámos que "os saharauis não têm nada contra a pessoa do rei, ou contra a monarquia em Marrocos. Erguemo-nos, sim, contra a anexação de nosso país pela força e contra o colonialismo marroquino. Eles não querem uma coligação com quem quer que seja, porque esse tipo de dependência não vai na direção dos seus interesses."
"A Líbia apoia-vos. Por isso, nós não estamos ao vosso lado", objetou então um membro da delegação dos EUA. E se esta tivesse ao lado de Marrocos? Qual seria a posição do governo dos EUA", interrogámos. "Impossível", disse. "Em política nada é impossível", respondeu o ministro saharaui.

A reunião terminará com a frase de um congressista: "Os EUA não estão contra vocês, mas defendemos os nossos interesses." Aqui, gostaria de reconhecer que os norte-americanos, apesar da defesa dos seus interesses, têm o mérito de compreender o seu interlocutor quando diz: "isso não é do meu interesse."

Esta reunião, que não foi divulgado na imprensa, pode ter ajudado a criar uma auréola de esperança para a compreensão da causa saharaui pelos norte-americanos, principalmente a nível do Congresso. Vou parar por aqui, esperando que no futuro, se Deus me conceder longa vida, poder iluminar todos aqueles os que estão interessados em conhecer esta importante etapa da história da luta do povo saharaui.

Tradução do francês: AAPSO


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