sexta-feira, 2 de outubro de 2015

Mohamed Dadach “O herói na sombra”




Sidi Mohamed Dadach, presidente do CODAPSO (Comité de Defesa do Direito do Povo Saharaui à Autodeterminação), nasceu em 1957 em Guelta, Sahara Ocidental, território que seria declarado em 1958 como a 53.ª província de Espanha. É conhecido como o Mandela do Sahara, ou por alguns amigos como Mandela “em versão pobre”. Nos três dias que compartilhei o dia-a-dia de Dadach em Badajoz, no país que abandonou os saharauis de maneira cruel e ilegal, nunca o vi como o Mandela do Sahara, mas sim como o Dadach do Sahara, uma pessoa única, com uma integridade e força escondidas num corpo maltratado pelas torturas, onde são visíveis as enormes cicatrizes e um ligeiro mancar. No entanto, a força deste homem é claramente visível nos olhos límpidos e intensos que nos penetram quando fala com um discurso claro e preciso dos que conhecem o caminho que é necessário percorrer para, finalmente, conseguir a paz.

24 anos de prisão no total, 23 dos quais consecutivos, sendo 14 debaixo de uma pendente sentença de morte, “desaparecido” durante mais de uma década, a injustiça, o sofrimento e a tortura a que foi sujeito são indescritíveis e envergonham a humanidade. Dadach tinha 16 anos em 1973 quando se juntou à Frente Polisario para combater a ocupação espanhola; em 1975, Marrocos invadiu o Sahara Ocidental e Dadach foi capturado em 1976 pelo exército marroquino. Dois anos mais tarde, foi obrigado a alistar-se no exército marroquino sob ameaça de pena de morte, tentou desertar e juntar-se à Polisario, tentativa que fracassou regressando de novo à prisão. Em 1980 foi condenado à morte, sentença que lhe foi retirada 14 anos depois; conheceu a liberdade já no século XXI, mas continua preso na maior prisão ao ar livre do mundo, os territórios ocupados do Sahara Ocidental. Durante mais de uma década ninguém soube se estava vivo ou morto, ele era um dos muitos desaparecidos saharauis.
Sofreu torturas físicas e psicológicas durante décadas de uma forma sistemática, cujas cicatrizes são visíveis.

Vamos caminhando até ao rio, e falando… a voz tranquila e baixa de Dadach acompanha o nosso passeio, com recordações dolorosas, referências a amigos, surpresas e decepções, sofrimentos e alegrias.

Durante 23 anos não pôde sair da cela depois das 17:00 horas, estava fechada desde as 17:00 às 09:00 horas; hoje em dia, quando se aproxima essa hora, necessita de sair e passear; esteve durante mais de duas décadas sem ver nem ouvir uma criança, uma mulher, sem ver vida.
Às 4:30 da madrugada chegavam os guardas, ouvia os seus passos, pam pam pam…, vinham buscar os condenados à morte. Nunca dormia antes, só conseguia conciliar o sono depois das execuções, já de manhã, depois de ouvir a chamada para a oração na mesquita, nesse momento dormia… até às 09:00.

Não quer falar disso, quer esquecer… o seu olhar perdido e a dor que vejo nos seus olhos não têm descrição, as palavras que conheço não chegam para o descrever.
Passado uns momentos na margem do rio Guadiana (“meu rio” em árabe), sentados na erva, continua recordando.

A minha cela tinha dois metros por um metro e meio. Tinha um buraco no chão onde podia fazer as minhas necessidades, era muito suja e não me davam nada para a poder limpar. Havia muitas baratas e outros insectos e cheirava muito mal, um dia veio visitar-me um senhor da Cruz Vermelha. Quando entrou na mina cela quase vomitou e pediu para falarmos no pátio da prisão, não conseguiu suportar o cheiro e a sujeira.

Tinha um buraco na parede da minha cela, como uma janela, mas demasiado pequena, não via nada por esse buraco, apenas outra parede. Estive mais de duas décadas sem ver a lua, as estrelas…. Temos que parar de novo, as recordações levam-no a lugares que não pode compartilhar, de novo as palavras faltam. Recorda que conseguiu um pedaço de espelho e com esse espelhinho procurava ver as estrelas.

El Aaiún ocupada, 23-03-2013 - Mohamed Daddach perseguido e molestado por esbirros marroquinos durante uma manifestação pacífica

Uma vez entrou um pássaro através desse buraco, um pássaro gordo, muito gordo … eu não comia carne há muito tempo, davam-nos apenas um café sujo pela manhã com um pouco de pão duro e mais tarde arroz, couscous, feijões ou lentilhas, de longe em longe 40g de carne … Olhei para o gordo passarinho que voava dentro da minha cela sem conseguir sair, podía comê-lo… dei-lhe um pouco de água e algumas migalhas de pão, peguei nele e libertei-o deixando-o voar de novo através do buraco, pareceu-me um bom presságio.

Na prisão havia muitos presos violentos com tatuagens em todo o corpo, aprendi a viver com eles; no pátio pela manhã cumprimentava-os a todos, sbah el jair (bons dias) e apertava-lhes a mão. Também havia comunistas, um deles, o seu líder, ajudou-me a escrever cartas e fazer com que chegassem ao exterior, à Amnistia Internacional e a outras organizações.

Sempre estive sozinho na minha cela… era mais seguro. Estive muito tempo só … cantava em voz baixa… e Dadach começa a trautear uma melodia tranquila mas dura, as letras falam de independência.

Chegámos ao último dia da minha visita, passei a Eid Al Adha (Páscoa muçulmana) com Dadach e outros saharauis, matámos um cordeiro segundo a tradição e compartilhámos muitos copos de chá. O chá também esteve presente na entrevista que lhe pedi no último dia.
Dadach é activista de direitos humanos, o homem a quem chamam Mandela saharaui, a que também poderiam chamar Ghandi, na verdade para mim é Dadach e só Dadach e estou convencida de que esta designação é suficiente.

Entrevista

Há mais de 50 presos políticos saharauis nas prisões marroquinas, continuam as detenções arbitrárias, sequestros e torturas, a comunidade internacional permanece em silêncio. Em sua opinião, que ações se poderiam empreender para exigir a libertação dos presos?

Em minha opinião, é necessário fortalecer a pressão internacional pela libertação dos presos políticos. Organizações, associações e pessoas que apoiam a causa saharaui e o respeito pelos direitos humanos devem organizar-se e desenvolver ações de protesto em cada país frente às embaixadas e consulados do Reino de Marrocos, exibindo fotografias e cartazes, exigindo a libertação imediata de todos eles. Há presos políticos com sentenças de pena perpétua.
Proponho, além disso, que escrevam cartas exigindo a libertação dos presos, não só dirigida a organismos das Nações Unidas, mas também à União Europeia, ao Ministro da Justiça de Marrocos e a todas as embaixadas estrangeiras com representação em Rabat, como é o caso dos EUA, França, Espanha, Portugal, etc.
O envio de cartas é essencial para aumentar a pressão internacional.

As condições dos presos e das prisões marroquinas não respeitam nenhum acordo ou convénio internacional subscrito pelo Reino de Marrocos. Será possível que algum dia Marrocos respeite o direito internacional e cumpra o que subscreve?

O Reino de Marrocos não cumpre o que firma. Não respeita o que está escrito no papel, não é mais que um conjunto de documentos cujas diretrizes não se aplicam.
As torturas, os sequestros, as condições infra-humanas em que os presos políticos saharauis vivem continuam a ser as mesmas, não há diferença apesar de toda a propaganda de Marrocos.
Sempre que a UE, de algum modo, pressiona Marrocos pela libertação dos presos políticos e em temas de direitos humanos, Marrocos contra-ataca com a ameaça da entrada maciça de emigrantes ilegais, com a abertura de Ceuta e Melilla e o livre trânsito para milhares de subsaharianos que querem cruzar o Mediterrâneo.

Territórios Ocupados: Apesar da repressão quotidiana...

Em sua opinião, qual deve ser a principal exigência da comunidade internacional sobre a questão do Sahara Ocidental?

O conflito do Sahara Ocidental é político e militar, a Frente Polisario esteve durante mais de 16 anos em guerra com Marrocos e também durante um breve período com a Mauritânia,… até à assinatura do cessar-fogo em 1991 e a entrada da MINURSO (Missão das Nações Unidas para o Referendo no Sahara Ocidental). Todas as infrações e sofrimento dos saharauis nos territórios ocupados, como nos campos de refugiados são o resultado direto desta ocupação e só irá terminar no dia que for implementada uma solução permanente para o Sahara Ocidental.
O apoio da maioria das organizações, associações e movimentos civis na Europa reduz-se à ajuda humanitária, não se centra no apoio político para conseguir a autodeterminação.
As organizações e movimentos de solidariedade de Espanha são os que mais ajuda humanitária enviam para os campos de refugiados, todas estas organizações, associações e movimentos cívicos devem exigir a autodeterminação do povo saharaui ao governo espanhol que continua a ser a potência administrante in jure do território, e exigir o mesmo ao Rei de Espanha. Peço aos nossos amigos espanhóis que façam esta exigência para conseguir uma solução imediata para o nosso povo que sofre há mais de 40 anos. Necessitamos da ajuda humanitária, sem dúvida, mas sobretudo o que necessitamos é de apoio político para pôr fim ao nosso sofrimento. As organizações não podem reduzir a sua ação à ajuda humanitária.
Peço às organizações, associações e movimentos civis que reequacionem a sua forma de solidariedade e comecem a desenvolver ações de pressão política pela autodeterminação do Sahara Ocidental, para que seja possível um fim rápido deste conflito.
Não existe nenhum país que reconheça a ocupação marroquina do Sahara Ocidental. A União Africana nos últimos tempos tem tomado posição e publicado relatórios e recomendações para uma solução rápida para a descolonização definitiva do Sahara Ocidental. O presidente da África do Sul declarou recentemente na Assembleia Geral das Nações Unidas a necessidade de programar uma data para o referendo de autodeterminação.
A aceitação por parte da Federação Suíça da Frente Polisario como aderente da Convenção de Genebra, em junho deste ano, confirma o seu reconhecimento como um movimento de libertação do povo saharaui.
Todos estes acontecimentos são uma ajuda no desenvolvimento de táticas de pressão sobre o governo de Marrocos.
Não há saharaui nos territórios ocupados nem nos campos de refugiados que aceite um plano de autonomia, a única solução é a autodeterminação.
É nosso desejo que este problema se resolva pacificamente, não queremos a guerra, mas se o impasse persistir ninguém pode prever o que possa suceder.
Estive reunido há pouco tempo com um alto dirigente da Frente Polisario e fiz-lhe essa pergunta, se é possível que tenhamos que voltar à guerra com Marrocos, a sua resposta foi que é possível.
Não temos pessoas a viver nas zonas libertadas, e continuam as manobras e o treinamento militar, assim como a renovação de armamento precisamente porque estamos preparados para essa eventualidade.
Digo isto para que estejam conscientes de que a situação não pode continuar assim, e por isso apelo uma vez mais à comunidade internacional e a todos os amigos do povo saharaui a fazerem toda a pressão possível e desencadear todas as ações possíveis a fim de evitar que nos vejamos obrigados a regressar à guerra. Uma guerra que não é boa para ninguém.

Fala-se dos saharauis dos acampamentos de refugiados e dos territórios ocupados. E os saharauis na diáspora?

Há um número crescente de saharauis na diáspora, uma consequência direta de 40 anos de ocupação, do impasse político e de situações desesperadas, tanto nos territórios ocupados como nos acampamentos de refugiados.
Não é normal que haja tantos saharauis fora do seu país, é evidente que se trata de uma situação anormal. Não são emigrantes que abandonam um país independente com o único propósito de melhorar a sua vida económica, como acontece na maioria dos países hoje em dia.
São pessoas que fogem do sofrimento, do impasse político, da estagnação das suas vidas.
A saída destes saharauis para a diáspora é o resultado da repressão marroquina e do sofrimento dos campos de refugiados.

.. o povo saharaui sai à rua reclamando a autodeterminação e a independência.

A responsabilidade e a unidade de todos os saharauis, os que vivem nos territórios ocupados, nos campos de refugiados e na diáspora é indispensável para conseguir uma solução para o conflito.
Nos territórios ocupados, por exemplo, organizamos e participamos em manifestações, em concentrações e outras formas de protesto pacífico exigindo a autodeterminação, denunciamos as violações que as autoridades marroquinas cometem e denunciamos perante a comunidade internacional de que não existe liberdade de expressão nos territórios ocupados, não há respeito pelos direitos humanos, prosseguem os sequestros, as detenções arbitrárias e a tortura, o sofrimento do povo saharaui.
Em consequência da ocupação marroquina continua havendo hoje m dia desaparecidos saharauis e presos políticos.
Gostaria de interpelar a diáspora saharaui e perguntar-lhes o que estão fazendo para denunciar a situação dos territórios ocupados e dos acampamentos de refugiados.
Não podem limitar-se a apoiar de maneira humanitária ou económica o nosso povo.

O que fazem aqui na diáspora? Apenas melhorar as suas vidas e resolver o problema de documentação? Ou também estão a denunciar o que se está a passar no seu país?

Não devem perder o tempo apenas a construir e a procurar resolver os seus interesses pessoais na Europa, a sua presença na Europa é o resultado da ocupação e do roubo do seu país. Viver em países que não são o nosso, onde ninguém fala a nossa língua, que não têm as nossas tradições, a nossa comida, o nosso clima, as nossas tradições e as nossas famílias, não é viver…. Nunca devem esquecer que estão nesta situação por culpa da ocupação e têm que lutar com todos os meios de que dispõem, para que possam regressar ao seu país.
Melhor do que ninguém sabem o que fazer para exigir a autodeterminação e o fim da ocupação, sabem como e o que podem fazer em cada um dos países onde se encontram, cada um à sua maneira, através de manifestações e outras formas de luta e denúncia.
O caminho é claro e o destino também, não devemos perder tempo em coisas que não alterarão o nosso futuro, a nossa situação, antes devemo-nos centrar no essencial para conseguir a livre determinação.

Badajoz 23, 24 e 25 de Setembro de 2015

Fonte: Isabel Lourenço (Traduzido do hassania por Mohamed Balla); 
porunsaharalibre.org


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