sexta-feira, 11 de dezembro de 2020

Relativa surpresa: Trump desafia o Direito Internacional no Sahara Ocidental — causas e consequências


 

Artigo de Carlos Ruiz Miguel, Professor Catedrático de Direito Constitucional na Universidade de Santiago de Compostela e director do Centro de Estudos do Sahara Ocidental

 

A declaração oficial do presidente dos EUA, Donald Trump, de 4 de dezembro, reconhecendo a "soberania" de Marrocos sobre "todo" o Sahara Ocidental, constitui uma mudança RADICAL na posição dos Estados Unidos em relação a este conflito. Esta decisão, de extraordinária gravidade, é apenas relativamente surpreendente e torna necessário questionar por que esta iniciativa é claramente contrária ao Direito Internacional. @Desdelatlantico.

 

I. INDICAÇÕES EM OUTUBRO DO QUE ACONTECEU ...

 

A declaração do presidente Trump é relativamente surpreendente. Havia indícios de que isso aconteceria, embora outros indícios certamente parecessem negar essa possibilidade.

O indício mais claro de que isso poderia acontecer surgiu em outubro de 2020. Em 20 de outubro, David Schenker, secretário de Estado adjunto para o Médio Oriente reconheceu que se havia discutido o reconhecimento da "soberania" de Marrocos sobre o Sahara Ocidental em troca da "normalização" das relações entre Marrocos e Israel, mas que "agora" o assunto não estava "na mesa".

No entanto, um dia depois, o jornalista israelita Barak Ravid considerava «facto» como encerrado se Trump ganhasse as eleições.

 

II. … APARENTEMENTE CONTRADITÓRIO COM INDICAÇÕES DE CONTINUIDADE

 

No entanto, essas indicações pareciam ser negadas por outras. Em 30 de outubro (ou seja, 10 dias após a declaração de Schenker), o Conselho de Segurança aprovou a resolução 2548 sobre o Sahara Ocidental. Quando essa resolução foi aprovada, a representante dos EUA fez uma declaração explicando o seu voto e dizendo vários coisas importantes, reiterando qual era a posição norte-americana, a saber:

 

1) que o plano de pseudo-autonomia apresentado por Marrocos para o Sahara Ocidental era uma abordagem "potencial" para resolver o conflito;

2) que o conflito deveria ser resolvido por “negociação” “sem condições prévias”;

3) que as partes deviam abster-se de iniciativas "unilaterais" que quebrassem o "status quo".

 

Quatorze dias depois, a 13 de novembro, Marrocos tomou uma iniciativa unilateral para quebrar o status quo e os acordos militares, invadindo uma área de Guerguerat, no sul do Sahara Ocidental. Diante dessa agressão, os EUA ficaram surpreendentemente calados, pois não apoiaram a iniciativa, ao contrário dos países "amigos" de Marrocos, nem a censuraram, mesmo que implicitamente, como outros fizeram. Assim, até 4 de dezembro, data importante, em que o secretário de Estado, Michael R. Pompeo, em entrevista desaprovou implicitamente a intervenção militar marroquina, insistindo que o conflito não deveria ser resolvido pela força mas sim por negociações.

Tudo parecia indicar, portanto, uma continuidade na posição norte-americana.

 

 III. A DECLARAÇÃO DO TRUMP: UM ASPECTO MUITO ESTRANHO.

 

Há um ponto particularmente chamativo na declaração de Trump reconhecendo a "soberania" de Marrocos sobre "todo" o Sahara Ocidental. Com efeito, a declaração é assinada a QUARTO de dezembro… mas é tornada pública a 10 de dezembro.

Duas questões se colocam:

 

1) Esta declaração assinada por Trump em 4 de dezembro ... contradiz as declarações feitas pelo seu Secretário de Estado naquele mesmo dia. Isso revela que o Secretário de Estado NÃO SABIA O QUE ESTAVA TRAMANDO SEU PRESIDENTE.

 

2) Esta declaração assinada no dia QUATRO só é tornada pública no dia DEZ. Porquê?

 

IV. RAZÕES DE TRUMP: ESPECULAÇÕES

 

No artigo citado acima, publicado, repito, a 21 de outubro, Barak Ravid diz algo, a meu ver, muito importante e que torna o ocorrido ainda mais intrigante. Ravid apresenta duas hipóteses:

 

1) Se Trump GANHAR ... prevê que faria ... o que Trump fez em 10 de dezembro: "normalização" Marrocos-Israel e reconhecimento da "soberania" marroquina sobre o Sahara Ocidental.

 

2) Se Joe Biden ganhar, o "acordo" será menos provável.

 

A partir de hoje (11 de dezembro) há uma disputa judicial e Biden não foi eleito oficialmente, embora pareça provável que o seja.

E então há que perguntar por que Trump fez esta declaração, apesar do facto de que, em princípio e ainda não oficialmente, ele tenha perdido.

Três hipóteses podem ser formuladas:

 

1) Tenta "comprar" apoiosna ação que tramita pela presidência;

2) Tenta "comprar" a impunidade se perder (alguns especularam em apresentarem ações judiciais contra ele quando deixar a presidência);

3) Trata de deixar a Biden "trabalho sujo".

 

Se a hipótese correta for a (1), veremos em alguns dias.

Se for a (2) ou a (3), vê-lo-emos em alguns meses. Caso contrário, é possível que a (3) seja o pagamento da (2).

 

 V. CONSEQUÊNCIAS

 

As consequências são enormes e podem nos afetar.

 

1) Em primeiro lugar, considerando que Marrocos é "soberano" em "todo" o Sahara Ocidental dá luz verde a um ataque militar marroquino contra o território libertado sob o controlo da República Saharaui fundada pela Frente Polisário.

 

2) Em segundo lugar, se a Argélia apoia a Frente Polisario (como é previsível, em princípio) isso significaria que, se Marrocos for coerente, o apoio à Polisario deveria ser "casus belli" contra a Argélia, abrindo a porta para Marrocos atacar a Argélia.

 

3) Terceiro lugar, ao considerar Marrocos "soberano" em "todo" o Sahara Ocidental, os EUA dão luz verde a Marrocos para ocupar La Güera, a cidade mais ao sul do Sahara Ocidental, agora despovoada e sob controle da Mauritânia. A ocupação de La Güera, cidade quase adjacente à capital económica da Mauritânia, Nouadhibou, envolveria um ataque direto ao exército mauritano.

 

4) Finalmente, para Marrocos, as águas e a plataforma continental do Sahara Ocidental (com as riquezas que guardam) passariam a ser de Marrocos, mas dado que este reconhecimento implica privar a Espanha de parte dessas águas e dessa plataforma continental abre-se o porta a um conflito bélico entre Marrocos contra a Espanha.

 


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