sábado, 2 de janeiro de 2021

Que guerra é esta no Sahara Ocidental?

 


Publicamos dois artigos editados pela plataforma “El Confidencial Saharaui” (ECS) que ajudam a explicar o teatro de operações da guerra no Sahara Ocidental. Marrocos, apesar de contar com uma superioridade militar descomunal, tem sido objetivamente derrotado no campo militar. Estranho?

A primeira guerra de libertação, que durou 16 anos (de 1975 a 1991) — até à assinatura do cessar-fogo, a constituição da MINURSO e a promessa feita pelas Nações Unidas de realização do referendo de autodeterminação passados seis meses —, terminou quando as FAR marroquinas estavam desmoralizadas e quase derrotadas, como veio a reconhecer a própria CIA, agência dos serviços secretos norte-americanos. 

Segundo os cerca de 10 milhões de páginas revelados pela CIA sobre o conflito do Sahara Ocidental em Agosto passado, a maioria dos quais até aí secretos, a Polisario poderia vir a ganhar a guerra a Marrocos. Ao ponto de a frustação de alguns chefes militares da Polisario ter sido tão grande que os levaram a retirar-se, discordando com o acordo, num momento em que poderiam ter forçado o inimigo a uma cedência ainda com maior alcance e profundidade. Vale a pena ler.

 



Quais as estratégias e táticas na Guerra do Sahara Ocidental? 

Mohamed A. (Madrid) - 01/01/2021- ECS — Marrocos, apesar de ter uma enorme superioridade militar, a sua estratégia de colunas fortemente armadas e muros defensivos não conseguiu deter a agilidade mortal do Exército de Libertação Popular Saharaui. A versatilidade e o conhecimento do meio ambiente e a aclimatação a ele tornam-se fatores inteiramente favoráveis ​​aos saharauís.

No início da guerra em 1976, as forças da RASD tiveram de enfrentar dois países muito mais poderosos e armados, a Mauritânia e Marrocos, com a ajuda da França. Esta foi uma desvantagem colossal no campo de batalha, no entanto, o comando militar saharaui, então liderado por Luali Mustafa Sayed, optou por uma estratégia mista baseada na manutenção de uma ofensiva contida contra o elemento forte da coligação, que era Marrocos, e dedicar mais esforços contra o lado fraco, a Mauritânia. Neste contexto, o Exército de Libertação Saharaui intensificou os seus ataques na Mauritânia até atingir o seu objectivo, de provocar a retirada da Mauritânia depois de ter quebrado a sua economia e regime político, provocando a rotura do acordo com Marrocos e o consequente reconhecimento da República Árabe Saharaui Democrática (RASD).

Marrocos ficou bastante preocupado com a retirada da Mauritânia, obrigando-o a ocupar mais território saharauí e, portanto, mais área a proteger, sem contar com a colaboração da Mauritânia. A estratégia saharaui deu certo e permitiu à RASD concentrar, desde então, todos os seus esforços no ataque às forças marroquinas a partir de 1979, com uma táctica militar que combina surpresa, agilidade e um conhecimento hábil do território, bem como adaptação ao clima do deserto. Marrocos, apesar da sua superioridade militar, não conseguiu antecipar-se aos ataques desferidos pelos combates da RASD e, no início da década de 1980, optou por uma estratégia defensiva que consistiu em proteger as cidades saharauis economicamente mais importantes. Já aqui são mostradas as verdadeiras intenções por detrás da recuperação do que chamou de “integridade territorial marroquina”.

A coordenação das FAR marroquinas era precária, pois, naqueles anos, Hassán II ainda temia os militares, visto que estes tentaram por duas ocasiões (1970,1971) depô-lo por meio de um golpe de estado, de modo que o monarca não outorgou ao alto comando a capacidade para iniciar operações militares, no que resultou num caos operacional. Assim, a Polisario realizou ataques para penetraram bem fundo em território marroquino, como foi o caso de Tan Tan.

Nesta conjuntura, sem a Mauritânia e ainda sem recorrer à ajuda saudita e israelita para construir o muro, o Exército de Libertação Saharaui concebe uma das maiores ofensivas da sua história, a ofensiva '' Houari Boumedienne '' na qual mobilizou mais de 5.000 militares, conseguindo invadir e ocupar a cidade marroquina de Tan Tan, libertar os seus prisioneiros e destruir tudo. Reconquistaram Tirafiti e Amgala, realizaramm uma emboscada letal no Cabo Juby, voltaram a atacar a cidade de Assa em solo marroquino e ocuparam Dakka, mas o prato mais forte que mostrava que Marrocos estava a perder a guerra veio com a incursão saharaui na cidade de Smara e a libertação de 700 prisioneiros, intervindo então a aviação francesa que obrigou os saharauis a recuar taticamente, no entanto, na sua retirada atacaram ainda a base de Mahbes, conseguindo ocupá-la. A vulnerabilidade marroquina era evidente e a RASD não desistiu. Os próprios marroquinos viram a ferocidade dos combatentes saharauis quando ocuparam as suas cidades e explodiram as suas bases. Estes atentados provocaram uma reunião de emergência no Parlamento marroquino, uma vez que a catástrofe que estava a acontecer não podia ser escondida da opinião pública. Hassan II reconheceu que estavam com dificuldades e destituiu o Coronel Bennani, encarregado do Sahara, pelo Coronel Abrouk em 1979.

Entramos na década de 1980 e Marrocos, ciente da sua ineficácia no controlo do território e forçado pelas duras derrotas sofridas, mais uma vez modifica a sua estratégia; abandona as posições mais pequenas e centra a sua acção militar na defesa do triângulo de maior riqueza do Sahara Ocidental , que inclui Bu Craa [minas de fosfatos], Smara e El Aaiún, através do reforço de unidades marroquinas com armas de todos os tipos. No entanto, as FAR marroquinas continuaram a demonstrar a sua incapacidade de realizar operações militares complexas contra um inimigo convicto como a Polisario.


O muro marroquino: 2.700 km, uma defesa impossível de defender


Marrocos, desgastado pela intensa guerra em que foi surpreendido com a capacidade saharaui, conclui que a vitória militar é praticamente impossível. Neste contexto, a estratégia do Exército de Libertação Saharaui teve o inimigo invasor nas cordas e obrigou-o, de novo, a mudar os seus planos de guerra. O comando militar marroquino decidiu adotar uma nova estratégia que consistia em adotar uma atitude defensiva através de posições estáticas. Entre agosto de 1980 e abril de 1987, construiu seis muros formados por aterros, fortificações armadas, cercadas por minas antipessoal e com amplo detector de movimentos. Este trabalho colossal inspirado na linha de Bar Lev representou um enorme gasto militar, humano e económico e reflete, em grande escala, o nível de confusão em que o comando militar marroquino se encontrava. O muro militar foi erguido com o objetivo de evitar as incursões saharauis, e para que, caso ocorressem, os combatentes saharauis fossem cercados e aniquilados. No entanto, no momento da verdade, foram ineficazes, uma vez que a sua implementação não foi capaz de impedir as penetrações do Exército de Libertação Saharaui. Iniciadas sem cessar a partir de Setembro de 1983, e sobretudo a partir de 1986, sendo praticamente superada a situação criada com os muros após a Batalha de Um Dreiga, em outubro de 1989, quando unidades militares saharauis invadiram mais de 50 quilómetros para lá das muralhas defensivas, demonstrando a sua ineficácia militar. A partir daqui, Marrocos começou a pensar seriamente num cessar-fogo, ciente de que o tempo estava jogando a seu favor.

Como se pode verificar, o Exército de Libertação Saharaui soube adaptar-se às condições impostas por Marrocos e repensar continuamente a sua acção militar até atingir o seu objectivo. A estratégia combinada de velocidade e ação aplicada a uma formidável vontade de sacrifício fez com que o moral dos marroquinos se afundasse, com suas consequentes derrotas. Por outro lado, no que diz respeito aos muros militares, a história nos mostra que seu benefício não é proporcional ao seu custo. Temos a Linha Bar Lev, o Muro do Atlântico, a Linha Maginot e a Linha Siegfried, e nenhum deles impediu a penetração do lado inimigo, pelo que o muro militar marroquino não ia ser uma exceção a esta regra histórica.




Enquadradas nessas condições, duas vantagens decisivas emergem para o ELPS no campo de batalha; A primeira é que por ter a iniciativa ofensiva, impõe ao inimigo onde e quando cada a batalha será travada, esta vantagem aumenta ainda mais se tivermos em conta que os saharauis conhecem o território e se adaptam às inclemências oferecidas pelo ambiente desértico, sendo consequentemente o horário de verão o pesadelo das FAR. A segunda vantagem é que, por serem posições fixas, os combatentes da RASD sabem a todo o momento onde estão os marroquinos, enquanto os marroquinos nunca sabem onde estão os seus opositores, dada a mobilidade das forças da Polisario. Esta vantagem constitui um fator determinante na realização de um ataque imprevisto ou emboscada, sofridos pelas FAR até à exaustão. Esses ataques, como vemos atualmente nesta segunda guerra, acabam desmoralizando o inimigo, mantendo-o em constante estado de alerta, com pequenas perdas que se tornam significativas com a evolução do conflito.

Atualmente, vemos como a estratégia de Marrocos é renunciar a todas as iniciativas e a sua ação militar está enquadrada apenas em repelir os ataques, sem sair do muro, dando ao ELPS toda a iniciativa e liberdade de ação, embora por enquanto, não de movimento. No futuro; determinação, audácia, surpresa e agilidade serão a espinha dorsal da táctica saharaui até penetrar na parede marroquina, o que, como mostra a história, será uma questão de tempo. Esses elementos deverão ser combinados de acordo com os objetivos políticos e militares até que o propósito desejado seja alcançado.

 



Como o Exército de Libertação Popular Saharaui trava a guerra?

 

02-01-2021 - Por A, I/ECS - O censo espanhol de 1974 contabilizou cerca de 75.000 saharauis com direito de voto no território do Sahara espanhol. Depois do êxodo, da guerra (1976-1991) e de 29 anos de exílio na hamada argelina, estima-se que o povo saharaui seja constituído por cerca de meio milhão de pessoas que contam com um território de 266.000 km2 (cerca de 3 vezes o território de Portugal) para constituir a sua república independente.

Diante desse objetivo sagrado os saharauis têm que enfrentar uma ditadura que despoticamente dispõe da vida de mais de 35 milhões de marroquinos e um exército de cerca de 250.000 homens. Não é necessário ser um especialista militar para perceber o desequilíbrio esmagador de forças a favor do regime marroquino, por isso há que nos interregarmos: Como faz o povo saharaui a guerra?




Desde a década de 1970, a estratégia tem sido a guerra de guerrilha. Tendo por base a experiência da esquerda revolucionária mundial, os soldados saharauis atacaram as pensadas e ‘pesadas’ colunas marroquinas com ataques relâmpagos. Provocaram perdas materiais e humanas importantes, fizeram prisioneiros e desencorajaram as tropas marroquinas que se viram indefesas num deserto gigante.

Após anos de guerra, o regime marroquino recebeu a inestimável ajuda israelita e dinheiro saudita que se materializou no maior muro defensivo do mundo.

Pela primeira vez na sua história, os nómadas saharauis já não podiam circular livremente no seu território e, da mesma forma, era necessário, também para eles, repensar a guerra. Não demorou muito para que os astutos "Polisarios" descobrissem as vulnerabilidades da muralha: a baixa moral dos soldados que a guardavam, o seu tamanho, o peso das unidades que a protegiam e o tempo inclemente. Logo aprenderam a usar a noite para desarmar minas, colocar explosivos para explodir secções inteiras do muro e coordenar atividades e manobras de distração para penetrar no(s) ponto(s) escolhido(s).

Descartando o tradicional confronto através da ocupação de praças e posições, esgotar o inimigo passou a ser a tática para vencer a guerra: atacar com artilharia, explodir parte do muro, entrar onde o inimigo menos espera, cercar, destruir e sair em tempo recorde. Um trabalho rápido e limpo que exige enormes esforços de coordenação e observação que o exército do povo sarauí desenvolve com a paciência que caracteriza os saharauis.

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