Autor: Yahia H. Zoubir - Bolseiro no Centro Brookings Doha e Professor Sénior de
Estudos Internacionais e Director de Investigação em Geopolítica, Kedge
Business School
The Conversation - 12 setembro 2021 – A ruptura
das relações diplomáticas entre a Argélia e Marrocos em agosto é o produto de
uma longa história de tensão. As duas nações nunca tiveram longos períodos de
amizade, não obstante os muitos fatores que as aproximam. Com efeito, pertencem
à mesma região do Magrebe, partilham a mesma religião (Islão sunita e rito Malequita)
e identidade, e falam um dialecto semelhante. Partilham também uma fronteira
comum de 1.550 km.
De facto, os povos argelino e marroquino estão
tão próximos que é difícil distingui-los. Mas, as dissemelhanças históricas,
políticas e ideológicas desde a sua respetiva independência pesam muito nas
relações entre estes países "fraternais".
Como se pode explicar as tensões que têm
caracterizado as suas relações, que agora passaram por uma segunda ruptura nas
relações diplomáticas? A primeira, iniciada por Marrocos, foi de 1976 a 1988.
Investiguei as relações entre a Argélia e
Marrocos durante mais de 40 anos e publiquei estudos sobre o tema. As relações
entre os governos argelino e marroquino raramente têm sido cordiais. Isto
deve-se à natureza diferente da sua luta anti-colonial, aos seus sistemas
políticos díspares, e a orientações ideológicas opostas.
Na última década, Marrocos explorou a letargia da
diplomacia argelina e a paralisia do sistema político para fazer avançar os
seus interesses, muitas vezes em detrimento da Argélia. O reavivar da
diplomacia argelina e a sua decisão de contrariar o que considera serem os
"actos hostis" de Marrocos resultaram na última ruptura.
A sua tumultuosa relação tem sido um impedimento
à integração da região, o que pode trazer benefícios consideráveis a ambos. A
Argélia, Líbia, Mauritânia, Marrocos e Tunísia fundaram a União do Magrebe
Árabe em 1989. Mas desde 1996, a união tornou-se moribunda devido a repetidas
tensões nas relações marroquino-argelinas.
As divergências dos últimos anos são
potencialmente muito mais consequentes. Podem ameaçar a estabilidade de toda a
região do Norte de África.
História das relações argelino-marroquinas
Os nacionalistas argelinos tinham relativamente
boas relações com o rei Mohamed V de Marrocos. Ele morreu em 1961, um ano antes
da Argélia ganhar a sua soberania. Marrocos tornou-se independente em 1956 e a
Argélia em 1962.
O filho do Rei Mohamed V, o Rei Hassan II, que
lhe sucedeu, fez reivindicações sobre o território argelino. E invadiu o país
em 1963. Isto resultou na morte de centenas de combatentes mal equipados argelinos.
Embora curta, esta guerra moldou a mente do ‘establishment’
político-militar argelino. Houve uma era de cooperação entre 1969 e meados dos
anos setenta. Mas o conflito no Sahara Ocidental, invadido por Marrocos sob a
chamada Marcha Verde em 1975, resultou noutra era de tensões.
De facto, em março de 1976, o reconhecimento pela
Argélia da República Árabe Saharaui Democrática, proclamada pelo movimento
nacionalista saharaui, a Frente Polisario, viu Marrocos quebrar as relações
diplomáticas com a República argelina. Muitos outros países africanos
reconheceram a República Árabe Saharaui Democrática. As relações foram
restabelecidas apenas em maio de 1988.
O reatamento das relações baseou-se numa série de acordos. Estes foram:
- um compromisso de relações duradouras de paz
- boa vizinhança e cooperação
- o retomar da construção do Grande Magrebe Árabe
- a não interferência da Argélia nos assuntos
internos de Marrocos
- a resolução do conflito do Sahara Ocidental
através de um referendo sobre a autodeterminação.
Do ponto de vista da Argélia, Marrocos renegou todos eles.
No fundo, tem havido uma acumulação contínua de
tensões argelino-marroquinas.
Tensões crescentes
Nos anos 90, a Argélia passou por uma crise maior
do que alguma vez tinha conhecido. O país foi devastado por conflitos civis que
se opunham ao Estado, e por grupos islâmicos armados. Em 1994, no meio dessa
crise, as autoridades marroquinas acusaram falsamente os serviços secretos
argelinos de estarem por detrás dos mortíferos ataques terroristas no hotel
Asni, em Marraquexe.
Marrocos impôs vistos aos argelinos, incluindo
aos detentores de outra nacionalidade. A Argélia retaliou ao impor vistos e
fechou as suas fronteiras terrestres com Marrocos. Em finais de 1995, Marrocos
congelou as instituições da União do Magrebe Árabe devido ao apoio da Argélia à
República Árabe Saharaui Democrática.
Uma mudança nas relações parece ter ocorrido
quando Abdelaziz Bouteflika se tornou presidente da Argélia em abril de 1999.
Ele planeou encontrar-se com o rei Hassan II para resolver as diferenças. Mas o
rei morreu em julho desse ano. O seu sucessor Mohammed VI não mostrou qualquer
inclinação para uma resolução do Sahara Ocidental nos termos das Nações Unidas.
Surpreendentemente, durante a sua presidência,
Bouteflika não só negligenciou a questão do Sahara Ocidental, como também
instruiu os funcionários para não responderem a quaisquer ações hostis
marroquinas.
Após a sua remoção forçada em abril de 2019, a
Argélia reiterou o seu apoio ao princípio da autodeterminação.
Por seu lado, Marrocos tem feito pressão junto da
União Africana, Europa e EUA para que apoiem as suas reivindicações de
soberania sobre o Sahara Ocidental. Dois acontecimentos nos últimos 10 meses
agravaram as tensões. O primeiro foi um ataque a manifestantes saharauis em
El-Guergarat, a zona tampão no sul do Sahara Ocidental, pelas tropas
marroquinas. Depois houve um tweet do Presidente Donald Trump anunciando o
reconhecimento pelos EUA da soberania marroquina no Sahara Ocidental.
Estes factos contribuíram em parte para a decisão
da Argélia de romper as relações diplomáticas com Marrocos.
Trump tinha trocado o Sahara Ocidental ocupado
por Marrocos em troca da normalização das relações de Marrocos com Israel.
Outros Estados árabes fizeram a mesma coisa no quadro dos Acordos de Abraão
mediados pelo genro de Trump, Jared Kushner.
Antes dos Acordos de Abraão, os funcionários
marroquinos demonstraram uma hostilidade implacável para com a Argélia, à qual
o governo argelino não respondeu. O tweet do Trump em 10 de dezembro parecia
galvanizar a atitude hostil de Marrocos para com a Argélia.
A Argélia entendeu ambas as decisões como uma
ameaça real à sua segurança nacional.
O limiar de tolerância de Argel contra atos
considerados hostis surgiu em meados de julho, quando o embaixador de Marrocos
na ONU distribuiu uma nota expressando apoio a um grupo que luta pela secessão
da região costeira de Cabília, na Argélia. O grupo é considerado um grupo
terrorista pela Argélia. Isto fez com que a Argélia chamasse o seu embaixador
em Marrocos para "consultas" e pedisse a Marrocos que esclarecesse se
esta era a única e simplesmente uma posição do embaixador ou se era do próprio
governo. Nunca recebeu uma resposta.
Outro ato hostil aos olhos da Argélia foi um
vasto escândalo de espionagem revelado por um consórcio de jornais
internacionais e organizações de direitos humanos. Constataram que Marrocos
tinha espiado mais de 6.000 argelinos, incluindo muitos altos funcionários
políticos e militares.
A Argélia decidiu quebrar as relações
diplomáticas com Marrocos a partir de 24 de Agosto.
Implicações da ruptura
A ruptura pode resultar em realinhamentos
geopolíticos. Mas tudo dependerá do facto de Marrocos aumentar as tensões e
utilizar a carta israelita contra a Argélia ou se, prelo contrário, vai
procurar reduzir as tensões.
A Argélia já começou a reforçar o seu controlo na
fronteira argelina marroquina. Poderá criar sérios problemas a Marrocos se
decidir expulsar da Argélia as dezenas de milhares de marroquinos (muitos dos
quais são emigrantes ilegais).
Há também implicações mais amplas.
A ruptura marcou o toque de finados da União do
Magrebe Árabe, que já se encontrava moribunda. As relações tensas significarão
ou que o agrupamento regional permanece num impasse ou que um novo agrupamento
poderá emergir.
E é de esperar que as rivalidades entre a Argélia
e Marrocos se intensifiquem na União Africana sobre o estatuto de observador de
Israel na UA, e sobre o Sahara Ocidental.
No domínio económico, o ministro argelino da
Energia anunciou em finais de agosto que o contrato para o gasoduto
Magrebe-Europa (GME), que passa por Marrocos, não será renovado depois de
expirar a 31 de outubro de 2021. A decisão foi agora confirmada. O gasoduto
parte dirctamente do noroeste da Argélia e atravessa depois o Mediterrâneo.
Em vez disso, a Argélia irá distribuir gás natural
para Espanha e Portugal através do gasoduto, MEDGAZ.
O termo impacto desta ruptura é imprevisível. O
que é certo, porém, é que a rivalidade argelino-marroquina irá intensificar-se.
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