Artigo de José Manuel Pureza - Público 06-08-2024
A rejeição do legado do trumpismo, no plano das relações internacionais, pela grande maioria dos governos europeus tem sido expressa com uma justificação muito relevante. Para esses governos, o mandato de Donald Trump terá constituído um ataque continuado contra a “ordem internacional fundada em regras”, construída após a II Guerra Mundial. Outros, como Putin, terão seguido Trump nesse ataque, algo que Madrid, Paris ou Lisboa, tomam oficialmente como uma perversão política.
Esta arrumação – de um lado os governos defensores da ordem internacional fundada em regras, do outro os seus inimigos, liderados por Trump e Putin – é um disfarce da realidade. Um olhar atento sobre os factos mostra como governos que se inflamam na defesa retórica da ordem internacional fundada em regras frequentemente violam as regras mais elementares dessa ordem. Querem um exemplo? Vejam o que se está a passar com o Sahara Ocidental.
Em fins de 2020, a administração Trump declarou reconhecer a soberania do ocupante marroquino sobre aquele território, violando flagrantemente as regras básicas do Direito Internacional consagradas na Carta das Nações Unidas e em repetidas resoluções da organização. Mas, enfim, era Trump, um inimigo da ordem internacional fundada em regras e, por isso, não foi propriamente uma surpresa.
Dois anos depois, o governo de Madrid decidiu seguir os passos de Trump, tornando público o seu apoio ao plano de Marrocos de uma suposta autonomia especial do Sahara Ocidental no quadro da soberania marroquina. Ordem internacional fundada em regras? Não, a regra elementar do direito dos povos à autodeterminação foi flagrantemente preterida pelas conveniências do jogo político e da diplomacia dos negócios.
Dois anos mais e temos agora Macron a imitar Sánchez – e, com isso, a seguir o caminho aberto por Trump – assumindo o apoio oficial francês ao plano marroquino de “autonomia com ocupação”. Defesa coerente da ordem internacional fundada em regras? Não. Defesa inflamada no caso da Ucrânia, silêncio cúmplice no caso da Palestina, alinhamento com o trumpismo no caso do Sahara Ocidental.
Há dias, na abertura do período de sessões do Comité Especial das Nações Unidas encarregado de examinar a situação relativa à aplicação da Declaração da Concessão da Independência aos Povos e Países Coloniais (Comité dos 24), vários países africanos (Angola, Moçambique, Congo, África do Sul, Namíbia, entre outros) disseram aquilo que se espera ouvir aos defensores da ordem internacional fundada em regras: o Sahara Ocidental é a última colónia que ainda não alcançou a sua liberdade e o único caminho para cumprir as regras básicas do Direito Internacional é levar a cabo um referendo de autodeterminação.
O governo português tem sido especialmente vocal na acusação à Rússia de que, na Ucrânia, atenta inaceitavelmente contra a ordem internacional fundada em regras. Pois bem, relativamente ao Sahara Ocidental – onde se joga o respeito pela mesmíssima norma fundamental do direito à autodeterminação que Moscovo nega a Kiev – vai o governo português defender coerentemente a ordem internacional fundada em regras ou vai afinar pelo diapasão trumpista de Madrid e de Paris? A escolha é clara e é mesmo entre a coerência e o cinismo.
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José Manuel Pureza é Professor Catedrático de Relações Internacionais na Universidade de Coimbra
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