quinta-feira, 14 de abril de 2011

Sahara-direitos humanos: EUA deixa França a ridículo


Alain Juppé, MNE da França

O professor constitucionalista Carlos Ruiz Miguel «arrasa» no seu blog a argumentação do MNE francês, Alain Juppé, sobre a questão da violação dos DDHH no Sahara Ocidental.

A cumplicidade com o “majzén” (1)  alimenta-se de mentiras. E como, é sabido, é mais fácil apanhar um mentiroso que um coxo…. Mas o problema agrava-se quando quem apanha o mentiroso é alguém muito mais poderoso. Então, de pouco serve a soberba. E isso foi o que aconteceu ao novo ministro de Negócios Estrangeiros francês, Alain Juppé (que, não o esqueçamos, foi já condenado por corrupção num negócio com Jacques Chirac, o grande defensor do “majzén” em França). Para Juppé, isso de violações de direitos humanos pelo ocupante marroquino no Sahara Ocidental, são exageros. Lamentável é que, apenas passadas duas semanas após estas declarações, os seus colegas dos EUA o tenham desautorizado.

I. A FRANÇA CORRUPTA DEFENDE O “MAJZÉN”
É curioso, mas são os políticos franceses mais envolvidos em corrupção os que, com mais afinco, defendem o “majzén”. O caso mais extremo e, por isso dificilmente superável, é o do ex-presidente Jacques Chirac. E o mais recente é o daquele que já foi o "delfim" de Chirac, Alain Juppé, condenado por corrupção em 2004.
No dia 30 de Março, em sessão da Assembleia Nacional francesa, abordou-se, entre outros assuntos, o da violação dos direitos humanos no Sahara Ocidental ocupado por Marrocos. O deputado Jean-Paul Lecoq perguntou ao ministro francês a sua posição sobre a questão... e o ministro limitou-se a dizer que Lecoq não passava de um "exagerado" ou um "fantasioso".
Transcrevemos parte da intervenção do deputado Lecoq durante o debate, assim como a resposta de Juppé:

— Jean-Paul Lecoq:
A primeira mudança que a União Europeia deveria empreender é cortar com a política de "dois pesos e duas medidas", uma política de geometria variável que consiste em exigir o respeito das regras democráticas num caso e aceitar que as mesmas sejam espezinhadas alegremente num outro. Ao evocar a democracia e os direitos humanos para a Costa de Marfim, o Darfur e (...) deixar para trás Marrocos (...) ditar a sua lei no Sahara Ocidental (...) negando o Direito Internacional, a União Europeia vê-se desacreditada e repudiada por uma grande parte dos povos do Sul, em especial no mundo árabe. Para sair destes "dois pesos, duas medidas", a União Europeia tem que regressar aos seus princípios. Para o fazer, convém que saia das relações de complacência e não transija quando se trata do respeito pelos valores da democracia.
(...)
Sr. Ministro, ouvi todas as suas declarações sobre a evolução que conhece Marrocos. As evoluções democráticas, que saúdo com todo o gosto com V. Exa. se acaso vierem a ser concretizadas, são boas para o povo marroquino. No entanto, isso não autoriza Marrocos a não respeitar o Direito Internacional e os direitos humanos nos territórios ocupados do Sahara Ocidental.
A população marroquina manifestou-se de forma maciça para exigir o desenvolvimento da democracia.
Não esqueçamos que em Outubro e Novembro tiveram lugar importantes manifestações nos arredores de El Aaiún – o que talvez tenha constituído um sinal…. Cerca de 20.000 pessoas concentraram-se então para reclamar o direito de serem reconhecidos, a ser respeitados: o direito a trabalhar e a residir como os marroquinos que vivem nesta zona. Em resposta, o rei de Marrocos arrasou esta concentração de 20.000 pessoas. Não vale a pena explicar-lhe o que se seguiu!
Espero que a França possa também intervir ante o rei de Marrocos, no âmbito deste processo democrático para que os direitos humanos sejam respeitados no Sahara Ocidental.

- Alain Juppé:
O Senhor Lecoq fez referência com muita severidade ao que ocorre em Marrocos. Não conheço nenhum relatório de nenhuma ONG internacional séria que tenha constatado as violações dos Direitos Humanos no Sahara Ocidental, tal como o senhor apresentou.
A nossa posição é conhecida e clara; reiterei-a ao ministro marroquino dos Negócios Estrangeiros, a quem recebi esta manhã. Cremos que Marrocos fez esforços consideráveis, propondo, em particular, um estatuto de autonomia que lhe permite aproximar-se ao que as Nações Unidas desejam. O Governo marroquino acaba de tomar novas medidas para garantir o seguimento do respeito dos Direitos Humanos neste território. Ainda assim, instámo-lo a prosseguir o trabalho, dizendo-lhe que o statu quo não é suportável e que continuaremos apoiando os esforços de Marrocos nesse sentido.

II. OS RELATÓRIOS DE ONG'S QUE O MINISTRO FRANCÊS DIZ DESCONHECER
Em França trataram de recordar ao Sr. Ministro aquilo que parece estranho que não se conheça, para não dizer impossível, sabendo-se que a diplomacia francesa é um serviço profissional e bem documentado.
Sobre os acontecimentos de Gdeim Izik há três relatórios elaborados por ONG's saharauis presentes no território:
- ASVDH (Associação de Vítimas das Violações dos Direitos Humanos pelo Estado Marroquino);
- CODESA (Colectivo Saharaui de Defensores dos Direitos Humanos); e
- CODAPSO (Comité de Defesa do Direito à autodeterminação do Sahara Ocidental).

Mas talvez ao Sr. Juppé estes relatórios, exaustivamente documentados, não lhe pareçam bem, já que são elaborados pelas próprias vítimas.

Parece no entanto mais difícil que a sempre eficaz e documentada diplomacia que dirige o Sr. Juppé desconheça os relatórios de:
- Human Right Watch;
- Amnesty International; e
- Centro Robert F. Kennedy para a Justiça e os Direitos Humanos.

O assunto é tanto mais difícil de acreditar, quando consta que a Human Rights Watch, juntamente com outras três organizações, dirigiu uma carta à ministra de Negócios Estrangeiros francesa, Michèle Alliot-Marie, denunciando estes abusos, carta que não consta que se tenha perdido nalguma das viagens de férias de Alliot-Marie à Tunisia de Ben Ali.

De tudo o que se disse, a conclusão que cabe extrair é que:
- o Sr. Juppé mente (como já mentiu quando foi condenado por corrupção);
- o Sr. Juppé deve de imediato destituir os responsáveis de documentação do seu ministério (coisa que não fez até agora).

III. NÃO SÃO SÓ "ONG'S": O DEPARTAMENTO DE ESTADO DOS EUA DENUNCIA AS VIOLAÇÕES DE DIREITOS HUMANOS NO SAHARA OCIDENTAL OCUPADO
Mas o Sr. Juppé cometeu um pequeno erro de cálculo (outro mais, como o que lhe valeu a sua condenação por corrupção em 2004) ou então passaram-lhe uma rasteira em Washington.
Porque no dia 8 de Abril, nove dias depois de suas escandalosamente pouco credíveis declarações, o Departamento de Estado dos EUA (ou seja, o "ministério de Negócios Estrangeiros" norte-americano) publicou um relatório sobre a situação dos direitos humanos no Sahara Ocidental no ano de 2010.
Basta recolher esta frase que desautoriza totalmente o Sr. Juppé:

Tem havido relatos credíveis de que as forças de segurança estão implicadas em tortura, espancamentos e outros maus-tratos aos presos. Human Rights Watch, Amnesty International e outras ONG's locais continuaram a relatar abusos, especialmente aos partidários da independência saharaui.

Como se isso já não fosse suficiente, esta segunda-feira, 12 de Abril, a Comissão de Direitos Humanos do Congresso norte-americano pediu à Secretária de Estado, Hillary Clinton, que apoie a atribuição à MINURSO da competência em matéria de vigilância dos direitos humanos. Em carta enviada a Clinton, diz a Comissão:

“Dada a muito precária e vulnerável situação do povo saharaui, é fundamental que o governo dos Estados Unidos juntamente  com o enviado pessoal do Secretário-Geral para o Sahara Ocidental e outras partes interessadas abordem amplamente a situação dos direitos humanos na região durante a sessão de Abril
(...)
Os EUA deveriam jogar um papel activo na criação de um organismo permanente, neutral e internacional para a investigação e o controle dos direitos humanos no Sahara Ocidental".

IV. SERÃO OS EUA COERENTES COM AS SUAS INVESTIGAÇÕES?
Estamos em Abril, e agora que o Conselho de Segurança das Nações Unidas se vai reunir para estudar o mandato da MINURSO (Missão das Nações Unidas para o Referendo no Sahara Ocidental), a pergunta que se coloca é esta:
Será a embaixadora dos EUA nas Nações Unidas, Susan Rice, coerente com o que o seu próprio Governo denuncia e exigirá que as Nações Unidas vigiem o respeito dos direitos humanos no Sahara Ocidental?

(1)             (Majzen ou Majzén (المخزن) é uma palabra árabe que significa armazém e que designava antigamente o Estado marroquino. Actualmente refere-se à sua oligarquia ou o governo sombra, o círculo do Palácio real).

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