A Mauritânia é um país que interessa muito a Espanha. É um dos mercados
de Espanha através das ilhas Canárias e a porta de entrada de Espanha para os
mercados da África Ocidental. E, no entanto, pouco se informa, muito pouco se
fala, sobre esse país. No dia 13 de outubro o Presidente da Mauritânia, Mohamed
Uld Abdelaziz, foi ferido por vários disparos de bala no momento em que falava
a um grupo de militares. Quase ninguém em Espanha falou do assunto. Mas vão-se
acumulando os indícios de que houve uma tentativa por parte de Marrocos de o
assassinar. Motivo? A Mauritânia decidiu não se vergar à política do majzen no norte de África.
I. O PRESIDENTE MAURITANO FERIDO À BALA NUM "INCIDENTE" A 13
DE OUTUBRO
Só um jornalista espanhol, que me conste (se não for assim gostaria que
me retificassem) informou sobre os disparos contra o Presidente mauritano:
Atentado para acabar com a sua vida ou disparo por
engano? O Presidente da Mauritânia, Mohamed Ould Abdelaziz, de 56 anos, foi
baleado, sábado à tarde, em circunstâncias confusas e no domingo foi evacuado
para París em avião-ambulância. A sua vida não corre perigo.
(...)
Horas antes fora o ministro da Comunicação, Hadi Ould El
Mahjoub, que compareceu ante as câmaras para afirmar que o presidente estava
“ligeiramente ferido”, baleado, por causa de disparos efetuados por engano “por
uma unidade militar que não sabía que se tratava do cortejo presidencial”.
Desde a cama do hospital o próprio presidente mostrou
“compreensão pela reação do soldado que disparou”. Apesar disso, dois oficiais
do Exército foram detidos pela sua responsabilidade no incidente. A explicação fornecida
é difícil de acreditar. A grande movimentação da Guarda Presidencial, apoiada
por outras forças de segurança, em redor do hospital levam a duvidar da sua sua
veracidade.
O incidente teve lugar em Tweila, a uns 40 quilómetros
ao norte de Nuakchot. A comitiva presidencial tinha saído de Tidjikja, no
centro da Mauritânia, onde o presidente possui uma quinta em que costuma passar
muitos fins-de-semana. Para além de Abdelaziz ficaram feridos vários elementos
da sua escolta, segundo o web Sahara Media. Outras fontes indicam que o Presidente
foi ferido por dois disparos, um no braço e outro no pulmão, e que a operaão terá
permitido a extração de ambos os projéteis.
Ignacio Cembrero, o autor desta informação, aludia no final do seu artígo
que Uld Abdelaziz tinha lutado na Mauritania contra a chamada AQMI.
Há tempo que tenho denunciado os indicios de que a AQMI está controlada
pelos serviços secretos do majzen.
II. O MAJZEN MARROQUINO
ACUSADO DE ESTAR POR DETRÁS DO "INCIDENTE"
A imprensa mauritana, nos dias posteriores ao acontecimento, publicaram
informações segundo as quais os responsáveis da Mauritânia acusavam Marrocos de
ter organizado o atentado contra o Presidente mauritano.
A 11 de novembro de 2012, a página mauritana "Aqlam" informava
que o Presidente mauritano tinha recusado no hospital de Paris, onde convalescia,
a visita de um enviado oficial marroquino.
Um dia depois, o diário marroquino "Demain" informava que o
enviado marroquino era Riad Ramzi, encarregado de negócios da embaixada de Marrocos
em França (cujo posto de embaixador estava por preencher nesse momento). Nem a
embaixada marroquina em Paris nem o Ministério do Interior mauritano quiseram dar
explicacações à imprensa que os questionou sobre o assunto.
A 13 de novembro de 2012, o diário mauritano "El Ajbar"
publicava uma informação segundo a qual as autoridades mauritanas fizeram saber
a algunos Estados amigos as suas suspeitas de que Marrocos teria estado por
detrás da tentativa de liquidar o Presidente Uld Abdelaziz.
A imprensa mauritana revelou que Mohamed VI não havia contactado com o Presidente
mauritano, nem por telefone nem por escrito, para o felicitar depois de ter
escapado ao incidente do dia 13 de outubro passado.
A 18 de novembro, o diário argelino "El Watan" apontava que o
atentado podia ser obra conjunta do Qatar (com "Q", por favor) e de Marrocos.
Segundo o "El Watan", o interesse do Qatar foi o de eliminar um
presidente que resistira aos intentos de desestabilização promovidos por grupos
islamistas armados, como o "MUYAO" financiado pelo Qatar na opinião
de alguns serviços de inteligência ocidentais, refere o diario argelino.
O interesse qatarí conjugava-se com o interesse marroquino pois, segundo
este diário argelino, a dinastia alauita tinha tentado, sem êxito, que a Mauritânia
se alinhasse à posição marroquina no conflito do Sahara Ocidental.
III. O POUCO CREDÍVEL DESMENTIDO OFICIAL MAURITANO
No dia 20 de novembro, o Presidente Uld Abdelaziz concedeu uma
entrevista à emissora "France 24". Nesta entrevista, questionado
sobre os disparos de que fora alvo, afirmou que o que haviam declarado oficialmente
as autoridades mauritanas era "verdadeiro". O Presidente Abdelaziz
desmentiu que se tratasse de um atentado "terrorista". Pois bem, em nenhum
momento da entrevista foi mencionada expressamente a hipótese de uma implicação
de Marrocos que, todavia, não foi expressamente rejeitada, embora o tivesse
sido implícitamente. Não obstante, a expressão física de Abdelaziz quando
reiterava a versão oficial, produz uma certa desconfiança sobre a veracidade das
suas palavras.
O facto é que, diplomaticamente, a decisão de acusar os serviços
secretos marroquinos do atentado é algo de gravíssimo. Num contexto regional tão
tenso como o norte-africano uma tal acusação, ainda que baseada em dados
indesmentíveis, produziria uma comoção política internacional de consequências
difíceis de calcular. É verosímel pensar que, ainda que a hipótese da autoria dos
serviços secretos marroquinos corresponda à verdade, o governo mauritano não tivesse
nenhum interesse em denunciá-la OFICIALMENTE, sobretudo quando essa tentativa
de atentado resultou fracassada. A postura mais inteligente, em tais casos, não
é tanto a de denunciar oficialmente os servicios secretos do majzen, mas a de "tomar nota, registar"
e "atuar em consequência".
E isso parece que foi o que aconteceu.
No dia 21 de dezembro de 2012, Abdalá Baha, ministro de Estado marroquino
e vicepresidente do partido islamista marroquino PJD, visitou a capital
mauritana. Allí foi para participar no congresso do partido islamista mauritano
"Tauasul" (partido que, por certo, defende as teses do majzen no conflito do Sahara Ocidental).
Em Nuakchott concedeu uma entrevista ao "El Ajbar" e nela afirmou que
as afirmações de uma implicação de Marrocos nos disparos contra Uld Abdelaziz são
"uma fabricação e uma pura mentira".
O problema é que Abdalá Baha em relação a estas acusações disse também
que
"não está nos hábitos de Marrocos nem faz parte
da Ética marroquina realizar ações como esta
(...)
nego taxativamente este assunto"
A pergunta que devemos fazer é: porquê, para refutar a acusação, o ministro
marroquino não utilizou as palavras do presidente da Mauritânia?
Talvez porque nem o governo marroquino acredita nelas.
"Yabiladi", uma publicação marroquina que comunga da política
expansionista marroquina do Makhzen, falava
no dia 26 de dezembro que "ainda não estão elucidadas as circunstâncias do
incidente de 13 de outubro." O facto de, no próprio Marrocos, se continuar
a falar sobre "circunstâncias ainda não elucidadas " demonstra que o
alegado "desmentido" do próprio Presidente mauritano não é aceite
como digno de crédito por ninguém. Além disso, esta publicação marroquina ("Yabiladi")
assume que este "incidente" estreitou o entendimento consolidado
entre Nouakchott e Argel.
IV. ASSASSINATO, INSTRUMENTO POLÍTICO DO MAJZEN
As declarações do ministro Abdalá Baha só se podem explicar ou por ignorância
ou por cinismo. E a ignorância é difícil de acreditar neste caso.
O facto é que o assassinato tem sido um instrumento utilizado pelo majzen. Recordemos, sem ir mais longe,
os seguintes casos:
- sequestro, tortura, assassinato e desaparecimento, em París, de Mehdi
Ben Barka, em 1965, o mais importante adversário político de Hassán II;
- assassinato do general Ahmed Dlimi, ex-número 2 de Hassán II, num
"acidente" de viação em Marrakech;
- assassinato em Málaga de Hicham Mandari, em 2004, o maior perigo nesse
momento para Mohamed VI;
- inexplicado "acidente" de Hamidu Laanigri em setembro de
2011.
A esta lista se poderiam acrescentar mais nomes. Como recorda a publicação
digital independente marroquina "Demain", a esta lista poder-se-ia
acrescentar o nome de Abdellah El Hattach, conselheiro do presidente do grupo de
Madia "Massae Media", que sofreu uma tentativa de assassinato. E não
apenas esse. "Demain" "recorda" o ministro islamista
marroquino Abdalá Baha que, juntamente com o atual "primeiro-ministro"
islamista marroquino, eram militantes de um grupo islamista violento, a
"Shabiba Islamía" que, em 1975, assassinou um opositor político que (oh,
casualidade!) se opunha tanto a Hassán II como aos islamistas): Omar Benyelún.
V. O PRESIDENTE MAURITANO RECEBE UM MINISTRO SAHARAUI... E RECUSA-SE A
RECEBER UM MINISTRO MARROQUINO
Como se tudo o que dissemos anteriormente fosse pouco, acrescentemos um
dado final.
Enquanto o presidente e o ministro de Exteriores mauritano receberam o ministro
de Negócios Estrangeiros da República Saharaui (RASD), Mohamed Salem Uld Salek,
no dia 21 de dezembro de 2012, ... o mesmo Presidente mauritano recusava-se a receber
o ministro marroquino Abdalá Baha que se encontrava na capital mauritana para
participar no congresso do partido islamista mauritano que decorreu de 20 a 23
de dezembro.
VI. ALIANÇA ARGÉLIA-RASD-MAURITÂNIA FACE AO EXPANSIONISMO E ÀS MANOBRAS
DE DESESTABILIZAÇÃO DO MAJZEN NA REGIÃO
A situação na região alterou-se substancialmente no plano político. O majzen há anos que procura
desestabilizar a Mauritânia (por meios diretos e indiretos). A manobra do majzen para apropriar-se do lugar no Conselho
de Segurança que devia corresponder à Mauritânia para o biénio 2012-2013 constituiu
a gota de água que fez transbordar o copo. A partir daí os acontecimentos
precipitaram-se e Nuakchott e Argel reforçaram o seu entendimento relançando
importantes projetos estratégicos conjuntos de infraestructuras (como a estrada
Tindouf-Shum).
Em segundo lugar, Nuakchott enviou uma mensagem clara de apoio à
república saharaui com a recepçao concedida pelo Presidente mauritano ao
ministro dos Negócios Estrangeiros saharaui em novembro do ano passado.
Estes e outros acontecimentos (como o sequestro dos cooperantes espanhóis
nos acampamentos de Tindouf por grupos terroristas provavelmente coordenados a
partir do aparelho do serviço secreto do Makhzen
na embaixada de Marrocos na Mauritânia) fornecem o quadro em que, na minha
opinião, temos de colocar contexto do "incidente" sofrido pelo Presidente
mauritano a 13 de outubro.
Uma vez que o Presidente da Mauritânia sobreviveu ao
"incidente" é compreensível que o Presidente mauritano tenha "registado"
e decidido "agir em conformidade." E fê-lo não apenas tomando uma
posição firme de apoio à República Saharaui (como demonstrou no acolhimento concedido
ao ministro saharaui em 21 de dezembro deste ano, ao mesmo tempo que se recusou
a receber um ministro marroquino), mas em outros aspectos "sensíveis"
ao Makhzen. O primeiro, e mais
importante, é o conflito do Mali. Mauritânia partilha inteiramente a posição da
Argélia para resolver esta crise. Uma posição que é ... exatamente a oposta à
preconizada pelo Makhzen. Posição do Makhzen que também é compartilhada pelo
governo de Rajoy e terminais de media dos seus de centros de pseudo-análise.
Enquanto o Makhzen defende uma intervenção militar, Argélia e Mauritânia
consideram esta intervenção como inútil e contraproducente. É importante notar
que o "aliado teórico" do Makhzen, os EUA, alinha-se com a Mauritânia
e Argélia contra Marrocos neste ponto.
VII. MOMENTO CRÍTICO PARA RAJOY, COM O GRAVE RISCO DE PERDER A FACE NA ÁFRICA
DO NOROESTE
De um ponto de vista geoestratégico, a situação na região em 2012 assemelha-se,
fortemente (até mesmo com matizes), à existente em 2003, quando a Espanha,
governada por José María Aznar, se encontrava aliada aos EUA, Argélia,
Mauritânia e à Frente Polisário , e se obteve o apoio unânime do Conselho de
Segurança para o Plano Baker para o Sahara Ocidental (que abortou a partir de
dentro a então ministra espanhola dos Negócios Estrangeiros, apoiada pelo seu
chefe de Governo).
Estas são as coincidências:
por um lado, deparamo-nos com uma convergência de pontos de vista entre
a República Saharaui, Argélia, Mauritânia... e EUA; por outro lado, Marrocos.
Há, no entanto, duas diferenças:
a primeira é que a França de 2012 não está tão alinhada com o majzen como a de 2003. François
Hollande não é Jacques Chirac porque, ao contrário do corrupto Jacques, Hollande
não deve nada ao pai de Mohamed VI;
a segunda é que em 2003 Aznar estava sólidamente alinhado com os EUA-Argélia-Mauritânia-Frente
Polisario...enquanto agora a dupla Rajoy-Margallo faz uma aposta suicída pelo majzen.
Em maio, o governo Rajoy foi o único governo do mundo ocidental que apoiou
a demencial proposta do majzen de
recusar o Enviado Pessoal do Secretário-Geral da ONU para o Sahara Ocidental,
Christopher Ross. Como é notório, ao apoiar essa proposta caiu no ridículo, embora
não tanto como o próprio Mohamed VI, verdade se diga. Agora, o governo de Rajoy
tem de novo que se definir. Porque se não se define, corre o risco de quedar-se
onde está. E onde está agora é onde fez a sua primeira (e equivocada) viagem
oficial. E quedar-se aí, receio, é ter uma grande probabilidade de perder.
Fonte: Desde El Atlantico
Artigo do Prof. Constituicionalista Carlos Ruiz Miguel
Fonte: Desde El Atlantico
Artigo do Prof. Constituicionalista Carlos Ruiz Miguel
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