Tribunal Internacional de Justiça de Haia |
Diego Camacho López-Escobar, o autor do artigo, é
coronel do Exército espanhol, diplomado em Operações Especiais, licenciado em Ciências
Políticas e membro da Comissão Diretiva da APPA (Asociación para el Progreso de
los Pueblos de África).
Realizou diversas missões de Inteligência e Cooperação
na Guiné Equatorial, Costa Rica, Marrocos e França. É co-autor com Fernando J.
Muniesa do livro: “La España otorgada” (Anroart Ediciones, 2005). Pertenceu à
direção do Centro Superior de Información de la Defensa (CESID) (Serviços
Secretos do Estado espanhol). Ver entrevista neste blog.
Fonte: Espacios
Europeos
Na sua sentença sobre a questão do Sahara Ocidental, de outubro
de 1975, o Tribunal Internacional de Justiça de Haia reafirma o direito dos povos
à sua livre determinação. Para o que se baseia, de maneira determinante, na
Carta das Nações Unidas (artigos 1, 55 e 56, e capítulos XI e XII) e na resolução
de 1514, em que o direito à autodeterminação, de Países e Povos Coloniais, foi
expresso da seguinte forma: nos territórios… não-autónomos e em todos os outros
territórios que não alcançaram ainda a independência deverão tomar-se medidas
imediatas para transferir todos os poderes aos povos desses territórios, sem
quaisquer condições ou reservas, de acordo com a sua vontade e os desejos livremente
expressos, sem distinção de raça, credo ou cor, para que possam desfrutar de
total independência e liberdade. Num parecer de 1971, o Tribunal Internacional
de Justiça já havia reconhecido o valor jurídico da Resolução 1514 como Direito
positivo Internacional.
O parecer baseia-se também nas resoluções 1541 e 2625, e
define o direito dos povos à autodeterminação, em termos de necessidade de
respeitar a vontade livremente expressa daqueles, que vem a ser uma norma de
direito internacional aplicável à descolonização de todos os territórios
colocados sob a supervisão da ONU.
Sobre estas bases, o TIJ analisa as diferentes resoluções
sobre o Sahara e o Ifni, adotadas pela Assembleia Geral entre 1966 e 1973, e
afirma que em todas elas a AG afirma o direito do povo saharaui à livre determinação,
apesar das reivindicações formuladas por Marrocos e Mauritânia.
O Comité dos 24 decidiu, em novembro de 1966, um tratamento jurídico
diferenciado para a descolonização de ambos os territórios. Para o Ifni, definia
uma transferência de poderes cujas modalidades deveriam ser acordadas com
Marrocos. Para o Sahara, convidava-se a Espanha a estabelecer, sem demora, as
condições que permitissem assegurar o exercício dos direitos da população autóctone
do Sahara à autodeterminação e independência.
Na sua resolução 1929, de dezembro de 1966, a Assembleia
Geral da ONU estabelecia que a descolonização do Sahara supõe o princípio da
autodeterminação e que a via para o exercício desse direito era a organização
de um referendo sob os auspícios da ONU. A AG reiteraria esse princípio nas
suas resoluções: 2354, de 1967; 2428, de 1968; 2591, de 1969; 2711, de 1970;
2983, de 1972; e 3.162, de 1973.
Na sua resolução 3292 de 1974, a AG solicitava à potência
administrante que suspendesse o referendo que havia planeado organizar no
primeiro semestre de 1975 para submeter a questão ao Tribunal Internacional de
Justiça e que este pudesse emitir o seu parecer sobre as questões que lhe eram
colocadas pela Assembleia Geral, embora afirmando que o diferimento não afeta o
direito de autodeterminação do povo do Sahara Ocidental, de acordo com a
Resolução 1514. O que quer dizer que toda a operação da "Marcha
Verde" já está em execução, mas mesmo assim a ONU não se desvia do fio
condutor que lhe dá legitimidade para erigir-se como o árbitro da situação: o
texto da sua própria Carta. O TIJ virá a corroborar no seu parecer ao afirmar que
o direito dos povos do Sahara à autodeterminação constitui elemento básico das
questões colocadas ao Tribunal pela Resolução 3292.
A primeira questão colocada ao TIJ era se, na época da
colonização pela Espanha, o Sahara constituia uma "terra nullius"; e,
em caso da resposta ser negativa: quais eram os laços jurídicos deste
território com o Reino de Marrocos e a entidade mauritana?
O Tribunal declara que, na época da colonização espanhola, o
Sahara não era "terra nullius"; existiam laços jurídicos entre o
Sultão de Marrocos e algumas tribos que habitavam o território, assim como direitos,
incluindo alguns direitos à terra, e que existiam vínculos jurídicos entre o território
e a entidade mauritana. Mas que, no entanto, não fora estabelecida a existência
de vínculo de soberania entre o território do Sahara Ocidental, por um lado, e o
Reino de Marrocos ou a entidade da Mauritânia para o outro, pelo que o Tribunal
não verificou a existência de vínculos jurídicos que, pela sua natureza, possam
alterar a aplicação da Resolução 1514 e, em particular, o princípio da livre determinação
através da expressão livre e genuína da vontade do povo do território.
O texto do TIJ é, à primeira vista, ambíguo, pois reconhece
vínculos jurídicos com o sultão e algumas tribos; e, por outro lado, sublinha que
não se comprovou a existência de vínculos jurídicos de soberania entre o
território e Marrocos ou a entidade da mauritana. Isto significa por um lado,
existirem laços pessoais "d’allegeance”( fidelidade…) entre um senhor
feudal e alguns nómadas mas, por outro lado, não existia uma sujeição de
soberania do território do Sahara a outro território, fosse Marrocos ou a
Mauritânia. Ou seja, a submissão ou servidão de alguns indivíduos a um
governante feudal não pode condicionar a livre autodeterminação de todo um povo
que pastoreou e pelejou por um o território que sempre foi livre. Defender o
contrário seria colocar-se ao lado dos princípios feudais e fazê-los prevalecer
sobre os princípios que configuram a comunidade internacional, quando se cria a
ONU no fim da guerra mundial, em 1945. Em última análise, o TIJ conclui que não
havia vínculo jurídico algum que pudesse influir sobre o princípio da livre determinação,
já que nada indica que, na época da colonização por Espanha, houvesse um único Estado
que englobasse os territórios de Marrocos e o Sahara ou Mauritânia e o Sahara e
que tivesse sido desmembrado pelo colonizador, facto que justificaria a sua
reconstituição.
O Tribunal dá assim um enquadramento jurídico contemporâneo às
questões levantadas, mas também destaca a prevalência da Resolução 1514 e
estabelece o princípio de que é a população que determina o destino do
território e não o inverso, pelo que o reconhecimento da existência de vínculos
jurídicos no momento da colonização não pode ter mais do que um efeito marginal
sobre as opções em aberto para os habitantes do território, por isso a consulta
aos habitantes do território em processo de descolonização é um imperativo
absoluto.
Saharauis, uma cultura secular. O nomadismo, as tradições, e uma língua comum: o Hassania |
Desde a entrada em vigor da Carta de São Francisco, o Sahara
tornou-se num território não autónomo. Por essa razão, a potência administrante
tem o dever de reconhecer o princípio do primado dos interesses dos habitantes
do território e de desenvolver a capacidade das populações para estabelecer um
governo independente. Os vínculos anteriores que pudessem existir antes da
colonização espanhola estão sujeitos ao direito intertemporal, pelo que não
podem constituir um obstáculo à aplicação do princípio da livre determinação.
Se analisamos o conteúdo da Resolução 2625 que diz: o
território de uma colónia ou de um território não-autónomo tem... uma condição
jurídica diferente e separada da do território do Estado que o administra...
que existirá até que o povo não autónomo tenha exercido o seu direito à livre determinação.
Vemos que o Sahara, por ser um território não autónomo, tem um estatuto internacional
que não pode desaparecer, seja qual for o motivo circunstancial apresentado, até
que os saharauis tenham exercido o seu direito à autodeterminação.
Parece-me óbvio afirmar que, de um ponto de vista objetivo,
o direito do povo saharaui à autodeterminação é apoiado não apenas pelo parecer
do TIJ de 1975, mas também pelo Direito Internacional que a ONU gera, desde
1945, com as suas Resoluções. A decisão de ampliar Marrocos à custa do Sahara é
posterior à elaboração dos princípios jurídicos que levaram ao fim do
colonialismo do séc. XIX durante a Guerra Fria. O confronto entre os blocos
serviu como álibi para fazer prevalecer os interesses estratégicos, mesmo que
isso significasse condenar todo um povo a perder a sua terra.
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