segunda-feira, 14 de janeiro de 2013

Sahara, a última colónia (II): a sentença do Tribunal Internacional de Justiça de Haia

Tribunal Internacional de Justiça de Haia
Ler do mesmo autor: Sahara, o Abandono (I)

Diego Camacho López-Escobar, o autor do artigo, é coronel do Exército espanhol, diplomado em Operações Especiais, licenciado em Ciências Políticas e membro da Comissão Diretiva da APPA (Asociación para el Progreso de los Pueblos de África).
Realizou diversas missões de Inteligência e Cooperação na Guiné Equatorial, Costa Rica, Marrocos e França. É co-autor com Fernando J. Muniesa do livro: “La España otorgada” (Anroart Ediciones, 2005). Pertenceu à direção do Centro Superior de Información de la Defensa (CESID) (Serviços Secretos do Estado espanhol). Ver entrevista neste blog.

Na sua sentença sobre a questão do Sahara Ocidental, de outubro de 1975, o Tribunal Internacional de Justiça de Haia reafirma o direito dos povos à sua livre determinação. Para o que se baseia, de maneira determinante, na Carta das Nações Unidas (artigos 1, 55 e 56, e capítulos XI e XII) e na resolução de 1514, em que o direito à autodeterminação, de Países e Povos Coloniais, foi expresso da seguinte forma: nos territórios… não-autónomos e em todos os outros territórios que não alcançaram ainda a independência deverão tomar-se medidas imediatas para transferir todos os poderes aos povos desses territórios, sem quaisquer condições ou reservas, de acordo com a sua vontade e os desejos livremente expressos, sem distinção de raça, credo ou cor, para que possam desfrutar de total independência e liberdade. Num parecer de 1971, o Tribunal Internacional de Justiça já havia reconhecido o valor jurídico da Resolução 1514 como Direito positivo Internacional.

O parecer baseia-se também nas resoluções 1541 e 2625, e define o direito dos povos à autodeterminação, em termos de necessidade de respeitar a vontade livremente expressa daqueles, que vem a ser uma norma de direito internacional aplicável à descolonização de todos os territórios colocados sob a supervisão da ONU.

Sobre estas bases, o TIJ analisa as diferentes resoluções sobre o Sahara e o Ifni, adotadas pela Assembleia Geral entre 1966 e 1973, e afirma que em todas elas a AG afirma o direito do povo saharaui à livre determinação, apesar das reivindicações formuladas por Marrocos e Mauritânia.

O Comité dos 24 decidiu, em novembro de 1966, um tratamento jurídico diferenciado para a descolonização de ambos os territórios. Para o Ifni, definia uma transferência de poderes cujas modalidades deveriam ser acordadas com Marrocos. Para o Sahara, convidava-se a Espanha a estabelecer, sem demora, as condições que permitissem assegurar o exercício dos direitos da população autóctone do Sahara à autodeterminação e independência.

Na sua resolução 1929, de dezembro de 1966, a Assembleia Geral da ONU estabelecia que a descolonização do Sahara supõe o princípio da autodeterminação e que a via para o exercício desse direito era a organização de um referendo sob os auspícios da ONU. A AG reiteraria esse princípio nas suas resoluções: 2354, de 1967; 2428, de 1968; 2591, de 1969; 2711, de 1970; 2983, de 1972; e 3.162, de 1973.

Na sua resolução 3292 de 1974, a AG solicitava à potência administrante que suspendesse o referendo que havia planeado organizar no primeiro semestre de 1975 para submeter a questão ao Tribunal Internacional de Justiça e que este pudesse emitir o seu parecer sobre as questões que lhe eram colocadas pela Assembleia Geral, embora afirmando que o diferimento não afeta o direito de autodeterminação do povo do Sahara Ocidental, de acordo com a Resolução 1514. O que quer dizer que toda a operação da "Marcha Verde" já está em execução, mas mesmo assim a ONU não se desvia do fio condutor que lhe dá legitimidade para erigir-se como o árbitro da situação: o texto da sua própria Carta. O TIJ virá a corroborar no seu parecer ao afirmar que o direito dos povos do Sahara à autodeterminação constitui elemento básico das questões colocadas ao Tribunal pela Resolução 3292.

A primeira questão colocada ao TIJ era se, na época da colonização pela Espanha, o Sahara constituia uma "terra nullius"; e, em caso da resposta ser negativa: quais eram os laços jurídicos deste território com o Reino de Marrocos e a entidade mauritana?

O Tribunal declara que, na época da colonização espanhola, o Sahara não era "terra nullius"; existiam laços jurídicos entre o Sultão de Marrocos e algumas tribos que habitavam o território, assim como direitos, incluindo alguns direitos à terra, e que existiam vínculos jurídicos entre o território e a entidade mauritana. Mas que, no entanto, não fora estabelecida a existência de vínculo de soberania entre o território do Sahara Ocidental, por um lado, e o Reino de Marrocos ou a entidade da Mauritânia para o outro, pelo que o Tribunal não verificou a existência de vínculos jurídicos que, pela sua natureza, possam alterar a aplicação da Resolução 1514 e, em particular, o princípio da livre determinação através da expressão livre e genuína da vontade do povo do território.

O texto do TIJ é, à primeira vista, ambíguo, pois reconhece vínculos jurídicos com o sultão e algumas tribos; e, por outro lado, sublinha que não se comprovou a existência de vínculos jurídicos de soberania entre o território e Marrocos ou a entidade da mauritana. Isto significa por um lado, existirem laços pessoais "d’allegeance”( fidelidade…) entre um senhor feudal e alguns nómadas mas, por outro lado, não existia uma sujeição de soberania do território do Sahara a outro território, fosse Marrocos ou a Mauritânia. Ou seja, a submissão ou servidão de alguns indivíduos a um governante feudal não pode condicionar a livre autodeterminação de todo um povo que pastoreou e pelejou por um o território que sempre foi livre. Defender o contrário seria colocar-se ao lado dos princípios feudais e fazê-los prevalecer sobre os princípios que configuram a comunidade internacional, quando se cria a ONU no fim da guerra mundial, em 1945. Em última análise, o TIJ conclui que não havia vínculo jurídico algum que pudesse influir sobre o princípio da livre determinação, já que nada indica que, na época da colonização por Espanha, houvesse um único Estado que englobasse os territórios de Marrocos e o Sahara ou Mauritânia e o Sahara e que tivesse sido desmembrado pelo colonizador, facto que justificaria a sua reconstituição.

O Tribunal dá assim um enquadramento jurídico contemporâneo às questões levantadas, mas também destaca a prevalência da Resolução 1514 e estabelece o princípio de que é a população que determina o destino do território e não o inverso, pelo que o reconhecimento da existência de vínculos jurídicos no momento da colonização não pode ter mais do que um efeito marginal sobre as opções em aberto para os habitantes do território, por isso a consulta aos habitantes do território em processo de descolonização é um imperativo absoluto.

Saharauis, uma cultura secular.
O nomadismo, as tradições, e uma língua comum: o Hassania
Desde a entrada em vigor da Carta de São Francisco, o Sahara tornou-se num território não autónomo. Por essa razão, a potência administrante tem o dever de reconhecer o princípio do primado dos interesses dos habitantes do território e de desenvolver a capacidade das populações para estabelecer um governo independente. Os vínculos anteriores que pudessem existir antes da colonização espanhola estão sujeitos ao direito intertemporal, pelo que não podem constituir um obstáculo à aplicação do princípio da livre determinação.

Se analisamos o conteúdo da Resolução 2625 que diz: o território de uma colónia ou de um território não-autónomo tem... uma condição jurídica diferente e separada da do território do Estado que o administra... que existirá até que o povo não autónomo tenha exercido o seu direito à livre determinação. Vemos que o Sahara, por ser um território não autónomo, tem um estatuto internacional que não pode desaparecer, seja qual for o motivo circunstancial apresentado, até que os saharauis tenham exercido o seu direito à autodeterminação.

Parece-me óbvio afirmar que, de um ponto de vista objetivo, o direito do povo saharaui à autodeterminação é apoiado não apenas pelo parecer do TIJ de 1975, mas também pelo Direito Internacional que a ONU gera, desde 1945, com as suas Resoluções. A decisão de ampliar Marrocos à custa do Sahara é posterior à elaboração dos princípios jurídicos que levaram ao fim do colonialismo do séc. XIX durante a Guerra Fria. O confronto entre os blocos serviu como álibi para fazer prevalecer os interesses estratégicos, mesmo que isso significasse condenar todo um povo a perder a sua terra.

Sem comentários:

Enviar um comentário