Os aviões derramavam as suas bombas sobre a população refugiada no deserto.
Muitos outros saharauis morreram em fossas convertidas em centros de detenção. Os
nómadas foram saqueados do seu mais precioso bem, os camelos. A feroz repressão
conseguiu silenciar durante décadas as atrocidades cometidas desde 1975 em nome
do Reino de Marrocos.
Mais de mil páginas e 261 testemunhos
resgatam do silêncio as graves violações dos direitos humanos cometidas por
Marrocos desde que ocupou os territórios saharauis em 1975. O médico e doutor em
Psicologia Social Carlos M. Beristain recolhe no seu amplo trabalho de
investigação «El oasis de la memoria», apresentado em Donostia, juntamente com
as ativistas saharauis Aminatou Haidar e El Ghalia Dijmi, «a história da gente
que sofreu as consequências da violência e o impacte da perseguição política
cada vez que reivindicou de forma pacífica a autodeterminação ou simplesmente questionou
o poder estabelecido. Uma história ocultada, de que não se disse a verdade».
Na introdução, Beristain ressalta que
«esta não é uma história contra ninguém. É uma história que tem que ser escutada
e tida em conta na procura de saídas políticas para o conflito e o respeito pelos
direitos humanos no Magreb. É também parte de uma memória coletiva mais ampla
que deve ser investigada, escrita e divulgada».
Os bombardeamentos indiscriminados de
Um Dreiga, Guelta, Amgala ou Tifariti, os desaparecimentos forçados, as brutais
torturas infligidas aos detidos, sem que se importasse o seu género ou idade,
os saques, as espoliações e a repressão generalizada marcaram a sangue e fogo a
sociedade saharaui e, em especial, as vítimas cuja voz foi deliberadamente
ocultada.
«As bombas mostraram o horror a que Hassan II estava disposto a chegar»
Após a invasão marroquina do Sahara a
partir do norte; e da Mauritânia a partir do sul, entre finais de outubro de
1975 e fevereiro de 1976, uma boa parte da população que vivia nos centros
urbanos, como El Aaiún, Dajla ou Smara, fugiu para o deserto em condições precárias,
em muitos casos com o que trazia no corpo e a pé. O êxodo foi-se dando à medida
que se expandia a invasão, sem uma planificação prévia. A experiência nómada
saharaui e o conhecimento do terreno lavaram a população a procurar proteção
nos lugares menos acessíveis do deserto, onde foram instalando acampamentos com
caráter totalmente provisório. Um deles foi o de Um Dreiga, bombardeado em
fevereiro de 1976 e de que nada restou após o bombardeamento aéreo.
«Era um dia tranquilo e ensolarado. Quando
me toquei, tinha sangue. Vi o avião muito perto, as pessoas corriam, ninguém estava
preparado para aquilo. A minha mãe pegou-me e encontrámos uma vizinha que
arrastava a sua mãe grávida, enquanto a árvore a que se agarrava ardia. Ela pedia
à minha mãe que a ajudasse a arrastar a sua mãe...», recorda Jadiyetu Daha Zein
Couri.
A maior parte da população deslocada
eram mulheres, muitas delas grávidas, crianças e velhos. Haviam
poucos homens.
A pesar de claramente assinalado com
os símbolos do Crescente Vermelho (nota: o equivalente à Cruz Vermelha), a aviação
atacou o dispensário médico onde, nesse momento, haviam várias pessoas, entre
elas a enfermeira Chaia Abeidala Ahmed Zein, que estava quase a dar à luz e
cujo corpo foi decapitado. Tudo ficou reduzido a cinzas, até as seringas. Testemunhas
afirmam que foram em grande número as mutilações de corpos na zona onde caíram as
bombas. Pelo nível de destruição e pelo tipo de feridas dos sobreviventes, crê-se
que Marrocos utilizou armamento proibido como fósforo branco e napalm. Este
bombardeamento, tal como os de Guelta, Amgala e Tifariti, acabou de uma vez por
todas com a possibilidade de voltarem às suas terras de origem. «As bombas deram
a dimensão do horror a que estava disposto a chegar o regime de Hassan II», afirma
o relatório.
Pilhagem e ataques sistemáticos contra os «Homens do deserto»
Os atos de pilhagem e os ataques aos
nómadas constituíram outra forma de repressão que acabou com o nomadismo
durante, pelo menos, duas décadas. A queima de jaimas (tendas), o roubo de gado
e a matança de camelos, o bem mais apreciado para os saharauis, foi uma prática
habitual. Para o Exército marroquino, todos os saharauis que estavam no deserto
eram simpatizantes da Frente Polisario e as suas reses eram consideradas como fonte
de aprovisionamento ou alimentação para a resistência. As operações de rastreio,
pilhagem e deslocamento forçado tiveram um enorme impacte na vida dos nómadas; constituíam
um atentado à cultura e forma de vida tradicional. «O objetivo era levar-nos para
as cidades e acurralarem-nos alí para que não nos movêssemos e não tivéssemos motivos
para ir para o deserto. Isso foi o que nos explicaram altos comandantes marroquinos
anos depois», assinala Bchirna Learousi. A sua família
tinha 228 camelos e 150 cabras. Nos princípios de 1976, as forças militares intercetaram o acampamento
onde estavam, a uns 35 quilómetros de Smara. «Estavam comigo o meu irmão e o
meu pai. Também vizinhos. Ataram-nos e meteram-nos em camiões militares. Eram
três batalhões, todo um regimento. Dispararam à nossa frente sobre os camelos. Meteram
as cabras nos camiões e ao longo do trajeto não pararam de festejar», recorda
Learousi.
Depois de ter sido posto em liberdade
um mês e meio depois — durante o qual foi torturado —, pediu uma audiência com
o governador de Smara para tentar recuperar o seu gado. Só
recebeu ameaças. Desde
21 de fevereiro de 1978 até 27 de dezembro de 2008, escreveu 221 cartas a
diferentes instâncias do Estado marroquino, incluindo o defunto rei Hassan II e
o atual, Mohamed VI. Ninguém respondeu às suas reclamações.
A brutalidade das fossas de Lemsayed e os desaparecimentos
Os desaparecimentos forçados constituíram
o ‘modus operandi’ fundamental da repressão, juntamente com os bombardeamentos,
a deslocação e a pilhagem. Entre 1975 e 1993, foram reportados 800
desaparecidos, embora muitos outros não tenham sido denunciados. Destes, cerca
de 80% ocorreram nos dois primeiros anos da invasão. O perfil das vítimas era
muito diverso, incluía homens, mulheres e, inclusive, crianças dos mais
diversos setores sociais. Além dos 487 desaparecidos «temporais» que foram libertados
em diferentes épocas após terem passado entre 1 e 16 anos em centros
clandestinos de detenção, continuam desaparecidas 351 pessoas. A tortura e os
abusos sexuais foram uma constante nesses centros, em que se procurava a
degradação e aniquilação da pessoa e das suas convicções.
Um desses lugares foram as fossas de
Lemsayed, em que se cometeram todo o tipo de tropelias. Uma das fossas era destinada
a interrogar e torturar os detidos, desnudados e colocados contra a parede da
fossa, enquanto a outra era para onde levavam os moribundos ou quem iam executar.
O testemunho de El Batal Lahhib exemplifica
a crueldade que ali se viveu. «... Estávamos atados com as mãos
atrás das costas. Enquanto
ali estávamos, todas as horas, vinham mais de dez militares e passavam o tempo
a atirar-nos pedras. Éramos nove pessoas. Estávamos despidos,
no meio das nossas urinas e fezes... Quando acabavam de tirar pedras, colocavam-se ao lado da fossa
e se alguém se mexia voltavam a atirar-nos pedras», relata.
«Mohamed era forte e contra ele atiravam-lhe
pedras maiores. Estava moribundo. Quando conseguiu quebrar a atadura, agarrou
a minha mão, porque estava a meu lado. E assim a agarrou, até que morreu no dia
seguinte (...)», recorda.
Do medo e do silêncio, ao ressurgir dos protestos com a intifada de 2005
"Na sequência da Intifada de
2005 é quando as pessoas vêm na rua como as mulheres foram torturadas. Quando
as pessoas viram como eles rasgavam os vestidos e maltratavam as mulheres,
começaram a acreditar que os muçulmanos poderiam fazer isso. Agora, as pessoas
sabem do que são capazes os marroquinos. Quando fomos libertadas em 1991,
ninguém nos veio ver ou falar connosco, ninguém sabia que havia mulheres que
estavam desaparecidas há 16 anos. Se isso tivesse acontecido noutro país, a
comunidade internacional ter-se-ia movido para indagar das razões desse
fenómeno, que é um crime contra a humanidade ", observa Djimi El Ghalia.
Aminatou Haidar: espancada durante a Intifada de 2005 |
2005 marcou um ponto de viragem nas
manifestações pacíficas e ‘sit-ins’ que se realizavam exigindo um referendo
sobre a independência e a quebra do isolamento internacional. Às manifestações
e concentrações organizadas por ativistas exigindo a verdade sobre os
desaparecidos e a liberdade dos presos políticos, juntou-se o uso massivo da Internet,
alguma abertura do regime marroquino com a implementação da Comissão de
Equidade e Reconciliação, a organização dos defensores dos direitos humanos e a
rejeição do plano de autonomia proposto pelo Marrocos nas negociações com a
Frente Polisário.
Embora as manifestações tenham inaugurado
um novo ciclo de violência, os entrevistados no relatório concordam que, apesar
do medo, isso se converteu numa onda imparável.
Gdeim Izik, outra experiencia de luta pelos direitos reprimida
No dia 10 de outubro de 2010, entre
40 e 70 saharauis montaram várias jaimas (tendas) nas redondezas del El Aaiún em
protesto contra as condições económicas e sociais. Aquela experiência, reivindicando
o direito à habitação, ao trabalho ou a usufruir dos recursos naturais do Sahara,
foi abortada pelas forças de segurança marroquinas a 8 de novembro desse mesmo ano.
Desde a sua criação, Marrocos impôs
um controlo apertado sobre os acessos ao acampamento. Logo na primeira semana, as
forças armadas marroquinas cercaram o acampamento por todo o lado. Vários helicópteros
sobrevoaram o acampamento e as autoridades começaram a construir vários muros de
areia em redor do acampamento com forte presença militar. As comunicações
móveis foram intercetadas. A 24 de outubro, a Guarda (Gendarmerie) Real abriu
fogo sobre um grupo de jovens saharauis que viajavam de carro. Segundo depoimentos,
tentaram romper o cerco pulando por cima dos muros de areia, altura em que as
forças marroquinas abriram fogo, matando Elgarhi Najem, de 14 anos.
Esse acontecimento marcou o bloqueio
do processo de diálogo e levou Rabat a proibir o acesso a Gdeim Izik Rabat a
jornalistas estrangeiros acreditados em Marrocos. A Intervenção marroquina realizou-se
com veículos e a pé. Testemunhas dizem que usaram gás lacrimogéneo, arremessaram
pedras e água quente, queimaram jaimas e destruíram equipamentos. Os saharauis,
especialmente os jovens, responderam à agressão com os objetos que tinham ao
seu alcance.
Neste contexto, tiveram lugar ataques
contra domicílios de saharauis por parte de grupos civis marroquinos com o
apoio da polícia e uma nova vaga de prisões.
Apesar do desfecho trágico, Yaddassi
Mohameddou refere que "o acampamento de Gdeim Izik foi doce, uma luz para
os saharauis, uma união que eliminou o tribalismo e fez renascer a amizade e o companheirismo."
Ainara
LERTXUNDI – Jornal Gara – 14-01-2013
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