Após um atraso, ainda mais inabitual
que em anos anteriores, foi publicado por fim o relatório do Secretário-Geral
(SG) das Nações Unidas (ONU) sobre o Sahara Ocidental. O texto oficial do
relatório, no entanto, apresenta algumas diferenças com o texto que
inicialmente foi revelado. Diferenças que afetam o núcleo essencial da questão
do Sahara Ocidental. Em minha opinião, com esta redação, o Conselho de Segurança
não pode aprovar este relatório sem se desautorizar a si próprio.
Artigo de Carlos Ruiz Miguel, Professor Catedrático de Direito
Constitucional na Universidade de Santiago de Compostela
I. A PERIPÉCIA DO RELATÓRIO DO SG DA ONU SOBRE O SAHARA OCIDENTAL
Segundo o calendário apresentado
pelo presidente em exercício do Conselho de Segurança (China, em abril), o
relatório do SG sobre a questão do Sahara Ocidental deveria ter
sido apresentado ao Conselho de Segurança no dia 8 de abril.
No dia 15 de abril o porta-voz do
SG da ONU, Farhan Haq, disse que o relatório podia ser apresentado "hoje ou amanhã, mais
ou menos" e alguém atreveu-se mesmo a dizer que ele iria ser
apresentado nas "próximas horas". No entanto, nas "horas" seguintes
não viria a ser apresentado o dito relatório.
Três dias depois, a 18 de abril, à
última hora, começou a circular uma cópia antecipada do relatório. O mesmo
texto circulou em dois formatos distintos: um difundido por um diário
eletrónico marroquino "Sahralive.com"
e o outro
pela Inner City Press. Este último continha inclusive a assinatura de
aprovação do Sub-secretário-geral da ONU Jan Eliasson.
No entanto, o relatório continuava
sem ser publicado na página oficial do Conselho de Segurança.
Na noite de 22 para 23, de
sexta-feira para sábado, às 23 horas (hora espanhola), apareceu de facto na página
do Conselho a referência ao relatório mas ao clicar no enlace aparecia a advertência
de que o documento estava embargado.
Finalmente, na manhã de sábado 23 foi
finalmente
publicado nos seis idiomas oficiais das Nações Unidas.
II. ALTERAÇÕES MUITO IMPORTANTES NO NÚCLEO FUNDAMENTAL DO RELATÓRIO ENTRE
O TEXTO "ANTECIPADO" E O TEXTO DEFINITIVO
Por que tardou em ser publicado o
relatório?
Por que razão entre a publicação do
«draft» e a publicação do texto definitivo transcorreram vários dias?
A resposta, pelo menos à segunda pergunta,
obtém-se cotejando as duas versões do relatório. E ali, à margem de alterações importantes
na formulação de algumas passagens, identifiquei três grandes mudanças.
Primeira alteração: foram suprimidas as referências ao Comité de Direitos
Económicos, Sociais e Culturais da ONU feitas pela Relatora Especial do direito
à alimentação
A Relatora Especial sobre o direito
à alimentação, Hilal Elver, da Turquia, visitou Villa Cisneros (Dakhla) em outubro
de 2015 tendo emitido um relatório sobre a referida visita. A forma como o
relatório do SG refere este facto muda entre a primeira e a segunda (e última)
versão do relatório.
Texto da versão divulgada por
antecipação (18-IV-2016):
72. (...) However, she echoed some of the CESCR's recommendations, highlighting that poverty continued to affect the population disproportionately and that it was not reaping the benefits of the considerable investments being made. (A/HRC/31/51/Add.2)
Texto definitivo do relatório (23-IV-2016):
72. (...) She also echoed some of the Committee’s findings and recommendations (see A/HRC/31/51/Add.2, paras. 56-60).
O seja, o relatório do SG oculta, DELIBERADAMENTE, que a Relatora
Especial do Direito à Alimentação denunciou a pobreza que afligia a população
do território ocupado e como a referida população não beneficiava dos "investimentos"
efetuados pela potência ocupante.
Segunda alteração: é substituído o imperativo absoluto na inaceitável proposta
de substituir a legalidade vigente sobre a questão do Sahara Ocidental.
Texto da versão divulgada por
antecipação (18-IV-2016): o negrito nas palavras é meu:
91. (...) This political solution must include resolution of the dispute over the status of Western Sahara, including through agreement on the nature and form of the exercise of self-determination.
Texto definitivo do relatório (23-IV-2016):
o negrito nas palavras é meu:
91. (...) The mutually acceptable political solution should include resolution of the dispute over the status of Western Sahara, including through agreement on the nature and form of the exercise of self-determination
A alteração matiza de algum modo
aquilo que constitui o núcleo duro deste relatório e o intento não é outro que o
de substituir a legalidade vigente sobre a questão do Sahara Ocidental,
desautorizando não só as próprias resoluções do Conselho de Segurança e as da
Assembleia Geral, como além disso desafia o Tribunal
Internacional de Justiça que o estabeleceu (sublinhado meu)
Por lo tanto, la Corte no comprobó que existieran vínculos jurídicos capaces de modificar la aplicación de la resolución 1514 (XV) en lo que se refiere a la descolonización del Sáhara Occidental y, en particular, a la aplicación de la libre determinación mediante la expresión libre y auténtica de la voluntad de las poblaciones del territorio.
Terceira alteração: foi suprimida a citação da resolução do Conselho de
Segurança que recorda que o referendo JÁ FOI UMA SOLUÇÃO MUTUAMENTE ACEITE
Texto da versão divulgada por
antecipação (18-IV-2016): o negrito nas palavras é meu:
92. It is recalled that the Security Council established MINURSO to monitor the ceasefire between the parties, to maintain the military status quo, and, subject to the agreement of the parties, to organize a referendum of self-determination. The Security Council confirmed the Mission's political functions in resolution 1056 (1996) and subsequent resolutions extending the mandate.
Texto definitivo do relatório (23-IV-2016):
o negrito nas palavras é meu:
92. The Security Council established MINURSO to monitor the ceasefire between the parties, to maintain the military status quo and, subject to the agreement of the parties, to organize a referendum of self-determination.
Ou seja, foi suprimida inteiramente
a frase que alude à resolução 1056
(1996) do Conselho de Segurança.
Esta resolução 1056 é importantíssima
porque recorda:
1)
que o Referendo É A SOLUÇÃO QUE JÁ FOI MUTUAMENTE ACEITE
1. Reitera o seu compromisso de que se celebre, o mais pronto possível, um referendo livre, equitativo e imparcial para a livre determinação do povo do Sahara Ocidental em conformidade com o plano de resolução que foi aceite pelas duas partes mencionadas;
2)
Que o departamento político da MINURSO tem o seu sentido, NO ÂMBITO DO PLANO DE
RESOLUÇÂO (que prevê um referendo de autodeterminação):
6. Apoia a proposta do Secretário-Geral, no âmbito do plano de resolução, de manter um departamento político para prosseguir o diálogo com as partes e os dois países vizinhos e para facilitar qualquer outra gestão que possa ajudar a pôr as partes no caminho certo para chegar a acordo sobre uma fórmula para a solução de suas divergências, e encoraja o Secretário-Geral a que estude a maneira de reforçar a função desse departamento;
III. DEFICIÊNCIAS GRAVES NAS TRADUÇÕES PANHOLA E FRANCESA
Como se tudo isto fosse pouco, nas
traduções francesa e espanhola há algumas deficiências que são inaceitáveis
numa organização como a ONU.
1. Erro na tradução francesa
Tradução espanhola correta do original
inglês
25. En Argelia, el Presidente Abdelaziz Bouteflika confirmó que la posición de su país no había cambiado y reiteró que Argelia aceptaría cualquier solución que apoyara el Frente Polisario.
Tradução francesa incorreta do original
inglês
25. En Algérie, le Président Abdelaziz Bouteflika a confirmé que la position de son pays restait inchangée et réaffirmé que l’Algérie n’accepterait aucune solution approuvée par le Front Polisario.
2.
Erro nas traduções espanhola, francesa e árabe no parágrafo-chave nº 91
Versão original inglesa
91. (...) The mutually acceptable political solution should include resolution of the dispute over the status of Western Sahara, including through agreement on the nature and form of the exercise of self-determination
Incorretas traduções em espanhol,
francês, árabe e russo
91. (...) La solución política mutuamente aceptable ha de incluir la resolución de la controversia relativa al estatuto del Sáhara Occidental, por ejemplo a través de un acuerdo sobre la naturaleza y la forma de ejercer la libre determinación. 91. (...) Cette solution politique doit régler le différend relatif au statut du Sahara occidental et comporter un accord sur la nature de l’autodétermination et la forme qu’elle prendra.
A alteração, de grande importância,
produzida na versão definitiva do relatório sustituindo o "must" pelo
"should" não se refletiu nas traduções espanhola e francesa (e também,
por certo, na versão árabe que usa o verbo "يجب",
nem na versão russa "должно").
IV. POR QUE ESTE RELATÓRIO É INACEITÁVEL PARA O PRÓPRIO CONSELHO DE
SEGURANÇA
O núcleo deste relatório +e muito claro
e é constituído pelos parágrafos 91 e 92. Nesses esos parágrafos fala-se de uma
"solução política". Pois bem, o próprio Conselho de
Segurança na sua resolução 1495 (2003) estabeleceu
1. (El Consejo de Seguridad) (...) apoya igualmente su Plan de paz para la libre determinación del pueblo del Sáhara Occidental como solución política óptima basada en el acuerdo entre las dos partes
Portanto, se o próprio Conselho de
Segurança definiu POR UNANIMIDADE o "plano Baker" como "solução política
óptima", não pode aprovar um relatório que determina que a "solução política"
deveria (should) "incluir a resolução da controvérsia relativa ao estatuto
do Sahara Ocidental, por exemplo através de um acordo sobre a natureza e a forma
de exercer a livre determinação". E não o pode aprobar porque é evidente
que uma "solução política" com um "acordo" sobre "a
natureza e a forma de exercer a livre determinação" que se afaste dos
elementos básicos do "plano Baker" é, por definição, uma "solução
política" pior que a "óptima". E, precisamente, por isso destinada
a deteriorar o conflicto, e não a solucioná-lo.
Pois bem,
Não será que os que mandam no Conselho
de Segurança o que pretendem é deteriorar, ainda mais, este conflito?
A dúvida será resolvida em breve.
Mas é claro que se o Conselho de Segurança aprovar o presente relatório estará a
negar a sua própria credibilidade e, portanto, a credibilidade da resolução que
venha, eventualmente, a aprovar agora.
NOTA
A resolução 1495 (2003) que qualificou,
por unanimidade, o Plano Baker como "solução política óptima" foi aprovada
com o voto favorável de Espanha (governada então pelo PP) que então era membro
não permanente do Conselho de Segurança.
Espanha volta agora a fazer parte,
como membro não permanente, do Conselho de Segurança e também é governada (ainda
que apenas em funções) pelo PP.
Não digo mais nada.
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