domingo, 20 de dezembro de 2020

Exclusivo / Aminatou Haidar, Prémio Nobel alternativo ao “La Patrie News”: “Não reconheço a Marrocos nenhuma autoridade sobre o meu país ou sobre mim”

  


  

Prémio Nobel alternativo, distinção de maior prestígio em matéria de defesa dos direitos humanos, Aminatou, ao longo dos anos e das suas lutas pacíficas, acabou por se tornar a musa que, a contragosto, e com risco de vida e saúde, acabou por incarnar a nobreza e a determinação impetuosa do seu povo, cuja nobreza ela defende tenazmente com orgulho e coragem. Igual a si mesma, a Gandhi saharaui acedeu responder às nossas perguntas com total transparência, no momento em que o cessar-fogo, violado por Marrocos com a invasão da zona tampão de El Guerguerat deu origem ao reacender da guerra.

jornalista: Mohamed Abdoun

 

La Patrie News: Apesar da vigilância policial constante de que é objeto, e também vítima, conseguiu, no passado mês de Setembro, a constituição do ISACOM (Instância Saharaui Contra a Ocupação Marroquina). Se partirmos da constatação de que nunca perdeu de vista o seu objetivo final, que é a libertação do seu povo do jugo colonial marroquino, a que lógica responde esta nova estratégia que pôs em prática e que, há que o dizer, colocou no embaraço Rabat e seus meios mediatico-políticos?

 

Aminatou Haidar: Pessoalmente, acredito que a nossa estratégia como ativistas pelos direitos humanos e pelos direitos de nosso povo à autodeterminação, liberdade e independência nunca mudou. Sim, tem evoluído lentamente nas últimas três décadas, mas isso se deve principalmente à falta de experiência inicial, mas também à contínua repressão que todos nós vivemos como defensores dos direitos humanos.

A ISACOM, é o desenvolvimento normal que atualmente responde à situação de ocupação e às ameaças que pendem sobre a vida e a segurança dos civis saharauis sob ocupação. É também por isso que fomos dos primeiros a apelar à Cruz Vermelha Internacional para assumir a sua responsabilidade na protecção dos civis saharauis sob ocupação, uma vez que o Sahara Ocidental é um país ocupado e agora também uma zona de guerra, e, portanto, deve ser tratado de acordo com o direito internacional humanitário e a 4ª Convenção de Genebra, além de ser uma questão de descolonização a resolver.

 

Poucos dias ou semanas depois, foi impedida de viajar com o seu filho sob o pretexto de que estava com o coronavírus. Ao fazerem isso queriam apenas silenciá-la, ou foi uma manobra que traiu o desespero e a muita confusão do Makhzen?

 

Realmente acredito que as autoridades marroquinas já não sabem como agir face à situação de ocupação que gerem com muita falta de jeito, violência e improvisação no Sahara Ocidental. As pessoas podem pensar que as autoridades de ocupação marroquinas sabem o que estão a fazer na sua colónia, mas não é o caso. Tomemos como exemplo a forma como responderam à constituição da nossa ONG "Instância Saharaui Contra a Ocupação Marroquina" (ISACOM). No início não houve reação oficial, por outro lado, desde o primeiro dia uma vasta e feroz campanha de difamação dos mídia foi lançada contra a ISACOM e especialmente contra mim pessoalmente; uma semana depois, uma declaração-ameaça do Promotor Público do Rei de Marrocos em El Aaiun ocupada foi publicado pela agência MAP; e, desde então, membros do gabinete executivo da ISACOM têm estado sob vigilância e prisão domiciliar sem qualquer processo legal. Quanto a mim, passei dois meses na mesma situação até ao dia em que partia para as Canárias a 02/12/2020. Eles tentaram, numa tentativa vergonhosa, impedir-me de viajar, pois ficaram surpresos com meu desafio à sua decisão de me colocarem sob vigilância, talvez ignorando que eu pessoalmente não lhes reconheço qualquer autoridade sobre mim ou sobre o meu país.

Marrocos, devemos sempre a todos lembrá-lo, é uma potência ocupante ilegal no Sahara Ocidental, por isso não tem legitimidade e não devemos aceitar ser submetidos à sua política colonial.

 

Já referiu o grande desapontamento dos jovens saharauís face à política de ’facto consumado’ de Marrocos e do silêncio cúmplice da comunidade internacional. Para a eterna pacifista que é, a escolha das armas é o único meio de salvação que lhes resta ?

 

Estou muito triste porque a comunidade internacional decepcionou os saharauis e o seu legítimo representante, a Frente Polisario, que deram à ONU 30 anos para organizar um simples referendo de autodeterminação. A história registará que a missão da ONU mais fácil no mundo custou mais de mil milhões de dólares, os esforços de centenas, senão milhares, de funcionários da ONU, e as vidas e o futuro de várias gerações de saharauis traídos pela ONU.

Dito isto, por mais pacifista que possa ser, não tenho argumentos para convencer os meus compatriotas a acreditarem nesta paz que, há que sublinhar, nunca foi uma paz para eles, porque os saharauis durante estes 30 anos estiveram sós a pagar o preço desta falsa paz de mártires, presos políticos, vítimas de todo o tipo de violações, mortos assassinados, refugiados que sofrem também com a linguagem da espera que parece não ter fim.

Eu diria que nem a ONU nem qualquer outro país, por grande e influente que seja, pode convencer os saharauís de que eles podem acreditar na mediação, na justiça e na seriedade da ONU, ou em qualquer outra organização. Todos eles falharam na sua promessa aos saharauís e permitiram que Marrocos violasse os nossos direitos, explorasse as nossas riqueza e até reforçasse a sua conquista colonial no nosso país. A escolha do povo saharaui de voltar a pegar em armas pode ser criticada enquanto pacifistas, mas não temos argumentos para os dissuadir de o retomar como meio legítimo de luta pela liberdade.

 

Os ativistas pró-independência, dos quais faz parte, são vítimas de intimidações e provocações que dificultam os seus movimentos. Pode nos contar um pouco mais?

 

Creio que não é necessário dizer-lhe o que nós, cidadãos saharauis sob ocupação, estamos a passar por causa da ocupação marroquina. Pode pegar em qualquer relatório ou comunicado de qualquer organização internacional e vai ver que Marrocos está violando todos os direitos civis, políticos, económicos, culturais e outros, além de violar o nosso direito fundamental à autodeterminação, liberdade e independência.

 

Como lida com essa pressão e vigilância constantes?

 

Vivemos isso como um preço necessário a pagar pela liberdade. Somos como todos os outros povos que pagaram caro pela sua liberdade, portanto, mereceremos obtê-la.

 

Acompanhar este conflito armado dos territórios ocupados não deve ser fácil, devido à intoxicação da mídia local e da censura. Como consegue se adaptar a esta nova e ‘stressante’ situação, já que o cessar-fogo durava há quase 30 anos?

 

Na verdade, não temos confiança na mídia marroquina. Todos estão, sem exceções, muito longe de qualquer credibilidade e sempre serviram a propaganda marroquina. Os orgãos de comunicação internacionais também carecem de presença e acompanhamento, sendo claro que só podem acompanhar muito mal a situação. Mas, ainda conseguimos ter a informação verdadeira e credível através dos meios de comunicação saharauis, e também através dos meios de comunicação argelinos que acompanham a questão e os desenvolvimentos com profissionalismo e seriedade. Existem também vários outros meios de comunicação internacionais, especialmente em países vizinhos como Espanha ou mesmo a Mauritânia, que servem como fontes credíveis. E enfim, apesar de tudo, conseguimos ter informação também através dos meios de comunicação, agora cada cidadão pode ser uma fonte credível de informação.

 

Que mensagem gostaria de enviar à comunidade mundial, ao Conselho de Segurança da ONU e ao SG da ONU, que demora a nomear um novo representante para o Sahara Ocidental?

 

Digo a todos que violaram magistralmente os seus deveres para com o povo saharaui, mas especialmente em relação à Carta das Nações Unidas e ao direito internacional. Devem sentir-se culpados, porque é devido à sua inação que Marrocos continua a ocupar ilegalmente o nosso país. Para o Conselho de Segurança, é mais do que tempo de tratar a questão saharauí nos termos do artigo 7.º, como um caso de agressão militar por parte de Marrocos contra o Estado saharauí. Marrocos deve simplesmente abandonar o território e permitir que a República Saharaui e o seu povo gozem da sua independência e dos seus recursos. Relativamente ao SG, recordo que nos disse no seu último relatório que a situação no Sahara Ocidental está calma. Não sei de que calma ele está falando, porque a situação é terrível agora. É chegada a hora de impor o respeito pela legalidade internacional no Sahara Ocidental.

 

O incidente de 2009 [quando Aminatou foi proibida de entrar no território e encetou uma longa greve de fome no aeroporto de Lanzarote até reverter a decisão das autoridades marroquinas], que dobrou Marrocos, tornando-a mundialmente famosa com risco de sua própria vida, ainda é lembrado. Ele destruiu o mito da soberania marroquina sobre as suas “províncias do sul”. Desde então, a proposta de autonomia, apresentada como forma de "concessão" por parte de Marrocos, ainda não foi aprovada. Qual a razão dessa recusa teimosa de fazer um referendo sobre autodeterminação, quando a democracia e o direito internacional certamente passam por isso?

 

Este é o erro que todas as potências coloniais e ocupantes cometeram por toda a parte. Realmente não tenho uma resposta para essa pergunta, exceto aquela dada pelo general Giap, quando disse que o colonialismo era "um mau aluno que não aprende lições". O que Marrocos está tentando fazer já foi tentado pela França em todos os lugares, inclusive na Argélia, sem resultados, mas Marrocos ainda acredita que pode conseguir submeter um povo que luta por seus direitos, por isso devemos relembrar-lhe a lição.

 

Várias monarquias árabes de facto apoiam o «facto consumado» colonial de Marrocos ao decidirem abrir representações consulares em Laâyoune, nos territórios ocupados. A RASD é, no entanto, um estado árabe e muçulmano. Estamos testemunhando uma reconfiguração geoestratégica graças a esse processo de normalização?

 

Tudo o que Marrocos faz no Sahara Ocidental é nulo e sem importância jurídica ou política. No final, vai ter que sair do nosso país, e aí vamos decidir o que fazer com esses ‘quiosques de corrupção, a que eu não chamaria de consulados, pois se querem ganhar esse título diplomático têm que ir buscá-lo ao dono da soberania do Sahara Ocidental, o povo saharaui e o seu legítimo representante, a Frente Polisario e a República saharaui.

 

Como reage à declaração de Trump, que reconhece ilegalmente a marroquinidade do Sahara Ocidental a troco da normalização de Rabat com a entidade sionista?

 

A proclamação do presidente cessante Donald Trump sobre o Sahara Ocidental não tem valor jurídico ou político, simplesmente porque nem Trump nem qualquer outra pessoa tem o direito de dar o que não lhe pertence àqueles que não o merecem. O povo saharaui é o único e exclusivo proprietário e soberano do Sahara Ocidental e é ele quem decide o seu destino.

Além disso, Trump viola o direito internacional e os princípios das Nações Unidas e da União Africana e viola, até mesmo, um direito fundador da nação americana, ou seja, o direito à autodeterminação dos povos. É, portanto, uma decisão que não tem base legal e deve ser recusada e rejeitada por todas as nações livres.

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