O semanário EXPRESSO publicou no passado dia 10.10.2020 uma interessante entrevista ao ex-conselheiro de segurança nacional dos EUA, John Bolton, republicano e considerado um «falcão» da política externa norte-americana. As questões foram-lhe colocadas no momento em que Trump ainda recuperava da covid-19 e, por isso, o texto está algo desactualidado já que, entretanto, tiveram lugar as eleições presidenciais nos EUA. Mas trata-se uma peça importante para conhecer o carácter (ou a ausência dele) do ainda presidente norte-americano.
Entrevista de Ricardo Lourenço correspondente do EXPRESSO nos EUA
Poucas horas depois de ter sido diagnosticada covid-19 ao Presidente Donald Trump, John Bolton deu uma entrevista exclusiva ao Expresso. O pontapé de saída tornou-se inevitável. Seguiu-se um desabafo de quase meia hora, espécie de ensaio sobre a loucura de um líder, guiado por dois assuntos predefinidos: presideciais e o seu livro “The Room Where It Happened” (“A Sala onde tudo Aconteceu”, sem edição portuguesa), relato do período em que trabalhou na Casa Branca, entre abril de 2018 e setembro de 2019, depois de ter colaborado com George W. Bush no tempo da invasão do Iraque. “Trump não entende os assuntos, não compreende os factos, o que precisa de saber, priorizar, e as consequências dos seus atos”, diz Bolton, que descreve um Chefe de Estado a braços com problemas de insegurança e saúde mental, travões à governação que alimentaram a “receita do desastre” e provocaram “decisões erradas e oportunidades perdidas”.
Trump levará a pandemia a sério a partir de agora?
Não mudará de ideias. A sua visão do problema continuará a mesma. Não reconhecerá nenhum erro e muito menos modificará a forma de agir. O diagnóstico tem horas, por agora é difícil perspetivar as consequências políticas. Porém, se os sintomas do Presidente permanecerem leves, não há razão para nos preocuparmos com o funcionamento do Governo. As consequências para a campanha são mais incertas. Os debates e comícios realizar-se-ão?
Descreve o Presidente como “alguém que desconfia de toda a gente e vê teorias conspirativas em todo o lado”. Tem ideia do que está na base desse comportamento? Insegurança, problemas mentais?
Um pouco dos dois... A desconfiança e a visão conspirativa pioraram na Casa Branca, mas o problema é que ambas funcionam como barreira ao desenvolvimento de políticas, sobretudo em matérias ligadas à segurança nacional. É um problema enorme para um país que o Presidente seja incapaz de se concentrar. Trump não entende os assuntos, não compreende os factos, o que precisa de saber, priorizar, e as consequências dos seus atos.
Foi por isso que desvalorizou os briefings diários da CIA?
Não gosta de ouvir nem de ler. Prefere opinar.
“Aprendo muito pouco quando estou a falar”, disse o antigo Presidente Lyndon Johnson. Trump teima na via oposta, mesmo depois de esses briefings passarem a semanais?
Sim, porque se convenceu de que não precisa de informação. Trump julga que instinto e capacidade de ler os outros chegam para resolver os problemas. Consequência? Decisões erradas e oportunidades perdidas.
Quais?
Não tivemos estratégia coerente em relação à China. No que respeita à pandemia, em janeiro e fevereiro Trump recusou agir contra Pequim. Se o tivesse feito, porventura teríamos controlado a situação. Quanto às oportunidades perdidas, falo da inação em zonas do globo onde temos interesses. Trump considera importante apenas o que vê nos jornais e televisões, e isso complica o planeamento. Juntamente com [James] Mattis e [Mike] Pompeo — ex-secretário da Defesa e atual secretário de Estado, respetivamente —, perdi semanas a fio a explicar-lhe temas importantes, como o caso da Venezuela. Trump levou uma eternidade a perceber que era relevante apoiar a oposição. Como demorou muito e agiu sem interesse, houve impacto nesse planeamento. Governar assim é a receita para o desastre.
O que viram no debate com Biden, falta de educação e bullying, era um dia normal no escritório para mim.
Qual é a visão do mundo de Trump?
Nenhuma. É esse o problema. Trump não tem filosofia, estratégia, não quer saber de política nem de conhecimento. Só se preocupa com o benefício pessoal. Se algo não o favorece, perde interesse. Para ele, as relações são transacionais.
O dossiê sobre a Coreia do Norte, potencial epicentro de uma crise nuclear global, preenche grande parte do seu livro. O encontro entre Trump e Kim Jong-un trouxe benefícios?
Zero. Trump queria cobertura mediática gigantesca na zona desmilitarizada entre as Coreias. Só falava disso. Pyongyang aproveitou a folga e reforçou o programa nuclear desde então. Todos o sabem, nomeadamente os serviços secretos americanos, que Trump insiste em ignorar.
Acusa o Presidente russo, Vladimir Putin, de fazer o que quer de Trump. Tendo em conta a recente denúncia do “The New York Times” de que tem uma dívida de 500 milhões de dólares [425 milhões de euros], teme que a pista do dinheiro desemboque no Kremlin?
Nancy Pelosi, speaker da Câmara dos Representantes, tem repetido que, a ser esse o caso, Trump é uma ameaça à segurança nacional. Não há provas. Certo é que ainda não consegui perceber a afinidade dele com Putin.
Afinidade que, durante a cimeira EUA-Rússia de 2018, em Helsínquia, defendeu Putin em vez de o confrontar com a conclusão das 17 agências de informação americanas de que houve interferência de Moscovo nas presidenciais de 2016.
Fiquei boquiaberto, mas, como sempre, garantiu que as suas declarações foram descontextualizadas. Passou-se o mesmo no debate com Joe Biden, quando lançou um apelo aos Proud Boys, escumalha racista. Todos ouvimos “recuem e estejam a postos”. E atenção: estou certo de que, no caso dos Proud Boys, ensaiou a declaração. Foi de propósito. Animou a base e irritou os inimigos, cujo foco mais uma vez se perde.
Surpreendeu-o a atitude de Trump no debate televisivo com Biden?
O que todos viram, falta de educação e bullying, era um dia normal no escritório para mim. É educado e atento quando lhe interessa. De resto, detesta ser contrariado.
O pedido de Trump ao Presidente ucraniano para investigar negócios da família Biden durante a negociação de uma remessa de armamento, que classificou de “negócio de droga”, espoletou o processo de destituição. Porque não pôs tudo em pratos limpos no Congresso?
Quis contar o que sabia, mas a maioria republicana no Senado [53 em 100] votou contra a audição de testemunhas.
Podia ter falado na Câmara dos Representantes.
Para quê? O destino do processo estava traçado. Os que me acusam de ter guardado sumo para o livro não sabem do que falam. Não é que houvesse disputa sobre os factos. Parece-me que a maioria dos senadores republicanos reconheceu que o Presidente pediu às autoridades ucranianas que investigassem o clã Biden, mas ficou por provar a troca de favores.
Os seus colegas de partido perdoarão tudo a Trump em troca do poder?
É uma opção arriscada. Trump não tem competência para desempenhar o cargo de Presidente dos EUA e isso torna-o muito mais do que um instrumento imperfeito, como vos disse Steve Bannon [entrevista ao Expresso, no início do ano]. Trump é um perigo. Por isso estamos na situação em que estamos e, como tal, não votarei nele. Também não votarei em Biden. Escreverei o nome de um conservador no boletim de voto.
Esse perigo de que fala ameaça o sistema americano?
Essa possibilidade existe sempre. A retórica recente de Trump, de que só perderá se houver fraude, é medonha. Pode perder por muitos motivos. Tem uma enorme desvantagem nas sondagens, e sabe disso. Se está a preparar os apoiantes para um cenário pós-eleitoral caótico, o curto prazo será preocupante. Seja como for, se cumprir apenas um mandato, penso que os danos serão reparáveis. Ao invés, dois mandatos provocarão danos irreversíveis e a república estará ameaçada.
Explique melhor essas perspetivas, a otimista, em que Trump perderia e a América recuperaria depressa, e a pessimista, em que a destruição do país seria irreversível.
Trump é uma anomalia. É importante os outros países perceberem isso. Se Biden vencer, discordarei dele em tudo, mas será uma divergência normal, parte de um debate racional entre republicanos normais e democratas normais. Defendo que os danos seriam reparados, pois ambos os lados percebem que os erros de Trump hipotecam o país. No pior cenário — dois mandatos de Trump —, esse impacto seria profundo na forma como a política é levada a cabo nos EUA. Os nossos piores instintos teriam levado a melhor.
Teme a destruição da democracia?
Não iria tão longe, mas o império romano não ruiu de um dia para o outro, degradou-se aos poucos. Os golpes fatais podem não ser imediatamente visíveis, mas ao longo do tempo tornam-se insuportáveis.
Trump faz bluff quando não garante transição pacífica de poder em caso de derrota?
Quer ter todas as opções em aberto. Por isso diz três ou quatro coisas diferentes sobre o mesmo assunto, pretende que todos os grupos ouçam o que querem ouvir. Daí o que disse sobre os Proud Boys, desmentindo-se depois. Entretanto, colocou a mensagem cá fora, alto e bom som. O resultado dependerá de uma série de variáveis, nomeadamente de como todos esses públicos se comportarem.
O Senado insiste numa transição pacífica. Acredita que Mitch McConnell [líder da maioria republicana] se comportará como Barry Goldwater, seu ídolo de infância, que em 1974 irrompeu pela Casa Branca e disse ao então Presidente Richard Nixon que era hora de partir?
Suponho que existirá essa coragem, caso contrário teremos problemas graves. Sei que, após uma eventual derrota de Trump, o Partido Republicano precisará de introspeção. Não podemos continuar a ser o partido dos estúpidos. Não podemos passar por isto outra vez.
Simon & Schuster
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Com título inspirado numa canção do musical “Hamilton” e o subtítulo “Uma Memória da Casa Branca”, o livro do antigo conselheiro de Trump saiu em junho e ainda não tem edição em Portugal. A Administração Trump tentou travar a publicação, nos tribunais, alegando risco para a segurança nacional e violação da confidencialidade assumida por Bolton quando se demitiu. Além de informação pouco abonatória para o Presidente sobre relações com a China e a Rússia, a obra acusa Trump de “praticar a obstrução à Justiça como forma de vida” e frisa a sua surpreendente ignorância sobre aspetos fulcrais para o cargo que ostenta: desde perguntar se a Finlândia fazia parte da Rússia e não saber que o Reino Unido é uma potência nuclear. O livro aborda a pressão de Trump sobre o Presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelensky, para investigar os negócios da família Biden naquele país, que motivou um processo de destituição falhado este ano. P.C
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