Nuno Abreu e Maria João Salgado publicaram no PÚBLICO de 11 de Outubro passado uma extensa reportagem nos acampamentos de refugiados saharauis, na região de Tindouf, no extremo sudoeste da Argélia, ali bem perto da fronteira com o Sahara Ocidental, Marrocos e Mauritânia. Vale a pena ler o seu relato anterior ao reatamento da guerra no Sahara Ocidental, ocorrido no dia 13 de novembro passado.
A vida nos acampamentos é o que era, mas hoje veem-se poucos homens e jovens. Partiram para a guerra ou estão na instrução militar para se prepararem para partirem para as zonas de combate contra as forças militares do país que invadiu o seu país em 1975 e lhes trouxe a desgraça, a separação dos seus familiares, o exílio. - nota da AAPSO.
O segundo acampamento de refugiados activo mais antigo do mundo foi construído por mulheres que fugiram da guerra e das bombas de napalm e fósforo branco com os seus filhos ao colo, em meados da década de 70. O percurso sinuoso da “última colónia africana” pela voz das mulheres do Sara Ocidental.
Nuno Abreu e Maria João Salgado - PÚBLICO- 11 de Outubro de 2020
“Cavámos profundos buracos para nos metermos lá dentro e nos defendermos das bombas que caíam do céu.” Milhares de mulheres fugiram para o interior do deserto com as crianças para escaparem das bombas de napalm e fósforo branco, enquanto os homens se organizavam para combater as forças invasoras, começou por nos contar Fatma, mulher sarauí que viveu as primeiras transformações na sua sociedade assim que Marrocos e a Mauritânia entraram em confronto com o Sara Ocidental. Um mergulho pelas memórias de Fatma (80 anos), mãe da Lala (34 anos), mulher enfermeira que nos hospedou no deserto árido a alguns quilómetros da cidade de Tindouf, na Argélia, nos acampamentos de refugiados do Sara Ocidental, servia assim de cartão de boas-vindas às 16 noites a dormir sob o alento das estrelas e aos 16 dias por debaixo de um calor abrasador a escutar as suas histórias.
A noite caía no horizonte, depois de uma tarde de ventos fortes que nos deixou sem electricidade durante grande parte do dia. As temperaturas chegaram aos 42º, mas em Julho e Agosto podem chegar aos 50º. A melfa azul-turquesa — vestido e símbolo da mulher sarauí — que cobria o corpo de Fatma imanava uma calma de alguém que já viveu muito e passou por muitas transformações. O chá era preparado enquanto partilhava mais alguns episódios. “Esses tempos foram muito difíceis. Caminhámos quilómetros com as crianças ao colo. Havia poucos carros e quando algum passava íamos dezenas no mesmo.” As sombras no rosto de Fatma começavam a notar-se à medida que ia mergulhando nas suas memórias. “No caminho havia muitos corpos caídos pelo deserto” e os primeiros anos nos acampamentos na Argélia foram de uma miséria total. Não havia água nem comida e todas as crianças tinham febres e diarreias. “Foi muito difícil. As mulheres tiveram de se organizar e começar tudo de novo no meio deste deserto inóspito.” A conversa terminava de forma abrupta com Lala a dizer que a mãe não se sentia bem quando revivia estas memórias.
O que é o Sara Ocidental? Quem é o povo sarauí? O que lhes aconteceu para viverem há 44 anos num dos desertos mais inóspitos do planeta?
Acampamento de Bojador. O fim de tarde permite que Lala saia de casa para ir ao mercado mais próximo comprar alguns alimentos |
Um ponto de interrogação
O Sara Ocidental ainda é para muitos um gigante ponto de interrogação. No Norte de África, a mais presente potência colonial foi a França, mas houve um país que tomou por assalto o território dos berberes: Espanha. No vasto Magrebe, o Sara Ocidental situa-se exactamente entre Marrocos (a norte), a Mauritânia (a sul) e a Argélia (a este). E este é um dos últimos 17 territórios em processo de autodeterminação em todo o mundo (segundo dados das Nações Unidas), também conhecido como a última colónia africana. A ONU reconheceu, em 1966, o direito ao povo sarauí de realizar um referendo de autodeterminação, consulta que nunca se realizou até hoje. Espanha ocupou estes territórios desde 1884 a 1975, altura em que a ditadura franquista caiu. “Saíram dos territórios sarauís de forma repentina, sem deixar um único espanhol para que houvesse uma transição moderada. Ficámos sozinhos, sem qualquer quadro técnico (medicina, educação, gestão, etc.)”, disse-nos Tiba Chagaf, membro da cooperação internacional da República Árabe Sarauí Democrática (RASD).
A 6 de Novembro de 1975, o então rei de Marrocos, Hassan II, incitou 350 mil marroquinos a dirigirem-se por terra rumo ao território do Sara Ocidental, movimento que ficou conhecido como Marcha Verde. Espanha, sem que os sarauís tivessem conhecimento, fizera acordos com a Mauritânia e com Marrocos (Acordos Tripartidos, de 14 de Novembro de 1975). Esta negociação determinava que parte do território estava destinada a Marrocos (Saguia el Hamra) e outra parte à Mauritânia (Rio de Oro). Dá-se início a uma guerra entre os três, acabando a Mauritânia por se retirar a 15 de Agosto de 1979 (Acordo de Argel), ficando apenas Marrocos como pretendente a este território. A partir de 1976, os acampamentos de refugiados começavam a nascer em Tindouf, na vizinha Argélia. É nestes movimentos de fuga dos sarauís que o relato de Fatma entra. Só em 1991 é que a ONU intervém no território para mediar o cessar-fogo. Passados 44 anos no meio de sangrentas guerras com Marrocos e a Mauritânia, o povo sarauí resiste dividido em duas grandes partes: a primeira encontra-se no intitulado Sara Ocidental ocupado por Marrocos; a segunda nos acampamentos de refugiados localizados no deserto profundo da Argélia.
Fatma - mãe de Lala - após nos contar o porquê e como fugiu do Sara Ocidental para os acampamentos de refugiados na Argélia |
As mulheres como núcleo
Chegámos ao aeroporto de Tindouf por volta das 23h e os termómetros indicavam 37 graus Celsius. O bafo quente do lado de fora do nosso jipe augurava uma estada rica em altas temperaturas. A noite ia alta, os corpos cansados, e o ar teimava em dar-nos as boas-vindas à temperatura do chá.
Nesses dias, o povo sarauí estava em celebração pelo prémio Right Livelihood, também conhecido como Prémio Nobel Alternativo dos Direitos Humanos, atribuído à cidadã sarauí Aminetu Haydar. Aminetu é um dos principais rostos da luta pelos direitos humanos na diáspora. A activista ficou conhecida em meados de 2009, após estar 32 dias em greve de fome por ter sido expulsa de El Aaiún, capital do Sara Ocidental. Antes havia sido presa por vários anos e sofrera torturas múltiplas com detenções arbitrárias e sem qualquer apoio jurídico. Aminetu Haydar é um dos símbolos femininos mais celebrados e elogiados por toda a sociedade sarauí, por isso fomos conhecer mulheres que coordenam organismos públicos nos acampamentos, artistas, professoras, trabalhadoras antiminas, vítimas das minas, e cidadãs comuns. O objectivo era compreender o seu papel na construção desta sociedade, os seus desafios e as expectativas que têm para o seu futuro.
A criação da União Nacional das Mulheres Sarauís (UNMS), em 1974, pouco tempo depois da Frente Polisário (movimento político-revolucionário nascido em 1973 para combater a retirada dos espanhóis do seu território), “é um claro sinal da importância da mulher na sociedade sarauí”, disse-nos Mineto Larabàs Suedà, actual coordenadora deste organismo. Como peça fundamental na organização dos acampamentos, decidiu-se que as mulheres teriam de criar um espaço para si, onde nele pudessem trabalhar, de forma autónoma e independente, todas as matérias ligadas à gestão dos acampamentos, ou seja, um local de encontro para que todas tivessem uma voz e pudessem ajudar no fortalecimento da sua sociedade, explicava-nos Mineto.
Para assinalar o dia Mundial da Paz a União Nacional de Mulheres de Bojador contou com a presença de mais de 50 mulheres e algumas organizações internacionais como a OXFAM |
Todos os cinco acampamentos têm um edifício da UNMS, no qual as mulheres se encontram diariamente para discutir e decidir os mais variados assuntos. “Em cada uma destas casas há um grupo de trabalhadoras responsáveis por tudo aquilo que fazemos.” À medida que colocámos as perguntas, outras mulheres sentavam-se à nossa volta e comentavam em hassania. “Para que percebas, em cada acampamento (wilaya) existem várias dayras. Bojador, a wilaya onde estamos, tem três dayras.” As wilayas são as cidades, as dayras, podemos pensá-las como freguesias. Como presidentes de junta, as mulheres têm a impressionante percentagem de 98% de participação, enquanto os bairros são administrados 100% por mulheres. “Tudo o que fazemos aqui dentro tem um tronco comum: encorajamos as mulheres a terem uma participação activa em todos os assuntos que digam respeito à nossa sociedade.”
Durante o diálogo com Mineto, mais do que um papel fulcral na organização das famílias e das suas casas, é o desejo em abraçar todas as áreas basilares de uma sociedade, “desde a educação à saúde, da vida política à nossa emancipação enquanto figuras centrais. É importante que a mulher sarauí seja independente”. Um ou outro homem que ali estava na sala não pestanejava com qualquer comentário mais intenso que Mineto proferia. A voz tornava-se mais firme quando acrescentava que faziam lobby para que a administração central abrisse vagas para as mulheres. O discurso era claro: o tempo e a determinação são cruciais, para que juntas consigam alcançar a igualdade entre os seus pares. Mineto parecia querer terminar a nossa conversa, pois teria de ir para algumas reuniões marcadas, já que “o trabalho não podia esperar”, mas deixou-nos com o principal objectivo da sua coordenação na UNMS, já que na altura da guerra “foram elas que construíram tudo, desde os hospitais às escolas”: “Segundo alguns observadores internacionais, temos os acampamentos mais organizados do mundo.” Sem grandes rodeios, Mineto abordava uma questão que à partida é sensível, mas que não surge envolta em tabu, pois “o que acontece aqui, tal como acontece noutros sítios, quando a guerra acaba, [é que] os homens voltam e ocupam os cargos todos e poucos restam para as mulheres. Queremos estar em todos os níveis políticos e administrativos, 50/50, é isso que queremos”.
Numa sala ao lado, decorria uma sessão com as delegadas das Escolas de Empoderamento da Mulher, organismo criado em 2018 em conjunto com voluntárias do País Basco, com o objectivo de consciencializar a mulher sarauí para a participação política e a importância que tais actividades têm no seio da sua comunidade. Como era de prever, não pudemos entrar nestas sessões, pois são estritamente destinadas às mulheres sarauís e às técnicas de igualdade bascas que ajudam a gerir todo este processo. Aproveitámos o tempo de espera para conversar com uma destas técnicas, Uzune Zuazo, que nos falou um pouco da sua participação e em que é que se baseavam estes encontros. “Esta rede acompanha as mulheres a partir de uma perspectiva feminista. Fazemos formações relativas à participação, liderança e conhecimento corporal. Vimos de dois em dois meses aos acampamentos.”
A sala de aula de uma escola de 2.º ciclo de Bojador com crianças entre os 13 e os 16 anos a assistir a uma sessão de esclarecimento sobre os perigos das minas para os mais pequenos |
A casa da Lala, onde ficámos hospedados, era o nosso refúgio para fugir às assombrosas temperaturas e à escassa humidade. De volta de quatro filhos (dois rapazes e duas raparigas), Lala geria os dias a cuidar deles — o marido é militar, por isso tem períodos de ausência prolongados —, e muitas vezes durante o período da manhã, preparava-nos o café e logo a seguir saía de casa, pois “tinha muito que fazer na dayra” com o resto das mulheres. Sempre rodeada de papéis, algumas dessas manhãs eram também ocupadas com aulas de várias disciplinas, para que a população tivesse uma educação contínua e estivesse sempre a renovar conhecimentos. “Às vezes custa sair de casa por causa do sol e do pó, mas é importante para nos mantermos unidas e para que nada falte a ninguém”.
Segundo dados do relatório da Agência das Nações Unidas para os Refugiados, vivem nos acampamentos cerca de 175 mil pessoas, das quais um pouco menos de metade são mulheres, com a maior fatia da população entre os 18 e os 49 anos. Em Bojador, onde ficámos a dormir, este acampamento é apelidado de “dormitório”, local criado mais tarde para apoiar a região administrativa, com a menor densidade populacional entre todos os cinco acampamentos, com cerca de 16 mil pessoas, mas não menos agitado do que uma “cidade normal” durante as horas em que o sol permitia os trabalhos diários.
Num desses dias tivemos de nos deslocar até outro acampamento, neste caso o de Smara. Depois de algumas horas à espera do táxi, ora porque o taxista não tinha todos os papéis em ordem ora porque não nos queria levar pois teria de esperar algumas horas pelo fim das nossas entrevistas, Lala levou-nos na carrinha do primo Ali até à wylaia de Smara. Chegámos ainda a tempo de visitar o horto público de que nos haviam falado. Para além de um punhado de árvores e arbustos autóctones, não havia praticamente agricultura em desenvolvimento. A bomba de água estava estragada, o que impedia a plantação de alimentos. Naqueles terrenos áridos encontrámos um grupo de mulheres a descansar após o trabalho matinal, abrigadas do sol por algumas árvores. “Normalmente plantamos batatas e outros legumes, mas neste momento não conseguimos fazer muito. Costumamos trabalhar das 8h às 12h, já que as horas seguintes não permitem que andemos por cá.”
Almoço em casa de Lala, antes das crianças irem para a aula de Inglês |
Segundo dados da Oxfam, a população do Sara Ocidental nos acampamentos tem uma taxa de alfabetização que chega aos 90%, ou seja, uma das mais altas de África. A escolaridade obrigatória é feita a partir dos três anos, mas o grande desafio para a continuidade dos estudos acontece no ensino universitário. A maior parte dos jovens prossegue os estudos maioritariamente em universidades argelinas e espanholas. O regresso destes alunos formados é uma das grandes crises que enfrentam. Regressados aos campos, as oportunidades são parcas, o que leva a que muitos procurem a sorte no estrangeiro, acabando por enviar algum dinheiro para as famílias nos acampamentos.
O calor abranda por volta das 19h, assim que o sol se enterra no horizonte, mas mesmo assim algumas das aulas extracurriculares têm início pelas 17h. Visitámos uma delas a convite de uma das filhas de Lala, Baghi (12 anos), que fez questão em levar-nos até à aula de música. Chegámos à biblioteca Bubisher, onde as aulas eram dadas por duas professoras sarauís. “A nova sala de aula, construída pela ONG Sandblast, só estará pronta daqui por uns dias. Por isso o espaço que temos é este”, dizia-nos sorridente a professora Fatimetu Malainin (21 anos), coordenadora no terreno deste projecto educativo.
Sentámo-nos a um canto e logo nos apercebemos e que não eram aulas de música convencionais, pois eram dadas em inglês. As crianças, todas elas entre os 12 e os 13 anos, na sua maior parte raparigas, juntaram-se em roda para realizar os exercícios de ritmo e melodia. No fim, sentámo-nos à conversa com Fatimetu, que nos contou o seu percurso e como tinha ido ali parar. À partida, e para os conhecedores da música do Sara Ocidental, os nomes que mais sucesso tem são de mulheres compositoras como Mariem Hassan (falecida em 2015) e Aziza Brahim, artistas que fizeram digressões pelo mundo inteiro, daí estranharmos o primeiro comentário de Fatimetu ao dizer que “no Sara a música não é algo para mulheres”.
Fatimetu a leccionar uma das aulas de música que são dadas em inglês a crianças entre os 10 e os 12 anos na biblioteca Bubisher |
Mulheres à caça de minas antipessoais
“Porque é que faço isto? Obviamente porque alguém tem de o fazer. E nós estamos aqui para sermos agentes da mudança”, respondia-nos Madya Mohamed Mahmud (21 anos), uma das mulheres que estão a ser formadas pela SMACO (Gabinete de Coordenação Sarauí para as Acções de Neutralização de Minas) com o objectivo de integrar as equipas que ajudam a neutralizar milhões de minas que estão adormecidas por debaixo das areias do deserto do Sara Ocidental. Dizia-nos que algum dia o território teria de ser libertado das minas, e quanto mais cedo o fizessem, mais rápido poderiam tirar partido dele, e era assim uma forma de se sentirem “úteis com um grande objectivo: o de salvar vidas. Não só as pessoas, mas também todos os animais que circulam pelos territórios”.
Assistimos a uma aula de formação prática no terreno de algumas mulheres que se estão a preparar para rumar aos territórios libertados para ajudar na neutralização das minas. A chefe de missão, Fatimetu Bauchria, falou-nos sobre o papel transformador da mulher nesta sociedade. Bauchria lidera um grupo de oito mulheres equipadas com fatos de defesa antimina. Tem 31 anos e já leva quatro anos de trabalho com minas nos territórios libertados. Começou neste trabalho mesmo sabendo que correria muitos riscos e, sobretudo, porque era algo humano, algo bom para a sociedade, dizia-nos. Mesmo quando engravidou, continuou o seu trabalho nos campos de minas, numa afirmação de igualdade entre homens e mulheres. “Gostei de mostrar que a mulher pode trabalhar em tudo o que homem trabalha. A gravidez não é um obstáculo para poderes trabalhar.” A verdade é que, antes de ir, as críticas dos vizinhos eram muitas.
Três mulheres sarauís numa aula prática da SMACO para aprender a neutralizar minas escondidas por debaixo da areia do deserto |
As vítimas de minas
A dedicação de pessoas como Fatimetu e Madya evitam em grande escala casos como aqueles que existem no Centro de Incapacitados Mártir El Sheriff, edifício localizado a uns dois quilómetros de Bojador, bem no meio das dunas negras, alojando cerca de 53 famílias. Em 1981 começou a ser construído um muro para separar a zona controlada por Marrocos da zona controlada pela Frente Polisário. Dos 2720 quilómetros de barreiras de areia altamente militarizadas, cerca de 1465 estão artilhados com minas antipessoais. Apesar de não existirem números totais, estima-se que existam aqui cerca de seis milhões destas armas, tornando este território um dos locais mais mortíferos tanto para os humanos como para a vida animal que ali habita. “Todos os dias descobrimos novos locais repletos de minas, isto na zona libertada, pois não temos acesso nem permissão para saber do lado marroquino”, dizia-nos Alvaro Florez, um dos coordenadores do programa do Serviço de Acção Antiminas das Nações Unidas (UNMAS) para o Sara Ocidental. Desde 2008 que estão no terreno e ficarão até 2023. O objectivo é capacitar a SMACO para que consiga organizar a neutralização de minas no território. “A zona de Tifariti, onde ocorreram os embates mais intensos entre os dois países, é a que está mais ‘infectada’.”
Chegámos cedo ao Centro de Incapacitados e fomos recebidos pelos directores da instituição e do centro hospitalar, Mohamed Ahmed Empeirk e Ahmed Mohamud Taleb Aumar, respectivamente. Todas as vítimas de minas que ali se encontravam tinham o seu próprio espaço para que as suas famílias pudessem ali residir também. Fomos a cerca de dez habitações e lá conhecemos quatro mulheres que haviam sido apanhadas pelas minas. Os quatro casos tiveram lugar nos territórios libertados, quando as mulheres viajavam de carro.
A primeira vítima, Sidammi (54 anos), teve o acidente em 1987. Seguiam três pessoas no carro a caminho de casa e duas minas rebentaram. A sua perna direita ficou imobilizada para sempre. Vive ali com os filhos. O mesmo aconteceu a Mariem, que no ano de 1967, quando tinha ainda oito anos, a viajar pela zona libertada, viu o seu carro explodir e a sua perna amputada. No terceiro quarto encontrámos Indira, uma mulher de sorriso fácil que também tinha a perna esquerda amputada. Ia com os pais no jipe quando uma mina explodiu. Era criança, não se recorda de quantos anos tinha, mas ficou órfã. Selmana Brahim teve o acidente corria o ano de 1991, desde então vive no centro com a família. A tristeza compunha o seu quarto. Abandonámos o local para surfarmos as dunas até ao centro institucional dos acampamentos, Rabuni. Fomos em silêncio. Olhávamos a areia do deserto de outra forma.
No Centro de Incapacitados de Martyr Sheriff outra das mulheres vítimas de minas mostra-nos a amputação da sua perna |
O movimento juvenil sarauí
Muitos fins de tarde foram passados na companhia dos mais jovens. As conversas voavam entre vários temas, mas havia um que era mais forte: o que fazer em relação ao futuro. Uns haviam vivido em Espanha ou fora dos acampamentos noutras cidades argelinas para estudar, mas havia casos de jovens que nunca haviam saído. Os discursos eram diferentes. Estes últimos, mais fechados, mais negros em relação futuro. Os mais cépticos continuavam a achar que desta forma não iam chegar a lado algum, pois a comunidade internacional só se preocupava com os casos mais urgentes. “Nós estamos aqui há 44 anos, mas não há guerras, não há pessoas a morrer em catadupas, não há tensão. Enquanto tentarmos fazer tudo de forma correcta como temos vindo a fazer, vamos continuar a ser ignorados”, dizia Mohamed (28 anos). Alegava emotivamente que ninguém queria saber deles e que aquela terra não era deles nem nunca viria a ser. “Não há trabalho aqui, não há nada. Para que é que vamos estudar? Sou poeta da vida.”
Depois de horas a fio deitados sobre almofadas e a beber chá preto, o cansaço tomou conta do corpo e Mohamed despedia-se a agradecer a nossa visita, para percebermos que a coisa mais bela que esta comunidade tem é a sua hospitalidade: “Essa é a nossa melhor arma.”
Para conseguirmos ter um maior alcance da opinião geral dos jovens e dos seus desafios, fomos conhecer Maglaha Ayna, directora da Associação Nova, organização que promove a não-violência entre as gerações mais novas. Estavam oito pessoas sentadas numa mesa larga à nossa espera, cada um com uma responsabilidade específica dentro da Nova, mas quiseram reforçar que, para além daquele cargo, viviam independentes, pois trabalhavam a tempo inteiro noutros ofícios.
No Centro de incapacitados de Martyr Seriff uma das vítimas de minas conta-nos a história de como ficou imobilizada de uma perna |
Num acampamento de refugiados não é fácil dizer o que está certo ou errado, não há grande moralidade num acampamento, dizia-nos Maglaha. Dialogam com frequência com o Parlamento e com o Ministério da Defesa fomentando a ideia de que não podem voltar à guerra e que a solução viável será apenas através do diálogo. Estão em contacto com a juventude marroquina, argelina e tunisina. No início de cada ano, reúnem-se para definirem a estratégia anual: “Algumas coisas conseguimos, outras, não.” “Como temos pouco financiamento, muitos projectos vão por água abaixo.”
A Associação Nova trabalha quatro grandes temas: emprego, direitos humanos, referendo e recursos naturais. Trabalham com grandes organizações como a Oxfam e outras organizações nórdicas. Viajam para o estrangeiro para poderem participar em formações e diálogos interculturais. Regressam e ensinam aquilo que aprenderam aos que não puderam ir. Adiantava que alguns jovens não queriam estudar, e decidiam trabalhar para ter dinheiro. Outras têm famílias muito frágeis. Outros não querem estudar por saberem que não vão ter trabalho depois, “não há futuro para eles”. As partilhas eram francas e pressupõem um grande esforço diário, já que fomentar a ideia de que irão conseguir a autodeterminação com diplomacia é tarefa de supermulheres e super-homens. “Estamos a tentar conseguir a independência com diplomacia”, lembra-nos Maglaha Ayna. Esta dirigente é pragmática: a juventude tende a não acreditar, por isso é difícil fazê-los ir a estas sessões e falar sobre a não-violência, pois estão fartos daquela situação.
Fatimetu Malainin - mulher que perseguiu o sonho de se tornar numa professora de música sem que a família o soubesse |
Outro dos grandes desafios é a gestão das promessas não cumpridas pela ONU. “Fazem uma promessa e não atingem os objectivos. Isso faz com que as pessoas fiquem frustradas e percam a esperança. E é isso que muitos jovens pensam. Nós queremos ajudar a construir a nossa sociedade de uma forma pacífica e diplomática.”
A arte nos acampamentos
Chegámos muito cedo a casa de Gahuana (33 anos). Começou a sentir que queria ser poetisa aos sete anos e o seu avô inspirou-a a escrever. Os seus poemas falavam da cultura do Sara, das problemáticas que assolam o seu povo. Recitou-nos um poema que retrata tudo isso, intitulado Intifada. Foi muitas vezes convidada para o Ministério da Cultura, mas optou sempre por declinar, pois tem uma família para cuidar. “Quando trabalhamos para o Ministério da Cultura, temos de fazer muitas viagens, o que me deixaria com muito pouco tempo para estar com a família.” Para Gahuana, não há desafios em ser mulher poeta. “Os homens e as mulheres aqui são iguais, o único grande desafio é mesmo viver nestas condições.” Não tem qualquer livro editado. Por vezes, amigos pedem-lhe para escrever algumas palavras para as bodas (casamentos), para que os homens as cantem. São poesias de celebração do amor, mas não gosta muito de o fazer. Prefere falar sobre o Sara e as suas pessoas. Nunca viajou para fora da Argélia. Foi apenas uma vez a Argel e confidenciou-nos que gostaria de lá viver, mas a família não quer ir.
Por entre caminhadas casuais pelos acampamentos, acabamos por conhecer um músico que tinha um estúdio. Assim que chegámos a sua casa percebemos quem era: um dos grandes nomes da música sarauí dos anos 1990, o próprio Nayim Alal. Convidou-nos a entrar na sala de visitas enquanto aguardávamos que limpassem o estúdio. Trabalhava desde 1979 e é um dos poucos produtores com clientes nos acampamentos. Dantes produzia muita música religiosa e revolucionária, mas tudo mudou em 2011, “agora as pessoas querem outro tipo de música, música mais fácil, mais ritmada”. Em 1990 trabalhou com a editora espanhola Nubenegra, na qual gravou o primeiro disco em nome próprio, Nar, entre muitos outros discos em que participou com Mariem Hassan.
Alal foi convidado muitas vezes pelo Ministério da Cultura para gravar os maiores nomes da música do Sara Ocidental, mas acabou por também romper esta relação. Muito trabalho, mas pouco dinheiro, dizia ele. Chegou a tocar em 2001 em Lisboa. Fomos até ao seu estúdio para ouvir a sua mais recente composição. Era música de boda. Com a filha sempre ao colo, disse-nos que o seu sonho seria ela seguir os seus passos, que fosse uma grande produtora e uma conhecida cantora.
Tudo parece ter um propósito e todos têm um espaço seu. Não vemos ninguém a dormir na rua ou a pedir misericórdia. Duas gerações de sarauís nasceram nos campos, nunca viram o mar ou sequer entendem o que é viver fora deles. As mulheres sarauís não perdem a esperança de um dia voltarem aos territórios por si reclamados, mas enquanto não o conseguem, trabalham para viver no melhor do pior dos mundos. As sarauís dão uma lição de vida e resiliência. O Sara será sempre delas.
Sem comentários:
Enviar um comentário