domingo, 31 de janeiro de 2021

O que deveria fazer Espanha no Sahara Ocidental?

 


O Executivo de Pedro Sánchez poderia tornar-se no primeiro governo democrático a tomar a iniciativa para rectificar a grave injustiça cometida contra o povo saharaui

 

Um artigo de de Ana Camacho e Fernando Maura (*) no El Confidencial

O reconhecimento da soberania marroquina sobre o Sahara Ocidental pelo presidente Donald Trump obriga a Espanha a tomar a iniciativa após mais de 43 anos de inação no conflito por resolver da sua antiga província da África Ocidental, situada a menos de 100 quilómetros das ilhas Canárias.

O passo dado por Trump criou uma euforia e uma sensação de poder sem limites em Rabat, que atua em termos geopolíticos com aquela atitude de arrogância perigosa, como acontece com vizinhos abusadores que, por gozarem da paciência alheia, acabam por acreditar que isso os autoriza a pular com impunidade sobre as regras básicas de convivência .

A responsabilidade por esta situação não recai apenas sobre Trump. Desde 1975, os seus antecessores na Casa Branca apoiaram a ocupação marroquina do Sahara Ocidental e reagiram às suas atitudes impulsivas com uma atitude complacente que não tiveram com a invasão iraquiana do Kuwait.

Mais prejudicial ainda foi a atitude da França, que usou sua condição de membro do Conselho de Segurança com direito de veto para ajudar o seu aliado favorito no Norte da África a impedir o Referendo da Missão das Nações Unidas para o Sahara Ocidental (MINURSO), que desembarcou no território em 1991 para realizar uma consulta que, segundo o pacto assinado pelo próprio Governo marroquino, deveria dar ao povo saharaui a possibilidade de decidir o seu futuro, incluindo a opção da independência.

Porquê falar de Espanha, hoje a principal vítima do que o embaixador norte-americano Frank Ruddy — testemunha dos acontecimentos —, definiu como a "atitude delinquente de Marrocos". Espanha que começou por dar um mau exemplo com uma grave violação do direito internacional em fevereiro de 1976, quando anunciou à comunidade internacional que, além de abandonar o povo saharaui ao seu pior inimigo, estava a renunciar às suas responsabilidades legais como potência administradora. Teoricamente, esta etapa significou o fim das responsabilidades claramente descritas no artigo 73 do Capítulo XI da Carta das Nações Unidas onde se afirma que as potências administradoras têm o "dever sagrado" de defender os interesses dos povos sob sua tutela e protegê-los contra todos os abusos.

Trata-se de uma responsabilidade que não prescreve legalmente até que as pessoas protegidas atinjam a sua autodeterminação. Por isso, desde então, ano após ano, a ONU continuou a apontar que o Sahara continua a ser um Território Não Autónomo (situando o conflito como um problema de descolonização e não de secessão, como se diz em Rabat) e que a Espanha não deixou de ser, legalmente, sua potência administrante.

 

"Espanha erroneamente acreditava que o grande favor que estava fazendo a Marrocos compraria a paz com um tão problemático vizinho"

 

Todos os governos espanhóis que se seguiram à transferência da administração do Sahara Ocidental para Marrocos, em virtude dos chamados 'acordos de Madrid' de 14 de novembro de 1975, tinham perfeira consciência de que o que foi feito em 26 de fevereiro de 1976 era contra as normas da internacional e, especialmente, da Carta das Nações Unidas. Mas, em vez de retificarem e fazerem justiça ao povo saharaui, todos preferiram continuar com a simulação. Assim, deram ao anexacionismo marroquino uma grande vantagem diplomática na ONU, onde a representação dos povos dos Territórios Não Autónomos deve ficar a cargo do poder administrante. Os governos espanhóis acreditaram erradamente que o grande favor que prestavam a Marrocos, à custa de deixar o povo saharaui sem voz perante a comunidade internacional, compraria a paz com um vizinho tão problemático. A atual espiral de tensão demonstra claramente o fracasso dessa política.

Há quem não queira ou prefira não ver. São eles que agora pedem ao Governo de Pedro Sánchez que faça uso da posição de preeminência que a Espanha continua a ter legalmente no conflito para resolver a questão a favor de Marrocos. É verdade que a monarquia alauita sugeriu em numerosas ocasiões que o reconhecimento espanhol do caráter marroquino do Sahara seria recompensado com um bom relacionamento bilateral. Mas o legado da história está repleto de violações marroquinas de seus compromissos internacionais com a ONU, com os seus vizinhos do Magrebe (também objeto de reivindicações territoriais) e, especialmente, com a Espanha. O próprio General Franco foi vítima de uma delas, quando, em 1958, entregou ao reino marroquino Cabo Juby, um pedaço do território ancestral do povo saharaui. O ditador soube então que este tipo de transação está fadado ao fracasso devido à insatisfação incurável do Estado marroquino, marcado pela ideologia expansionista do Grande Marrocos: ao resto do Sahara seguir-se-ia Ceuta e Melilla; e depois, porque não, as Ilhas Canárias (já sabemos muito bem por experiência própria que os nacionalistas não se contentam com mais quaisquer concessões que lhes sejam feitas). O actual presidente já teve provas deste padrão marroquino porque, no ano passado, quando Marrocos reivindicou as águas marítimas do sul das Canárias para se apropriarem de uma enorme riqueza mineral, o fez precisamente aproveitando a sua actual e ilegal posição no Sahara . O que não faria com uma anexação "legalizada"?

Aqueles que, no entanto, defendem a ‘entente’ com Marrocos, devem tomar nota dos argumentos apresentados nos Estados Unidos por James Baker ou John Bolton para exigir do democrata Biden a anulação oficial do reconhecimento de Trump. Ambos são personalidades importantes da política externa do Partido Republicano e grandes conhecedores do que acontece no Sahara Ocidental.

Baker, ex-secretário de Estado (dos EUA) durante a primeira Guerra do Golfo e representante Pessoal do secretário-geral da ONU para o Sahara Ocidental de 1997 a 2004, advertiu que a medida tomada por Trump a favor do Marrocos não tem contrapartidas que compensem a perda de prestígio que este ato de "cinismo" origina pela sua violação dos princípios básicos do direito internacional e da diplomacia. Também alertou que manter essa tendência de deriva ajudará a alimentar a guerra numa área que já é bastante instável. Mas onde Baker colocou ênfase especial é no perigoso precedente de impunidade que o reconhecimento de Trump a favor de Marrocos cria para aqueles Estados que aspiram a uma extensão de suas fronteiras fora da legalidade internacional. A razão é clara: Marrocos não demorou cinco minutos a cumprir as previsões de Baker, abrindo uma nova frente de ameaças à Espanha em relação a Ceuta e Melilla, que, aliás, nunca foram incluídas na lista de Territórios Não Autónomos da ONU.

A entrega definitiva do Sahara a Marrocos não favorece os interesses da Espanha, muito pelo contrário. Nos foros internacionais, o abandono de responsabilidades com respeito ao Sahara prejudicou o prestígio espanhol durante todos estes anos. Com uma guerra se aproximando na região, temos agora todas os atestados para assumir a culpa em voz alta. Além disso, a consistência da nossa complexa política de permanecer na costa do Norte da África e nas Ilhas Canárias está em jogo enquanto reivindicamos a colónia de Gibraltar aos britânicos. Apenas o estrito respeito ao direito internacional e às resoluções da ONU mantém esta situação que alguns consideram contraditória.

 

"Em vez de se alinhar com Donald Trump, o Governo Pedro Sánchez definiria um novo rumo que devolveria a iniciativa a Espanha"

 

O Governo de Pedro Sánchez tem outra opção, agarrar o touro pelos cornos e retomar o papel que corresponde à Espanha para voltar ao cessar-fogo, fechando assim qualquer possibilidade de guerra no Sahara que ameace a estabilidade do norte de África e das Ilhas Canárias.

Tem ao seu alcance o exemplo de Portugal em Timor-Leste, colónia portuguesa anexada pela Indonésia em 1975, que hoje ocupa um lugar na ONU como Estado soberano. O que este caminho exige é reconhecer a ausência de validade jurídica aos acordos de Madrid, porque esta é uma oportunidade para esclarecer que eles nunca foram legítimos, e reverter esta situação para a ordem internacional entregando à ONU a administração do território para que, com o seu apoio, se realize finalmente o referendo de autodeterminação livre e transparente que deverá pôr termo à descolonização do povo saharaui. A Espanha já tentou esta via em 1975 com o chamado 'plano Waldheim'. Foi sabotado pelos simpatizantes em Madrid de conceder um novo ‘regalo’ (presente9 a Marrocos, impondo a assinatura dos já mencionados acordos de Madrid .

Em vez de se alinhar com a ação de Donald Trump, o Governo de Pedro Sánchez daria um novo rumo que devolveria essa iniciativa do Norte da África à Espanha. Seria, finalmente, o primeiro governo democrático a agir para retificar a grave injustiça cometida contra o povo saharaui, a única nação árabe de língua espanhola. Uma mudança, sem dúvida estratégica, na nossa política externa que exigiria reorganizar a nossa política de alianças, aproveitando a oportunidade que a presença de um novo e mais confiável inquilino na Casa Branca nos oferece.

 

*Ana Camacho é jornalista e professora de Relações Internacionais.

* Fernando Maura é advogado, político e escritor.

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