sexta-feira, 1 de janeiro de 2021

OPINIÃO - O conflito Sarauí e o apoio norte-americano a Marrocos – consequências

 



Autor: João Henriques Artigo publicado no jornal i (*)

Nota AAPSO - os artigos publicados não refletem necessariamente as posições da associação, mas podem ser contributos para a compreensão de toda a envolvente, regional e internacional, do conflito do Sahara Ocidental.

 

A política externa dos Estados Unidos da América tem mantido, ao longo de décadas, uma linha orientadora que, em determinadas matérias, vai sendo comum às sucessivas Administrações. No tema em análise, e sob a presidência de Bill Clinton, a política de neutralidade foi sendo a dominante, não tendo reconhecido, ao longo da quase totalidade dos seus dois mandatos, o território sarauí como fazendo parte do Reino de Marrocos. Esta posição, contudo, sofreria, já no declinar do seu consulado presidencial, algumas mudanças, alegadamente por razões de apaziguamento entre as partes em conflito, e, consequentemente, na estabilização da região e na defesa dos interesses norte-americanos. Deste reajustamento estratégico resultaria o aprofundamento das relações entre Marrocos e os Estados Unidos. Todavia, a posição de neutralidade norte-americana manter-se-ia somente até ao passado dia 10 de Dezembro de 2020, momento escolhido pelo ainda inquilino da Casa Branca, Donald Trump, para, formalmente, reconhecer “a soberania de Marrocos sobre o Sara Ocidental”, na crença de que “um Estado sarauí independente não é uma opção realista para resolver o conflito, e que a autonomia genuína, sob a soberania marroquina, é a única solução viável”[1], a troco de um acordo visando o estabelecimento de relações diplomáticas entre Marrocos e Israel. Esta alegada condição mereceria a imediata “correcção” pela voz do ministro das Relações Exteriores marroquino, Nasser Bourita[2]. Interpretações à parte, este acordo faz, assim, de Marrocos o quarto país árabe, depois dos Emirados Árabes Unidos, do Bahrein e do Sudão a aderir à proposta norte-americana de aproximação ao Estado judaico, o que, na prática, põe termo a décadas de alheamento mútuo, apesar de ter havido sempre um relacionamento isento de tensões. Com esta viragem, só aparentemente inesperada, novos desenvolvimentos irão marcar os próximos tempos da agenda internacional, com posicionamentos políticos e geostratégicos claramente opostos, neste já longo conflito pós-colonial.

 

ANÁLISE

Face à declaração norte-americana, a Argélia reiterou, de imediato, “o seu apoio inabalável à justa causa do povo sarauí”. Numa declaração oficial, a Argélia defende que “o conflito do Sara Ocidental é uma questão de descolonização, que só pode ser resolvida através da aplicação do direito internacional e da doutrina consagrada das Nações Unidas e da União Africana sobre o assunto”, reconhecendo “o exercício autêntico pelo povo sarauí do seu direito inalienável à autodeterminação e independência, de acordo com as disposições da resolução 1514 (XV)”, acrescentando que “a proclamação anunciada, em 10 de Dezembro deste ano, não tem efeito jurídico, pois infringe todas as resoluções das Nações Unidas e, em particular, as do Conselho de Segurança sobre a questão do Sara Ocidental, sendo esta última a resolução 2.548, de 30 de Outubro de 2020, redigida e defendida pelos Estados Unidos, e que poderia minar os esforços de desaceleração desenvolvidos em todas as direcções para preparar o terreno para o lançamento de um verdadeiro processo político, e para convencer as duas partes em conflito, o Reino de Marrocos e a Frente Polisário, da necessidade de se comprometerem, sem condições, no caminho do diálogo, sob a égide das Nações Unidas, e com o apoio da União Africana”. Esta posição viria a ser confirmada pelo seu representante diplomático, em Portugal, o embaixador Abdelmadjid Naamoune, “ no seguimento do artigo publicado a 30 de Novembro de 2020, no jornal ‘Diário de Notícias’ relativo à questão do Sara Ocidental…”, recorrendo a um outro artigo inserto no mesmo órgão, no passado dia 18[3]. Nesse seu texto, o diplomata lembra que a questão que envolve o território sarauí deverá respeitar o acordo estabelecido pelas Nações Unidas, em 1991, que “indica, claramente, que a Argélia e a Mauritânia são ‘países vizinhos e observadores oficiais’ deste Processo, e que as únicas partes do conflito, signatárias do acordo de cessar-fogo” são Marrocos e a Frente Polisário, reafirmando o “apoio inabalável” do seu país “às causas justas”, e que esse “compromisso firme e sincero nunca colocou a Argélia na posição de “parte em conflito”. O representante diplomático argelino, em Portugal, termina a sua exposição, recorrendo à declaração do Secretário-Geral da ONU, António Guterres, do passado dia 11, salientando que, para a Organização, “tudo se mantém inalterado”, e que a solução para o conflito, numa clara alusão à declaração do presidente norte-americano, “não depende do reconhecimento dos Estados, individualmente, mas da aplicação das resoluções do Conselho de Segurança”. Já da parte de Marrocos, a interpretação é bem diferente, considerando o Sara Ocidental como parte integrante da sua soberania territorial. Definitivamente, para Marrocos, o território há décadas em disputa faz, historicamente, parte do Reino, aceitando, unicamente, negociar no âmbito de um processo de autonomia. Através de um comunicado divulgado pelo Palácio Real, no passado dia 10, o Rei Mohammed VI refere que “esta decisão é o resultado de intensas consultas sobre o assunto entre os dois Chefes de Estado, ao longo de vários anos”, e que com a promulgação do decreto presidencial norte-americano, “este acto se assume como uma inegável força jurídica e política, com efeitos imediatos relativamente à decisão dos Estados Unidos da América em reconhecer, pela primeira vez na sua história, a plena soberania do Reino de Marrocos sobre toda a região do Sara marroquino”.

 

Assim, face à declaração de Donald Trump, as reacções não se fizeram esperar. A Frente Polisário reagiu energicamente, condenando, através de comunicado, o anúncio norte-americano como sendo “uma flagrante violação da Carta das Nações Unidas e das resoluções de legitimidade internacional”, acrescentando que a medida “obstrui os esforços da Comunidade Internacional para encontrar uma solução para o conflito”, garantindo, ainda, “continuar a sua luta pelo Sara Ocidental”[4].

 

Num contexto de natural incerteza quanto ao desfecho deste conflito, o posicionamento de parte dos principais actores internacionais está longe de se revelar consensual. Para o presidente norte-americano, enquanto patrocinador do acordo, o mesmo constitui um “enorme passo para a paz no Médio Oriente”, no que é seguido pela França, Membro Permanente do Conselho de Segurança da ONU. Posição contrária, é, no entanto, a de outro Membro Permanente do Conselho de Segurança, a Rússia, que denunciou a decisão do presidente dos Estados Unidos, de reconhecer a soberania de Marrocos sobre o Sara Ocidental, como sendo “unilateral”, estando “completamente fora do quadro do Direito Internacional”, para além de não ter respeitado “as decisões do Conselho de Segurança da ONU, com as quais os próprios norte-americanos concordaram”[5]. Do seu lado, Espanha, antiga potência colonizadora do território[6], defende que, apesar do acordo mediado pelos Estados Unidos, “permanece por resolver a questão do Sara Ocidental”.

 

Num processo aparentemente favorável às pretensões de Marrocos, é de admitir, a breve trecho, o aprofundamento do conflito, com uma reacção armada da Frente Polisário, que seguramente beneficiará do apoio da Argélia, em território onde as tensões aumentaram desde há algum tempo, num cenário de confrontação entre os dois Estados magrebinos, pintando de cores negras o eventual sucesso marroquino pela disputa do território sarauí[7].

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Independentemente dos seus efeitos práticos, o reconhecimento da soberania territorial de Marrocos sobre o Sara Ocidental, por parte do ainda presidente norte-americano, ameaça perturbar o acordo diplomático sobre o destino do Sara Ocidental, tornando, desde logo, a próxima Administração Biden refém de uma decisão para a qual nada contribuiu. Objectivamente, a decisão de Donald Trump irá pôr em causa uma bem amadurecida estratégia norte-americana face a este longo conflito. Aliás, membros do próprio Partido Republicano defendem que “o acordo entre Marrocos e Israel poderia ter sido feito sem a necessidade de negociar os direitos do povo sarauí”[8], tendo em consideração, sobretudo, a existência, desde há muito, de relações cordiais entre Marrocos e Israel, das quais sobressai a intenção marroquina de reconhecer o Estado de Israel, já desde o reinado de Hassan II. Certo é que Donald Trump terá exorbitado nas suas funções com a tomada de uma posição considerada precipitada por muitos analistas, e à revelia dos restantes protagonistas – a Frente Polisário, como parte directamente interessada, e a Argélia e a Mauritânia, enquanto detentores do estatuto de observadores. Esta decisão é ainda mais discutível se se tiver em conta o apoio dos Estados Unidos à manutenção no território da Missão das Nações Unidas para o Referendo no Sara Ocidental (MINURSO). No entanto, a autoridade que lhe é conferida pela Constituição norte-americana, em matérias relacionadas com a política externa, legitima a sua iniciativa. Cabe, a partir da tomada de posse do novo presidente, Joe Biden, a 20 de Janeiro de 2021, o complicado exercício de tentar reverter a decisão do seu antecessor; algo que aconteceria pela primeira vez na história da política externa norte-americana. Certo é que a sua agenda, previsivelmente, intensa e conturbada, está, desde já, a ficar condicionada.

 

As Nações Unidas, entretanto, já manifestaram a sua posição sobre o conflito, como sendo inalterada, mantendo a sua Força de Manutenção da Paz, no território, a fim de “permitir ao povo sarauí a sua legitima escolha entre a independência e a integração formal no território do Reino de Marrocos”. Todavia, a ameaça protagonizada pela Frente Polisário manter-se-á, seguramente, até à proclamação da independência do território, há décadas em disputa - o Sara Ocidental – que, para as Nações Unidas, mantém, ainda, o estatuto de “território não autónomo”, tendo em conta a ausência de um acordo final.


[1] Disponível em: https://www.whitehouse.gov/presidential-actions/proclamation-recognizing-sovereignty-kingdom-morocco-western-sahara/

[2] THE AFRICA REPORT, 17 de Dezembro de 2020.

[3] DIÁRIO DE NOTÍCIAS, 18 de Dezembro de 2020.

[4] FRANCE 24, 11 de Dezembro de 2020.

[5] TASS, 11 de Dezembro de 2020.

[6] Para parte da Comunidade Internacional, assim como para a ONU, o Sara Ocidental é um território a aguardar, ainda, a descolonização formal por parte de Espanha.

[7] ATLANTIC COUNCIL, 10 de Dezembro de 2020.

[8] FOREIGN POLICY, 15 de Dezembro de 2020.


João Henriques

(*) Investigador Integrado do Observatório de Relações Exteriores (OBSERVARE)/Universidade Autónoma de Lisboa

Vice-Presidente do Observatório do Mundo Islâmico

Auditor de Defesa Nacional pelo Institut des Hautes Études de Défense Nationale (IHEDN), de Paris


 

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