quinta-feira, 6 de maio de 2021

Sara Ocidental: muralhas no deserto - artigo na revista VISÃO

 

Joaquin Gomez Sastre/NurPhoto via Getty Images


O povo saraui merece ser apoiado. Com o recomeço da guerra aumentaram as violações dos direitos humanos. Estamos à espera de massacres mais visíveis para agir?


A questão do Sara Ocidental ressurgiu na cena internacional. Do ponto de vista mediático, mas também diplomático. Após 30 anos de um cessar-fogo assinado entre a Frente POLISARIO – reconhecida como representante do povo saraui – e o Reino de Marrocos, mediado pela ONU e pela OUA (agora União Africana), a guerra eclodiu de novo em novembro passado, e tem potencial para arrastar um conflito de maiores proporções, numa região extremamente instável.

O reacender deste conflito, o qual apesar da pouca visibilidade internacional foi sempre larvar, não aconteceu por acaso: o cessar-fogo assinado em 1991 implicava a realização de um referendo de autodeterminação para que o povo saraui pudesse decidir o seu futuro. Como aconteceu em Timor Leste há quase 22 anos.

De acordo com o Direito Internacional, e as resoluções da ONU, o Sara Ocidental é ainda um território não-autónomo, pendente de descolonização. Por isso foi criada, em 1991, a MINURSO – Missão das Nações Unidas para o Referendo no Sara Ocidental. Esperava-se que levasse a cabo todas as diligências para a concretização de um referendo. Ao fim de décadas esta missão mantém-se no terreno. O referendo nunca se concretizou. O povo saraui continua repartido por um território sob ocupação marroquina e um pequeno território sob administração da FPOLISARIO. Espaços divididos por um muro construído por Marrocos com 2.250km. Muralha fortemente minada e militarmente policiada. Povo ainda dividido entre campos de refugiados em solo argelino, com cerca de 170.000 pessoas, e a diáspora.

Em 21 de Abril, realizou-se mais uma reunião do Conselho de Segurança da ONU. A expectativa cresceu, embora estivesse apenas agendada a aprovação de um novo orçamento anual para a MINURSO. Na prática, esperava-se que o Secretário-geral António Guterres anunciasse quem seria o seu próximo Representante Pessoal para o Sara Ocidental, ao fim de dois anos de vacatura do posto. Esta nomeação é essencial para recomeçar as negociações com vista à efetivação do exercício de autodeterminação. Não aconteceu.

Em 17 de fevereiro, 27 senadores norte-americanos, dos Partidos Democrata e Republicano, dirigiram ao Presidente Biden uma carta pedindo a revogação da decisão de Trump, tomada a poucos dias do fim do seu mandato, na qual era reconhecida a soberania marroquina sobre o Sara Ocidental. Os 27 afirmam ser contra todas as normas internacionais a aquisição de um território pela força. Para já, a Casa Branca declara estar a estudar a situação. Se Biden revogasse a decisão, ganhava força a necessidade de Marrocos ser alvo de medidas internacionais retaliatórias.


"Espera-se um novo acórdão do TJUE que pode pôr em causa os acordos assinados entre a UE e Marrocos nos domínios da agricultura e das pescas. Em março, Marrocos não assinou o novo acordo sobre o transporte viário porque a UE dele excluía o “território não-autónomo do Sara Ocidental”.

 

É fundamental que a União Europeia exija a realização do referendo de autodeterminação. Em 2019 o Parlamento Federal alemão reiterava que Marrocos é o poder ocupante de um território que não lhe pertence. O mesmo tinha sido confirmado pelo Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE), em 2016 e 2018 e, mais recentemente, pela União Africana, em 9 de março.

A par do conflito armado, as batalhas diplomáticas vão intensificar-se. Espera-se um novo acórdão do TJUE que pode pôr em causa os acordos assinados entre a UE e Marrocos nos domínios da agricultura e das pescas. Em março, Marrocos não assinou o novo acordo sobre o transporte viário porque a UE dele excluía o “território não-autónomo do Sara Ocidental”.

Para compreender o que se passa nesta zona do Norte de África é preciso distinguir entre as principais forças em presença: o poder ocupante e um povo à espera de decidir sobre o seu destino. Como acontece nos processos coloniais, o mesmo regime – que “sob o Rei Mohamed VI, se tornou cada vez mais autocrático” (editorial do Washington Post, 30 de abril) – oprime dois povos.

A sociedade portuguesa não esqueceu Timor-Leste. O povo saraui merece também um apoio forte e baseado no Direito Internacional. Com o recomeço da guerra aumentaram as violações de direitos humanos no território ocupado. Estamos à espera de massacres mais visíveis para agir? A justiça não é o nosso guia fundamental?

Luísa Teotónio Pereira – Associação de Amizade Portugal-Sahara Ocidental

Miguel Filipe da Silva – Centro de Estudos Africanos da Universidade do Porto

 

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