sábado, 16 de outubro de 2021

DE MAHBES, O PONTO MAIS QUENTE DO CONFLITO - Sobre a ofensiva que Marrocos nega: "O objetivo da Polisario é a guerra de desgaste".

 


EL INDEPENDIENTE - FRANCISCO CARRIÓN - (texto e fotos) | ACAMPAMENTOS SAHARAUIS (ENVIADO ESPECIAL)

16/10/21

Ao fim da tarde, enquanto os raios de sol se dissipam no horizonte, o comandante Baali Hamudi e o seu pelotão de soldados deslizam por um topo árido. Do promontório, podem ver o muro e, a cerca de oito quilómetros de distância, o radar de uma base militar marroquina. O quartel é o alvo de uma operação que a Frente Polisario assinala alguns minutos mais tarde, aproveitando os últimos feixes de luz do dia.

Baali Hamudi, um veterano combatente saharaui, lidera um dos esquadrões na sexta região militar da Polisario, nos confins de Mahbes, um enclave demarcado pelo muro que se estende através da parte norte do Sahara Ocidental, no triângulo formado pelas fronteiras de Marrocos, Argélia e Mauritânia. "É um sector muito ativo. A sua intensa atividade mostra claramente as ações da guerra durante o último ano", adverte o comandante, que tem uma tez escura, um bigode cinzento e uma figura enxuta.

Em novembro passado, a Frente Polisario retomou uma guerra que estava hibernada há três décadas. O presidente da autoproclamada República Árabe Saharaui Democrática, Brahim Ghali, decretou então "o fim do compromisso de cessar-fogo" e o reinício da "luta armada em defesa dos legítimos direitos do povo saharaui". Desde então, Mahbes tem sido a frente mais frenética num conflito armado cuja existência nem sequer é reconhecida pelo regime de Alauita.

O último relatório do Secretário-Geral da ONU, publicado no início deste mês, indica que 83% dos cerca de 1.000 incidentes de tiroteio de longa distância contra unidades militares marroquinas foram localizados em Mahbes. Uma cifra de que o experiente comandante  se vangloria com orgulho indisfarçado. "Em novembro de 2020, foi aberto um novo capítulo na nossa terra. A comunidade internacional não soube resolver o conflito em 29 anos e essa frustração é partilhada por todos, especialmente entre os jovens", explica o homem fardado no precário campo militar que, camuflado numa planície de arbustos, serve de base às suas operações.


«A guerra é sempre a mesma, agora e no passado. Não há guerras pequenas nem grandes»

MAHMUD SALEM, MILITAR DA FRENTE POLISARIO

 

Novas gerações

Entre os jovens militares que povoam o deserto está Omar Deidih: "Sou um soldado e um militante do Exército Popular Saharaui", diz o jovem de 23 anos, no seu espanhol polido pelos seus verões em Espanha e pelos seus estudos em Cuba. "A revolução não é uma opção mas uma responsabilidade", proclama com confiança. A maioria dos seus camaradas de luta tem menos de trinta anos.



Apesar da calma, não é um dia comum para o esquadrão liderado por Baali Hamudi, filho de um presidente de câmara franquista que se juntou às fileiras da Polisario pouco depois do nascimento do movimento para exigir o fim do controlo espanhol do enclave e reivindicar a independência, ainda hoje esquivo. Os soldados sob o seu comando são visitados por um grupo de jornalistas espanhóis. E a unidade prepara uma ação que empreende a meio da noite.

"Os mais velhos são cada vez em menor número, mas os jovens têm uma vontade mais forte do que nós. Falta-lhes muita experiência, mas é precisamente por isso que estamos aqui", admite Mahmud Salem, um homem de 60 anos que partilha o comando com o comandante e mostra as suas divisas pouco antes de partir para a frente. "Estou nas trincheiras desde 1977. A guerra é sempre a mesma, agora e no passado. Não há pequenas ou grandes. Guerra é guerra", amaldiçoando aqueles que sempre viveram entre as suas pregas.

 

Ataque a uma base militar marroquina

Minutos mais tarde, uma caravana de veículos «todo-o-terreno» percorre o deserto, dirigindo-se para a linha da frente onde um BM-21 Grad, o lendário sistema de foguetes de lançamento múltiplo de fabrico soviético, aguarda ordens. O seu alvo é o radar Stentor da base 19 do do 43º batalhão do Exército Real Marroquino. Um dispositivo concebido para detetar alvos móveis, tais como infantaria, helicópteros, aviões de baixo voo ou veículos terrestres.

Um rugido, seguido de um clarão de luz, atravessa o céu. Em segundos, atinge o horizonte. A ação é respondida por Marrocos. Dois morteiros de 120 milímetros caem, segundo a Polisario, a 500 e 300 metros da colina a partir da qual o muro é visível. Um terceiro atinge uma posição próxima do graduado. Nessa altura, a caravana já voltou para trás, dirigindo-se para a base. No escuro, com o brilho da lua crescente, a caravana afasta-se da linha da frente. Uma escaramuça semelhante foi executada por outra unidade a cerca de 100 quilómetros de distância.




"A nossa missão é levar a cabo uma cadeia de fustigamentos, visando os setores mais fracos e mais sensíveis. O objectivo é uma guerra de desgaste", confirma Baali Hamudi. A ONU reconhece que, apesar da recusa de Marrocos em reconhecer a escalada, "hostilidades de baixa intensidade" têm tido lugar desde novembro, com disparos esporádicos através da berma ao pé do muro. "Foi isto que nos permitiu tomar a iniciativa. São eles que, para além da sua capacidade militar, estão na defensiva. O exército marroquino é um exército entrincheirado, incapaz de controlar o momento em que vai ser atingido", diz o comandante. Como excepção, cita um comboio de civis saharauis alvoo do exército alauita a 18 de agosto.

Os combates, em declínio desde janeiro, concentram-se na região de Mahbes, na paisagem acidentada das suas zonas libertadas, numa porção do muro, na sua maioria areia que, ao longo de 2.700 quilómetros, separa as terras ocupadas por Marrocos das terras controladas pela Polisario. Em fevereiro, uma incursão reivindicada pelos saharauis no sector Agha obrigou Rabat a construir uma nova secção do muro. Desde o fim das tréguas, fontes da Polisario afirmam que os combates deixaram nove mortos e cerca de vinte feridos entre as suas fileiras. Marrocos, no entanto, não tornou públicas quaisquer cifras de vítimas.

 

«A nossa missão é levar a cabo ataques de fustigamento em cadeia, visando os setores mais fracos e mais sensíveis.»

BAALI HAMUDI, COMANDANTE DA FRENTE POLISARIO


Baixas inimigas

"Sabemos pelos funerais que têm sido realizados, alguns até funerais de Estado, que o exército marroquino sofreu baixas consideráveis em todas as patentes militares", diz Baali Hamudi vagamente. O conflito sem fim na província outrora espanhola, o último território não-colonizado do continente africano, é uma guerra assimétrica, também em termos dos recursos disponíveis para cada lado. A unidade comandada pelo septuagenário é composta por jovens cujo estatuto laboral é mais próximo do de voluntários do que de uma instituição militar convencional. Recebem uma mesada trimestral que mal cobre as suas necessidades.

Também não existem quaisquer semelhanças em armamentos para equilibrar a batalha. Marrocos, que obteve o reconhecimento americano da sua soberania sobre o Sahara [o famoso tweet de Presidente Trump a poucos dias de abandonar o cargo] em troca do restabelecimento dos laços com Israel, recebeu de Telavive e Abu Dhabi, a "Esparta" liderada pelos Emirados Árabes Unidos, arsenais substanciais de última geração. Os saharauis não fazem segredo do facto de continuarem a utilizar o barril de pólvora de Kalashnikovs, lançadores de foguetes multiplos e metralhadoras que acumularam em tempos mais propícios, sendo a então União Soviética o seu principal fornecedor.

"Os marroquinos podem ter muitos recursos, mas não têm coração nem moral", responde Salem. "Se tivéssemos tido em conta apenas o arsenal, eles já teriam ganho, mas não contavam que pudéssemos resistir 46 anos no meio desta vida dura. Marrocos nunca ganhará, por mais que os seus aliados sejam israelitas, americanos ou franceses", murmura o oficial. "Há demasiadas guerras no Médio Oriente e não recebem tanto como dizem", argumenta Baali Hamudi.

 

Um conflito assimétrico

Do lado saharaui, a Argélia, que abriga no seu território dezenas de milhares de pessoas deslocadas e que em agosto passado rompeu relações diplomáticas com Marrocos, entre outras razões, devido à decisão de Mohamed VI de enterrar qualquer possibilidade de realização de um referendo, permanece leal ao povo saharaui.



A jóia da coroa do novo conflito são os drones. Segundo a Polisario, o seu inimigo tem drones não tripulados à sua disposição para vigilância e ataque subsequente. "Forçou-nos a ser extremamente cautelosos", diz Baali Hamudi, que já foi ferido sete vezes na sua longa folha de serviço. Fontes marroquinas cifram em 724 o número total de voos de reconhecimento da Polisario utilizando drones. "Isto não é verdade. Não temos um único drone neste setor", balbucia ele.

No regresso ao acampamento, após uma operação que durou pouco mais de meia hora, os combatentes olham para o céu enquanto apontam para um ponto cintilante entre as estrelas que atribuem a um drone. A caravana ziguezagueia e gira, numa tentativa de despistar o suposto dispositivo que analisa a trajetória em voo de pássaro.


«Estamos prontos para entrar noutra fase da luta se nos for ordenado que o façamos e fazer o que sempre fizemos: atacar o muro, fazer raids e destruir material".

BAALI HAMUDI, COMANDANTE DA FRENTE POLISARIO


Estamos prontos para entrar noutra fase da luta se nos for ordenado fazê-lo e fazer o que sempre fizemos: invadir o muro, fazer raids e destruir equipamento", gaba-se Baali Hamudi. "Espero ver a vitória, mas só Deus sabe", diz o seu camarada Salem da frente mais ativa da guerra, onde se concentra um dos principais batalhões marroquinos. "Conhecendo o inimigo, prefiro que a solução do conflito seja militar, mas sabemos que qualquer solução política será forçada pela do campo de batalha", diz o comandante.

A sua é a estratégia de atingir e golpear o muro marroquino dia após dia. "É a dinâmica diária aqui", insiste ele. "Queremos que eles comprem material e o deitem fora. A nossa é, de momento, uma guerra de guerrilha", acrescenta ele. Passou uma hora desde o ataque e o comandante ainda está à procura de confirmação da extensão do ataque. "As bases sofreram danos materiais, mas precisaremos de alguns dias para conhecer o resultado exato do ataque", adverte este oficial militar da velha guarda que cancelou qualquer ideia de reforma iminente. "Eu era um dos líderes da eestrutura militar que estava zangado com o cessar-fogo de 1991. É provável que isto também acabe no caminho político. Eu cumpri-a na altura e fá-lo-ia agora".

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