Todos
os sábados, o jornal belga 'Le Soir' publica uma coluna de um ou mais membros
da “Carta Académica”. Esta semana, o professor Xavier Dupret
aborda a questão do Sahara Ocidental e alerta: as empresas europeias devem ser
cautelosas após o Tribunal Europeu de Primeira Instância ter anulado dois
acordos de parceria com Marrocos, com o fundamento de que dizem respeito ao Sahara
Ocidental.
Por
Xavier Dupret, Professor de Economia Política no ISFSC (Bruxelas), para Carta
Académica - “LESOIR”
Em
África, os conflitos fronteiriços decorrentes do processo de descolonização não
são excecionais, como demonstra a independência tardia da Eritreia em 1993 ou
do Sul do Sudão em 2011. Numa análise mais aprofundada, é o reconhecimento ex
post das relações de poder militares, o legado de longas guerras civis, que
levou ao nascimento dos dois Estados. Por outro lado, é mais raro que a
delimitação das fronteiras pós-coloniais seja levantada perante as autoridades
judiciais do Velho Continente.
Este
apego ao direito caracteriza a abordagem da Frente Polisario, que desde 1975
luta pela independência do Sahara Ocidental (ou seja, o antigo Sahara
espanhol), anexado por Marrocos durante a Marcha Verde (6 de Novembro de 1975),
que consistiu na deslocação de 350.000 voluntários marroquinos, incluindo
20.000 soldados, para o Sahara Ocidental. A Espanha, que se concentrava na era
pós-Franco, queria deixar o Sahara Ocidental o mais rapidamente possível, um
território sobre o qual Marrocos tinha ambições desde 1956 (data da sua
independência). Enquanto Franco morria, a potência colonial espanhola, sem
consultar a população saharaui, organizou a divisão da colónia entre Marrocos e
a Mauritânia, dois países sabiamente alinhados atrás do Ocidente neste período
da Guerra Fria, enquanto a Polisario mostrava simpatia pelos regimes
progressistas do Terceiro Mundo (principalmente Cuba e Argélia).
Eclodiu
então uma guerra entre os saharauis, por um lado, e Marrocos e a Mauritânia,
por outro. Para a Polisario, as tropas marroquinas e mauritanas representavam forças
de ocupação, tal como o exército espanhol o fora anteriormente. Em agosto de
1979, foi assinado um tratado de paz entre a Frente Polisario e a Mauritânia.
Esta última abandonou a sua reivindicação ao Sahara Ocidental. Marrocos
apressou-se então a ocupar a porção do território saharaui cedido pela
Mauritânia.
Um
conflito atolado
A
guerra entre a Polisario e Marrocos atingiu um ponto de viragem em 1980, quando
o governo marroquino construiu um muro defensivo para proteger o território que
ocupa (ou seja, quase 80% do Sahara Ocidental). Até hoje, a Polisario ocupa a
parte oriental do Sahara Ocidental, que é administrada pela República Árabe
Saharaui Democrática (criada pela Polisario em 1976), membro de pleno direito
da União Africana desde 1982.
Com o
passar do tempo, o conflito ficou encalhado. No terreno, os confrontos entre a
guerrilha saharaui e as tropas marroquinas são ainda hoje um conflito de baixa
intensidade. Este congelamento de posições levou os combatentes saharauis da
independência a defenderem o seu caso perante os tribunais do Velho Continente,
porque a União Europeia e o reino cherifiano são parceiros de longa data. A este respeito,
recordamos a adesão abortada de Rabat à União Europeia em 1987. Em 1996, foi
assinado um acordo de associação com Marrocos. Acontece que os acordos
celebrados neste quadro incluem o território saharaui. Esta legitimação da
anexação marroquina foi ferozmente contestada pela Polisario, que se queixou
perante os tribunais europeus.
A 29
de Setembro deste ano, o Tribunal Geral da União Europeia anulou dois acordos
de parceria (incluindo um sobre barreiras pautais) com Marrocos precisamente
porque diziam respeito ao Sahara Ocidental. A decisão também reconhece a Frente
Polisario como o representante do povo saharaui. Esta última terá, portanto, o
direito de intentar ações judiciais contra as empresas europeias que exploram
os recursos locais sem o seu consentimento. Além disso, os direitos aduaneiros
poderiam ser-lhes reclamados. Nesta fase, seria prudente que as empresas em
questão entrassem em negociações com os saharauis.
As
estatísticas marroquinas não mostram a quota do Sahara Ocidental no comércio
externo de Rabat. É sabido que o fosfato e a pesca são os principais recursos
do Sahara Ocidental. Relativamente aos recursos pesqueiros, as quantidades de
peixe congelado exportadas do Sahara Ocidental para o mundo foram de cerca de
139.000 toneladas correspondendo a um valor de 100 milhões de dólares em 2019.
Fosfato,
uma questão importante
Um
quarto do fosfato exportado por Marrocos provém das jazidas do Sahara
Ocidental. O mercado mundial de fertilizantes fosfatados valia 53 mil milhões
de dólares em 2019, dos quais 13% provinham de Marrocos. O Sahara Ocidental
fornece pois quase 1,7 mil milhões de dólares de fosfatos. Marrocos é o
principal fornecedor da UE (28% das nossas importações), muito à frente da
Rússia (16%). Todos os grupos europeus que importam fosfatos marroquinos estão,
portanto, preocupados com a exploração dos recursos do Sahara Ocidental.
Além
disso, a economia europeia não pode passar sem fosfato. Em 2017, o fosfato foi
incluído na lista de 27 matérias-primas "críticas" pela Comissão.
É
verdade que a Comissão recorreu para o Tribunal de Justiça da União Europeia
contra a decisão do Tribunal Geral da UE de 29 de Setembro. No entanto, não é
recomendável enterrar a cabeça na areia, porque se o Tribunal confirmar a
decisão do Tribunal, os pagamentos em atraso serão inevitavelmente adicionados
ao montante das taxas não pagas.
Esta
possibilidade não é de todo uma forma de especulação intelectual, pois o
acórdão do Tribunal da União Europeia baseia-se num parecer do Tribunal
Internacional de Justiça (TIJ) de 16 de Outubro de 1975 que estabelece que "nãoexiste qualquer ligação de soberania entre o Sahara Ocidental, por um lado, e oReino de Marrocos, por outro". Como resultado, o TIJ ordenou à
comunidade internacional que definisse um procedimento de "autodeterminaçãoque refletisse a livre e genuína expressão da vontade do povo doterritório". Desde então, o caso tem claramente feito poucos
progressos. Este regresso à estaca zero pode muito bem custar caro às nossas
empresas...
As crónicas
de Carta Academica estão acessíveis no sítio do Le Soir.
Sem comentários:
Enviar um comentário