domingo, 30 de abril de 2023

Grande Marrocos: o expansionismo insaciável como ameaça


O Grande Marrocos Carmen Vivas

FRANCISCO CARRIÓN El Independiente - 23/04/23

Surgiu há quase sete décadas, mas continua a marcar a narrativa pública do outro lado do Estreito. O mapa do Grande Marrocos, símbolo dos anseios ultranacionalistas de um partido que lutava então pela independência do país, explica a sede anexionista de um regime que, na opinião dos seus opositores, o utiliza com uma certa elasticidade, ao sabor da conjuntura das relações com os seus vizinhos.

O conceito de Grande Marrocos foi desenvolvido em 1956 por Allal El Fassi, presidente do partido Istiqlal (Independência, em árabe). A cartografia que então defendia estendia o seu domínio até ao rio Senegal, na fronteira com a república com o mesmo nome, e incluía a actual Mauritânia, o Sahara Ocidental - colónia espanhola até 1976 e território a descolonizar segundo a ONU -, o Sahara Oriental - dentro das fronteiras da Argélia - e partes do Mali. "Foi ele o inventor do conceito e do mapa, publicado em 1956 pelo jornal oficial do seu partido", recorda Maati Monjib, historiador marroquino, em entrevista ao El Independiente.


"Fronteiras históricas

Marrocos selou a sua independência precisamente em 1956. E entre a elite política da época, difundiu-se a ideia de que o Grande Marrocos tinha sido "uma realidade política e geográfica até ao século XIX", explica Monjib. "Alguns historiadores e líderes nacionalistas acreditavam que, após a independência, o país deveria regressar às suas fronteiras históricas. O país tinha sido governado pelo Sultão de Fez e de Marraquexe", acrescenta.

"O objectivo era provar que as tribos e as populações que viviam nesses territórios tinham jurado fidelidade ao sultão e que, portanto, de acordo com essa fidelidade, essas regiões pertenciam a Marrocos e deviam, mais cedo ou mais tarde, regressar a Marrocos", afirma a politóloga tunisina Khadija Mohsen-Finan, especialista em Magrebe e membro do conselho de redação da revista Orient XXI, em entrevista a este jornal. "O problema é que, como demonstrou o Tribunal Internacional de Justiça, apenas uma parte destas populações tinha jurado fidelidade ao sultão e, por outro lado, nos anos 60, havia um respeito imposto pela ONU pelas fronteiras herdadas da colonização", sublinha.

Uma realidade internacional que continua a pôr em causa o conceito de nacionalismo marroquino, com a ideia a ser novamente objecto de primeira página no país vizinho. Em Março, o semanário Maroc Hebdo tirou o mapa do armário e trouxe-o para a primeira página, sob o título "O verdadeiro problema está aqui: o Sahara Oriental, pomo de discórdia entre Marrocos e a Argélia". "Território marroquino anexado pelo colonizador à Argélia, então departamento francês, o Sahara Oriental é a razão tácita do conflito entre Rabat e Argel. Uma questão que a junta militar argelina está a tentar enterrar", explica a publicação política com sede em Casablanca, estreitamente ligada ao poder que governa o país.

Mapa do Grande Marrocos.

“O Marrocos optou por aderir ao direito internacional positivo, ou seja, aquele vigente na ONU. A dificuldade deste Grande Marrocos é que Marrocos não pode dizer: 'Às vezes me refiro a direitos históricos e às vezes sou membro da ONU'. “Essa questão do Grande Marrocos determinou, digamos assim, as fronteiras políticas do país, mas turvou as águas porque não sabemos a que Marrocos se refere”, adianta Mohsen-Finan.

 

“Esta questão do Grande Marrocos determinou, digamos assim, as fronteiras políticas do país, mas turvou as águas porque não sabemos a que Marrocos se refere”

KHADIJA MOHSEN-FINAN, POLITÓLOGA ESPECIALISTA NO MAGREB

 

Origem de um vizinhança desconfortável

A recuperação pública da disputa territorial com a Argélia é marcada por tensões com o país vizinho. Em agosto de 2021, Argel declarou as relações diplomáticas com Rabat quebradas, alegando "atos hostis", incluindo espionagem a altos funcionários argelinos por meio doa Pegasus. A razão mais notória é, no entanto, a longa disputa sobre o Sahara Ocidental.

A Argélia é o principal apoiante internacional da Frente Polisário desde 1975 e da sua luta pela descolonização de um território sob ocupação marroquina. Nos últimos três anos, os laços se deterioraram significativamente, com o encerramento do espaço aéreo argelino a aviões marroquinos, o cancelamento do fornecimento de gás e disputas públicas em curso.

O dossiê que agora volta a enfrentar Marrocos e Argélia parecia resolvido. "Alguns continuam a reivindicá-lo, mas na década de 1970, Hassan II teve várias reuniões com o então presidente da Argélia e reconheceu as fronteiras atuais", lembra Monjib. “Foi uma decisão muito impopular em Marrocos, não apenas de movimentos como o partido Istiqlal, mas também no próprio exército. Há historiadores que citam esse acordo como o motivo das duas tentativas de golpe em 1971 e 1972 contra Hassan II”.

O mapa, porém, deixa intencionalmente de fora boa parte do mapa [original]: Mauritânia e partes do Mali. “Por que não acrescentam a Mauritânia agora? Quando há alguém do partido Istiqlal que fala da Mauritânia, é denunciado pela imprensa pró-regime”, diz Ali Lmrabet, jornalista marroquino exilado em Espanha. “É uma forma de mexer com a Argélia e aí entramos em território desconhecido. O Sahara Oriental nem sequer é um conflito listado na ONU. Faz parte de uma estratégia que inclui também a tentativa marroquina de apoiar a Cabília [região histórica do norte da Argélia habitada principalmente por berberes]. São pequenas provocações marroquinas para tentar equilibrar a questão do Sahara Ocidental”. Rabat reconheceu o estado da Mauritânia em 1969, quase nove anos após declarar sua independência.

Numa entrevista recente, o presidente argelino Abdelmadjid Tebboune resumia desta forma as ambições do Marrocos: "O que eles veem, reivindicam como seu e o que ouviram, eles dizem que querem metade...". As relações bilaterais, reconheceu, estão "num ponto sem volta" e acabaram por abalar Espanha e Tunísia por diferentes razões. No caso da Tunísia, a dependência do gás argelino e a delicada situação política e económica - agora agravada pelos efeitos da seca - aproximaram-na do vizinho. A visita do líder da Frente Polisário, Brahim Ghali, no ano passado, pôs fim às relações marroquinas-tunisianas. Do lado espanhol, a histórica mudança de posição do governo na disputa pelo Saara Ocidental em apoio às teses da autonomia marroquina provocou uma ruptura com a Argélia.

 

Capa do semanário Maroc Hebdo

Encorajados pelo "novo roteiro" com a Espanha

Na opinião de Lmrabet, as decisões de Madrid foram vistas como concessões por Rabat e acabaram por fortalecer o poder político e as teorias expansionistas. Há uma semana e meia, o presidente do Senado marroquino, Naama Miyara, esperava "recuperar as duas cidades ocupadas de Ceuta e Melilha" através de negociações com Espanha. Uma declaração da quarta autoridade do Estado marroquino, de origem saharaui, que foi desmentida pelo seu próprio partido, o nacionalista Istiqlal, sob ordens do majzen para evitar polémicas com Espanha, pelo menos para já. Ambos os países prometeram evitar atos unilaterais em relação à integridade territorial, compromisso que, no entanto, não tem impedido declarações específicas do outro lado do Estreito.

No mapa do Grande Marrocos, as Ilhas Canárias foram acrescentadas – “de forma folclórica”, segundo alguns – como reivindicação territorial. “Ceuta e Melilla têm um status diferente. É um erro confundir tudo, embora haja tentativas de fazê-lo”, denuncia Fijan. Em relação à última controvérsia, o Observatório de Ceuta e Melilla insistiu que as cidades autônomas de Ceuta e Melilla são espanholas há mais de 4 séculos. "Você não pode 'recuperar' algo que nunca lhe pertenceu", acrescentam.

Não poucos observadores da realidade do país do norte da África reconhecem que essa política externa cada vez mais hiperativa tem entre os seus detonadores o apoio dado pelos Estados Unidos e Israel após o reconhecimento e normalização das relações com Tel Aviv. A recente divulgação de documentos do Departamento de Defesa revelou que Marrocos receberá um avançado sistema israelita de defesa antimísseis terra-ar, o Barak MX, em meados deste ano, enquanto não foi decidido se o fornecerá à Ucrânia, um país em guerra com a Rússia. Outro dos futuros clientes, a Colômbia, não receberá o sistema projetado para destruir ameaças aéreas - incluindo drones, helicópteros e aviões - até 2026.

Para alguns dos especialistas consultados por este jornal, as declarações que fazem levantar poeira no Grande Marrocos fazem parte de uma estratégia lançada pelos meios de comunicação pró-governamentais para esconder as dificuldades que o país atravessa, a verdadeira bomba-relógio para a estabilidade interna e dos países vizinhos. À ausência cada vez mais frequente de Mohamed VI - que passou cerca de 200 dias fora do país no ano passado, segundo as estimativas de um antigo alto funcionário marroquino ao The Economist - junta-se a crise económica, com o aumento dos preços dos alimentos em mais de 18%. "O patriotismo é uma cortina de fumo", concluem.

 

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