Capacetes Azuis da MINURSO no Sahara Ocidental Foto: ONU/Martine Perret |
Por Jesús Cabaleiro Larrán |Periodistas en español 16-10-2024
Gardel já o cantava num tango, ″todo, todo se olvida” (tudo, tudo se esquece). A condenação internacional unânime dos ataques de Israel contra o Secretário-Geral das Nações Unidas, o português António Guterres, e a presença dos capacetes azuis no Líbano, remete-nos para outro cenário e para as mesmas acções, mas com o silêncio cúmplice de muitos que agora gritam.
Temos de recuar alguns anos, quando Marrocos expulsou 83 membros da Missão das Nações Unidas para o Referendo no Sahara Ocidental (MINURSO) em março de 2016, algo que, até agora, não tinha precedentes noutras missões de paz. A razão para tal foi a rejeição do então Secretário-Geral da ONU, o sul-coreano Ban Ki Moon.
Além disso, o governo marroquino organizou uma manifestação em Rabat contra o então chefe da ONU, que cometeu a grave ofensa, para as autoridades marroquinas, de utilizar o termo “ocupação” no que se passou no Sahara [Ocidental]. O dirigente da ONU e o seu enviado pessoal da altura, Christopher Ross, foram então alvo de insultos e comentários depreciativos e não foram autorizados a visitar El Aaiún.
A diferença é o silêncio de quem agora critica Israel, o Sahara não interessava então, nem hoje continua a interessar tantos analistas e especialistas em Direito Internacional, apesar de ano após ano ser um território sem acesso aos observadores internacionais dos direitos humanos e a jornalistas independentes.
A MINURSO, a força de paz que chegou em 1991 para organizar um referendo e que actualmente se limita a supervisionar o suposto cessar-fogo entre as partes, e que ano após ano vê renovada a sua missão, como agora ocorrerá novamente neste mês de Outubro no Conselho de Segurança.
Seria necessário ler as diferentes resoluções da ONU ou o recente e muito esclarecedor acórdão do Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) para lembrar que este é um território pendente de descolonização e que o Sahara hoje e de acordo com o Direito Internacional, a ONU ou a UNESCO, não é Marrocos, por mais mentiras que o ‘Majzen’ espalhe através do seu bem pago exército digital de propagadores.
A verdade é que a República Árabe Saharaui Democrática (RASD), contra todas as probabilidades, continua a existir e é parte integrante da União Africana e participa na grande maioria das suas reuniões internacionais, apesar dos ataques das autoridades marroquinas, como foi o caso da TICAD no Japão.
Marrocos desde 2007 optou por uma opção fechada, autonomia ou autonomia, algo que ‘ou pega ou larga’ sem mais demoras, e querendo aproveitar o apoio de Trump e de Israel para além do apoio formal das nações europeias (incluindo, infelizmente, Espanha) com o objectivo de pressionarem a ONU por esta solução imposta, e de fazerem os saharauis verem "o inevitável" da sua situação depois de quase cinco décadas e as graves condições "de sofrimento" na hamada argelina dos mais de cento e setenta mil refugiados saharauis.
O enviado pessoal do SG da ONU para o SO, Staffan da Mistura visitou Tinduf recentemente e reuniu-se com os dirigentes da RASD.
Como vai longe o tempo em que o PSOE pedia a extensão do mandato da MINURSO em matéria de direitos humanos e em que Pedro Sánchez se reunia com uma delegação saharaui no 39º Congresso Socialista ou em que a ministra Margarita Robles descrevia a chegada maciça de imigrantes marroquinos a Ceuta como “chantagem”.
Sob o álibi de que 112 países apoiam a autonomia e o apoio de Israel para tudo, incluindo, sobretudo, meios militares (recordemos que um navio carregado de armas para o exército israelita atracou discretamente em Tânger), Marrocos repete o seu mantra autonomista. O apoio israelita não é novo, já tinham concebido o muro de separação do Sahara [com mais de 2.700 km, que vai do interior do território de Marrocos à Mauritânia, dividindo em dois o SO].
O referendo sobre a autodeterminação soa hoje a utopia, uma solução que Marrocos admitiu no seu tempo através de Hassan II, mas que foi descartada pelo seu filho Mohamed VI quando se apercebeu que ia perdê-lo, apesar de o Plano Baker II prever uma autonomia inicial de cinco anos e depois o referendo, e no qual os colonos marroquinos poderiam votar.
Vale a pena recordar os que ocuparam o cargo de enviado pessoal do SG para o Sahara Ocidental, James Baker (1997-2004), Peter Van Walsun (2005-2008), Christopher Ross (2009-2017) e Horst Kohler (2017-2019). Após dois anos sem um enviado especial, o diplomata italo-sueco Staffan da Mistura assumiu o desafio em setembro de 2021.
Baker deu o seu nome às duas tentativas falhadas de chegar a um acordo e ao referendo, o Plano Um (2000) e o Plano Dois (2003, aprovado pelo Conselho de Segurança da ONU).
Mas o Makhzen não quer nem o voto livre nem a democracia e, por isso, nem sequer permite esta proposta porque, como eles próprios admitem, não confiam nos seus colonos que estão no Sahara há mais de quarenta anos. É um risco poder escolher livremente ser cidadão e não súbdito de um rei autocrático. Quem quer viver como súbdito quando pode viver num país livre?
O recenseamento da ONU para o referendo está depositado em Genebra, enquanto mais de 170.000 refugiados continuam à espera nos campos de Tindouf, há quase cinco décadas.
Não esqueçamos que agora, tal como no caso da Palestina, é ocupação por ocupação, e as resoluções da ONU continuam a ser letra morta, para que o Sahara possa ter a duvidosa honra de ser o único território em África sem descolonização e sem a possibilidade de os seus habitantes poderem escolher o seu futuro.
Entre os territórios a descolonizar, segundo as Nações Unidas, contam-se também Gibraltar, reclamado por Espanha, e as Ilhas Malvinas, reclamadas pela Argentina. A diplomacia britânica recorda sempre, a este respeito, que não pode negociar sem a vontade dos habitantes, e recorda mesmo que em Gibraltar a população foi consultada sobre o assunto, questão que é evidentemente ignorada no Sahara. Talvez por isso o Reino Unido não apoie o projeto de autonomia de Marrocos.
Quanto ao futuro do território disputado do Sahara, basta referir alguns factos óbvios. Em primeiro lugar, continua, não o esqueçamos, dividido desde 1975. Marrocos continua a não controlar cem por cento do antigo Sahara espanhol (que foi dividido com a Mauritânia), por muito que tenha conquistado, contrariamente ao próprio acordo de 1991, a pequena faixa de Guerguerat até à Mauritânia, que deu início às actuais hostilidades, e muito menos conquistou o apreço da população saharaui original, à excepção dos clãs do poder.
A repressão interna prossegue nas cidades, com intensidade crescente, tal como a guerra de assédio e atrito lançada em novembro de 2020 pela Polisario contra o muro marroquino e a sua réplica, com mais de uma centena de mortos (a maioria civis) por drones explosivos, na sua maioria de origem israelita.
No fim do longo túnel, poderá acontecer algo semelhante à situação do Kosovo, países reconhecendo a soberania marroquina, com consulados, na sua maioria fantasmas, incluídos no território, enquanto outros se agarram à legalidade internacional e nunca poderão aceitar que a conquista feita a sangue e fogo, que não entrou pacificamente trazendo flores e mel, como me disse um saharaui, mas sim com balas, tanques, canhões e bombardeamentos.
O que é certo e verdadeiro é que o Sahara continua a ser juridicamente “não autónomo” e a aguardar a descolonização pela ONU, e os que se encontram em Tindouf, apesar da propaganda dos Makhzen, são refugiados. Enquanto houver um saharauí, o desejo de exprimir livremente a sua vontade sobre o futuro da sua terra continuará, sem dúvida, a existir.
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