quinta-feira, 2 de janeiro de 2014

Guelta Zemmour: memórias da guerra


AS-6 Gainful ou SAM-6 (Imagem de arquivo)

A 2 de janeiro de 1981 recordo o dia que partimos rumo à Jamahiria de Kadhafi. Para o exército saharaui eram tempos duros. A moral dos combatentes estava quase de rastos devido aos estragos causados pela intervenção da aviação marroquina nas batalhas. Os caças marroquinos conseguiam enganar os mísseis AS-7 e AS-9, guiados por raios infravermelhos.

Por isso, a Frente Polisario decidiu introduzir uma defesa antiaérea más eficaz: o Quadrante, que os ocidentais conhecem pelo nome de AS-6 Gainful ou SAM-6. Alcançam até 25 km na horizontal e 10 km na vertical.

Os russos, seus inventores, chamam-no de "Quadrante", pela sua ordem de batalha. Quatro rampas que se dispõem nos quatro pontos cardeais em forma de quadrado. No meio está a rampa "guia" que dirige o míssil até ao seu alvo graças a um radar fixo instalado na rampa.


Um grupo já estava há dois meses na Líbia recebendo instrução desta arma. Os líbios disseram que fazia falta um “esquadrão técnico” para verificar o bom estado do míssil antes de ir para a batalha. A Polisario pensou que, para um tal arma tão sofisticada, eram necessárias pessoas com mais alto grau de instrução. Então, reuniu um grupo de 20 pessoas que tinham todos o bacharelato. Alguns deles nem sequer eram militares. Foi assim que nos encontrámos como professores com Salek Tayeb (hoje no Crescente Vermelho, em Rabouni – acampamentos de refugiados) e enfermeiros como o "índio", que hoje ocupa um cargo no Ministério da Saúde.



Embarcámos a bordo de reboques de transporte de traziam ajuda humanitária de Trípoli para os refugiados. Logo que chegámos, começou a aprendizagem. Para testar o míssil, os aparelhos estão numa cabana de madeira instalada num camião russo marca Zyl. Mas demo-nos conta de que os libios se tinham esquecido de nos dizer como funcionavam essas engenhocas. Tiveram que mandar outro grupo para os ensinar. Depois de cinco meses, estávamos de volta aos campos. Em torno de nós havia muito segredo para conseguir o efeito de surpresa sobre o inimigo. Estivemos vários meses em Rabouni esperando que a Polisario decidisse atacar.

Por fim, nos primeiros dias de outubro de 1981 iniciámos a deslocação para o local do próximo ataque. O objetivo era Guelta Zemmour onde estava sedeado o 2° Regimento das FAR marroquinas, com mais de 2600 homens armados até aos dentes. O material é tão pesado que levámos dez dias a percorrer uma distância, segundo o Google, de 554 km. Acompanhava-nos o então ministro da Defesa, Brahim Ghali, em pessoa. A moral da tropa dependia, em grande medida, de nós. O ataque estava previsto para 12 de outubro para assinalar o Dia da Unidade Saharaui, data em que os saharauis se encontraram em Ain Ben Tili em 1975 para proclamar que se uniam sob a bandeira da Frente Polisario para lutar contra os novos invasores. No dia 11 de outubro 1981, pela noite, estávamo-nos a preparar quando se produziu o imprevisto. Salhi, um tipo musculoso que vinha do Ministério da Saúde quebra o único aparelho que tínhamos para encher o míssil de ar comprimido. Ar indispensável para, uma vez o míssil lançado, fazer funcionar um pequeno gerador de corrente de 12 volts que alimenta o sistema automático do míssil e lhe permite seguir as instruções do radar da rampa de lançamento.

De repente, toda a gente parou por causa desta avaria. Bachir Mustafa Sayed (1) estava presente e ficou muito furioso. Brahim Ghali mostrou uma paciência que mereceu o nosso respeito. No dia seguinte, 12 de outubro, resolve-se o problema. Durante a noite dirigimo-nos para Guelta que estava a uns 30 km dali. De madrugada, os marroquinos ouviram o ruído dos tanques que se aproximavam. Avisaram a Rabat. O avião de reconhecimento marroquino, C-130, já estava ali dando voltas por cima da guarnição à espera de poder ver algo, pois fazia ainda muito escuro. A sua missão era localizar o inimigo e guiar os aviões de combate. O nosso primeiro míssil abateu-o. Diz-se que não ficou nem rasto desse avião, pois como é muito lento o míssil atingiu-o em cheio. Em Rabat, é o pânico total. De repente já não têm nenhuma notícia do C-130, apesar de voar a uma altitude que as antigas armas saharauis não alcançavam.

Mísseis Sam-9


Assim a batalha começou em condições ótimas para os combatentes saharauis que já tinham sido avisados de que não tinham que se preocupar com o perigo que vinha de cima. Pressentiam que uma nova arma entrava em cena. Logo depois de terem visto a  «keychafa » (o C-130) ser derrubado, um sentimento indescritível de invulnerabilidade se apoderou deles e caíram sem piedade sobre o inimigo.

Quatro horas depois, a situação na guarnição obrigou o Estado-Maior marroquino a mandar dois aviões, um F-5 americano e um Mirage F-1 francês para «ver o que se passava». Pouco depois de levantar de El Aaiun acende-se o alarme de radar num dos aviões. O piloto avisa o seu colega. Este diz-lhe que «é o radar de Smara» (2). Na realidade era o nosso, cujas ondas chegam até 350 km. Logo que chegam a Guelta, o nosso segundo míssil procura o F-5 e derruba-o. Cai a uns 25 km dali. Um dos nossas sentinelas avisa que viu uma fumarada nessa direção. Um carro sai em busca do piloto e trá-lo vivo e coxeando. Entretanto, a batalha prossegue em Guelta. Ao anoitecer, praticamente foi aniquilada. Mais de 230 prisioneiros foram capturados.

(1)    – Irmão de El Ouali Mustapha Sayed, fundador e primeiro líder da Frente Polisario, morto a 9 de junho de 1976 durante um ataque à capital da Mauritânia

(2)    Cidade do norte do Sahara Ocidental ocupada por Marrocos

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