segunda-feira, 22 de setembro de 2014

NARCOTRÁFICO – viagem pela corrupção nas Forças Armadas e pelo Sahara Ocidental


A grande corrupção do 'mandante' de Marrocos



  •      Um ex-oficial marroquino narra nas suas memórias os negócios obscuros de Bennani [general Abdelaziz Bennani, ocupou, entre 27 de julho de 2004 e 13 de junho de 2014, o mais alto cargo das FAR - Inspetor Geral das Forças Armadas marroquinas e comandante da Zona Sul (Sahara Ocidental)]
 
  •     Terá aberto as portas aos cartéis colombianos para que introduzissem cocaína em Espanha




A patrulha do subtenente Abdelilá Issou, que partia do cabo Malabata, entre Tânger e Ceuta, começava todos os dias a sua ronda às 21:02 horas e acabava às 02.00 da madrugada. «Ao manter o mesmo horário, os traficantes sabiam que até às nove e a partir das duas não corriam risco algum de ser importunados na sua atividade», escreve Issou, de 49 anos, nascido em Tetouan.

Ante esta aparente cumplicidade entre os que fixaram o horário das patrulhas de vigilância e os narcotraficantes que transportavam o haxixe das montanhas do Rif até à costa para o embarcar em lanchas rápidas em direção a Espanha, Abdelilá Issou transmitiu as suas dúvidas ao capitão Bana que comandava a sua companhia.

Seu chefe ordenou-lhe "a não voltar a colocar o assunto nem a ele nem a qualquer outra pessoa, porque os horários e a programação são decididos pelo Estado-Maior da Zona Sul [Sahara Ocidental, 1 190 quilómetros de distância] de acordo com as instruções e diretivas emitidas pelo general Abdelaziz Bennani".

Este general, que está prestes a completar 79 anos, é, desde há 31 anos comandante-em-chefe da região, onde se encontra deslocado 75% do exército marroquino. É o mais poderoso dos militares de Marrocos, porque a esse cargo acumulou há mais de uma década atrás o de Inspetor-Geral das Forças Armadas.




Exílio em Espanha

Dele e de outros quantos oficiais mais fala abundantemente no seu livro recém-publicado “Memórias de um Soldado Marroquino” ("Memoires d'un soldat marocain" Edilivre Editorial, Paris). O autor, Abdelila Issou, é um oficial do exército formado na Real Academia Militar de Meknès, que acabou trabalhando para o CNI - serviço secreto espanhol - antes de se exilar em Espanha no ano de 2000.

As memórias de Issou são uma viagem pela corrupção nas Forças Armadas e no Sahara Ocidental, em tempos de guerra e paz, após o cessar-fogo em 1991 entre Marrocos e a Frente Polisario, que reivindica a independência da que foi colónia espanhola até 1975.

O livro confirma outras memórias, escritas por um outro oficial, Tobji Mahjoub, 70 anos, e publicadas em Paris em 2006, sob o título “Os oficiais de Sua Majestade - as manobras dos generais marroquinos (1956-2006). O general Bennani "dedica as suas energias a acumular uma grande fortuna", escreveu então Tobji, graças aos contratos de compra de carne para o Exército, com a Argentina e a Austrália, e o recebimento, em conta especial, das coimas aplicadas às embarcações pesqueiras espanholas que operam em águas do Sahara.
Issou vai mais longe e acusa o general Bennani de ter firmado nos anos 90 “um acordo com os cartéis colombianos que lhes permitia abrir uma nova rota e uma porta de entrada para a Europa" à cocaína através dos narcotraficantes marroquinos já então introduziam o haxixe em Espanha. Apesar de ter reduzido a área de cultivo, Marrocos continua a ser o principal produtor mundial de haxixe.

Estas denúncias não são produto da vingança de dois oficiais. Num telegrama enviado para Washington em 2008 e revelado pelo Wikileaks, o então embaixador dos Estados Unidos em Marrocos, Thomas Riley, assinalava já que o general Abdelaziz Benanni "detém uma boa parte das pescas no Sahara Ocidental." "Relatos credíveis indicam que (...) usa a sua posição como comandante do setor para sacar dinheiro dos contratos militares e beneficiar de decisões empresariais", acrescenta o telegrama. Thomas Riley descreve também a luxuosa mansão de Bennani.

Thomas Riley, ex-embaixador
dos EUA em Marrocos
O enriquecimento de uns poucos não impedia que o exército fosse pobre. A escassez de material era tal que "mais parecia sabotagem", de acordo com Issou. Faltava-lhes, por exemplo, "óculos de visão noturna essenciais para as sentinelas de noite". Por isso os combatentes da Polisario "se infiltravam no dispositivo (...) marroquino sem disparar um só um tiro" utilizando apenas as suas armas brancas.

"As terríveis condições de vida, a severidade do clima, a falta de água e de comida, o stress depois dos combates e o abuso dos comandos; todos esses fatores tiveram consequências nefastas sobre a moral das tropas e, muitas vezes, terminaram em tragédia", segundo Issou. Relata a ocorrência, por vezes, de suicídios de soldados após dispararem primeiro à queima-roupa contra os seus oficiais.

'Um duro golpe para o regime'

No início de 1998 Issou estava destacado na base militar de Benguerir, perto de Marraquexe, quando decidiu oferecer os seus serviços ao CNI [serviços secretos espanhóis] através de um dos seus agentes que, oficialmente, era adido de imprensa do Consulado da Espanha em Tetouan. Quis fazê-lo, segundo diz, "para assestar um golpe ao regime" marroquino, mas também para obter um rendimento extra, tentado, provavelmente, em construir um futuro ao norte do Estreito. O CNI deu-lhe formação em criptografia, técnicas de monitorização, e assim por diante.

Abdelila Issou montou uma rede de cinco militares que informavam a espionagem espanhola não sobre o armamento do Exército marroquino, mas antes sobre as fraquezas dos seus generais corruptos e a vida privada daquele que era então o príncipe herdeiro, atual rei Mohamed VI, e de sua mãe, Latifa Hammou. Após a morte do rei Hassan II, a viúva casou com Mohamed Mediouri, que tinha sido o chefe dos guarda-costas da família real.

O espião foi finalmente descoberto pela DST [serviços de contra-espionagem marroquinos] em 2000, que não o conseguiu prender porque ele conseguiu fugir para Ceuta. Os seus parceiros espanhóis falharam com ele. Nem mesmo o ajudaram a passar da cidade autónoma para a península [Ibérica]. Teve que o fazer por conta própria, com documentos falsos, para atravessar o Estreito. Ainda não estava totalmente seguro. Seu último susto deu-se a 12 de agosto de 2010, quando alguns compatriotas tentaram sequestrá-lo à porta de sua casa em Madrid.

Disfarçados de funcionários

Nove anos depois da fuga de Abdelilá Issou de Marrocos, o CNI viu-se obrigado a fechar a sua antena de Tetouan, que era então dirigida por um coronel secundado por um comandante, ambos disfarçados de funcionários do consulado. Tetouan era não só um lugar de recrutamento de colaboradores da inteligência espanhola mas um bom observatório do que sucedia em redor de Ceuta e dos movimentos do radicalismo islâmico, muito arreigado nessa zona de Marrocos.

Mustapha Adib, ex-capitão exilado em França
Há um terceiro militar marroquino, o ex-capitão Mustapha Adib, que não escreveu ainda um livro denunciando a corrupção na Força Aérea, a que pertenceu. Não obstante não ter plasmado as suas acusações por escrito, o seu compromisso em ajustar contas perdura. Em meados de junho, o general Abdelaziz Bennani foi internado durante alguns dias no hospital militar de Val-de-Grâce, em Paris, e o capitão Adib, que vive no exílio, precisamente em França, apareceu na unidade hospitalar e conseguiu, a 18 de junho, chegar à porta do seu quarto.

Levava consigo um ramo de orquídeas — flores mortuárias — e uma carta para aquele que foi seu chefe repleta de insultos como anão, rato, cobarde e criminoso. Não conseguiu ver o paciente. Teve que se conformar em dá-las a alguém do seu staff.





O homem que acusa
Oficial
Abdelilá Issou foi oficial do Exército formado na Real Academia Militar de Meknès. Trabalhou para o CNI [serviços secretos espanhóis] e exilou-se em Espanha em 2000.
Memórias

Issou denuncia a corrupção da cúpula militar marroquina no  seu livro Mémoires d'un soldat marocain La Face cachée du royaume enchanté («Memórias de um soldado marroquino. A cara oculta do reino encantado»), da Editorial Edilivre, Paris.

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