sexta-feira, 19 de setembro de 2014

O mar de El Güera, a parte mais desconhecida da história do conflito saharaui




Quase sempre, cada vez que pensamos no povo saharaui, vêm-nos à memoria o deserto, seja a dureza da hamada argelina, onde se situam os acampamentos de refugiados há mais de 38 anos, ou a beleza das terras libertadas, onde os pastores nómadas, os filhos das nuvens, se deslocavam de forma incansável em busca da chuva e pastos verdes para alimentar as suas cabras e dromedários. Poucas vezes pensamos no mar e nesses 1200 km de costa que lhe pertencem por direito e que lhes foram brutalmente arrebatados em 1975.

E mesmo quando o fazemos, esquecemo-nos normalmente daquela que é a sua parte mais meridional. Apesar do que é costume dizer-se, a antiga colónia espanhola do Sahara Ocidental está atualmente dividida em três partes e não em duas: a Oeste, os territórios ocupados por Marrocos; a Este, os territórios libertados, controlados pela Frente Polisario, e a Sul, para lá do muro e das minas antipessoal, na metade atlântica da península do Cabo Branco, sob administração da Mauritânia, está El Güera.



A península do Cabo Branco é um pequeníssimo apêndice em comparação com o resto do corpo continental africano. Quase poderia passar despercebida não fosse o porto de Nouadhibou (Mauritânia) de onde são exportadas para a Europa todos os anos milhares e milhares de toneladas de minério de ferro e peixe, entre outros recursos naturais. O ferro provem das minas da desértica província mauritana de Zouerat, no nordeste do país. As minas estão diretamente ligadas ao porto pelo maior comboio do mundo, uma longa serpente de vagões de mercadoria com mais de 3km de comprido, puxada por três locomotivas. A via férre foi construída em 1963. O minério é descarregado diretamente do comboio para os cargueiros através de umas gigantescas cintas transportadoras pertencentes à SNIM, a Sociedade Nacional de Indústria e Mineria, que tem o monopólio da exportação de ferro na região.

O pescado provem das ricas águas dessa região do Atlântico, uma das principais fontes de abastecimento do mercado europeu. Nouadhibou, declarado porto franco, é um ponto chave para a economia mauritana e para o governo de Mohamed Ould Abdelaziz, que agora o quer converter em ponto obrigatório de passagem para controlar todas as exportações de pescado do país. É realmente um negócio rendoso que atrai cada vez mais capital estrangeiro, incluindo empresas espanholas, muitos delas canárias. Como resultado, e apesar das infraestruturas existentes serem maioritariamente industriais, começam a aflorar pouco a pouco também pequenos resorts turísticos, hotéis e restaurantes por toda a cidade e nas belas e tranquilas praias cercanas, em contraste com as ruas da cidade, pejadas de areia e sacos de plástico e lixo por todo o lado, onde os animais vagam entre os carros e o movimentado mercado tradicional.

Casa do gobernador espanhol de La Güera, 1935.




No entanto, do outro lado da península, a uns escassos 10 quilómetros a oeste, estende-se um território praticamente virgem, de praias mais selvagens e desertas, sem estradas nem construções, a não ser um ou outro pequeno abrigo de pescadores e onde se podem passar dias inteiros sem ver ninguém. É o mar Sahel, como lhe chamam os saharauis residentes em Nouadhibou, ou o El Güera, como o denominaram os espanhóis.

El Güera ou La Güera é, na verdade, um antigo assentamento colonial espanhol na margem do Atlântico que está há quase quatro décadas abandonado. Hoje em dia só restam os destroços do que foi outrora uma povoação costeira onde saharauis e espanhóis conviviam juntos em relativa harmonia, e que foi palco de uma carnificina quando Espanha cedeu ilegalmente a administração da sua colónia a Marrocos e à Mauritânia no segredo dos acordos Tripartidos de Madrid de 1975.

O exército mauritano esteve em guerra com o exército de libertação saharaui até 1979, período durante o qual bombardeou e saqueou a povoação de El Güera, forçando a população indígena a fugir. Ao contrário dos seus compatriotas do norte, muitas destas famílias saharauis não cruzaram o deserto até à Argélia, antes instalaram-se em Nouadhibou, passando a fazer parte da numerosa comunidade saharaui que já existia na cidade. Hoje em dia, podem ainda observar-se em Nouadhibou e nos seus arredores construções com telhados de uralita e outros materiais de origem espanhola que foram arrancados de El Güera.


Caminho de ferro Zouerate-Porto de Nouhadibou

 Apesar da Mauritânia ter firmado a paz com a Frente Polisario e ter reconhecido a autoproclamada República Árabe Saharaui Democrática em 1979, o pedaço de costa saharaui que tinha ficado sob a sua administração não passou, como seria de esperar, para mãos saharauis, mas ficou sob o controlo de Marrocos. Tudo menos as terras da península do Cabo Branco, que continuam a ser “administradas” pelo governo mauritano, até que se encontre uma solução para o conflito, o que impede que o povo saharaui possa beneficiar dos seus recursos. Viajando num todo-o-terreno desde Nouadhibou não se vislumbra porém qualquer tipo de fronteira visível e os pescadores mauritanos vão de forma regular fainar nas suas costas, largando as suas redes sem restrições aparentes.

A povoação fantasma de El Güera encontra-se atualmente sob controlo policial e é necessário uma autorização especial para a visitar. Além disso, a guarda costeira e a polícia mauritanas vigiam a zona para evitar possíveis casos de contrabando de droga e regular a passagem de estrangeiros, sobretudo na parte norte, onde ainda existe o perigo de minas nas proximidades do extremo meridional do muro de separação marroquino. A situação nesta “terra de ninguém” está longe de ser segura. E, ainda assim, é talvez o único lugar onde os saharauis podem aceder de forma livre à sua própria costa, e desfrutar da pesca ao robalo, e apanhar percebes gigantes e acampar com as suas “jaimas” (tendas tradicionais) à beira do mar.

Hoje, quase quatro décadas após a Espanha os ter abandonado à sua sorte, a maioria da população Saharaui ainda continua a sobreviver em campos de refugiados, desenvolvendo a arte da paciência até limites inimagináveis, sempre com a desoladora sensação de estarem de favor, mesmo quando visitam a sua terra natal. Até quando?

Fonte: GuinGuinBali // Por Violeta Ruano / @violetaruano

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