quinta-feira, 22 de janeiro de 2015

Mohamed Fadel Leili, advogado saharaui: “Continuo com a minha promessa de defender os saharauis que sofrem torturas”


Mohamed Fadel Leili


Por: Blanca Enfedaque

Ninguém como ele pode entender melhor os seus clientes: os presos políticos saharauis. Este advogado, que foi sequestrado durante 16 anos, desenvolve a sua atividade profissional num Estado ocupado, o Sahara Ocidental. Mohamed Fadel Leili licenciou-se em Direito após ter sofrido essa desaparição forçada em prisões secretas junto com toda a sua família. Após a sua libertação retomou a sua vida no mesmo ponto onde lha roubaram e completou os seus estudos. Atualmente, terminou o seu doutoramento em Direito Internacional, especializado em conflitos de fronteiras em África ante o Tribunal Internacional de Haya.

Hoje teve um dia de trabalho extenuante mas, apesar disso, a sua camisa não tem nem uma ruga arruga e conserva um sorriso sábio no rosto. Acaba de voltar ao seu escritório, junto à avenida La Meca de El Aaiun (Sahara Ocidental) depois de ter estado na sede de uma associação, onde deu uma sessão de formação em direitos humanos a ativistas saharauis, explicando aos seus compatriotas os contornos da justiça e da legalidade internacional para defender a sua causa: a independência do povo saharaui.

Mas talvez o período mais intenso do dia tenha sido o julgamento que teve pela manhã. O seu cliente, Abdeslam Loumadi, era acusado de lançar um cocktail molotov contra um carro da polícia marroquina. Um delito que no código penal da potência ocupante, Marrocos, (artigos 580 e 585), pode ir de cinco anos de prisão até à pena de morte.

O advogado saharaui está satisfeito: conseguiu uma condenação de 10 meses. Qualquer outro advogado estaria exultante, eufórico. Mas Fadel Leili não. Sabe que o seu cliente era inocente, mas é um preso político mais. Sabe que as acusações desproporcionadas são uma ferramenta das forças de segurança marroquinas, em conivência com alguns juízes, para angustiar a população autóctone. Para os desgastar, para instá-los a que abandonem o ativismo.



É por isso que, em qualquer país democrático, qualquer sistema jurídico se ateria a julgar os factos e como resultado haveria uma absolvição. Nem os três polícias que a acusação levou como testemunhas, e que asseguraram não reconhecer o acusado porque o atacante levava um turbante que lhe tapava a cara, nem a confissão sob tortura que a polícia o obrigou a assinar, serviram para ganhar este julgamento.
"Às vezes os antecedentes de um réu nem sequer são considerados como agravantes, porque os tribunais já sabem que as acusações não são verdadeiras", comenta Mohamed Fadel Leili.
Seu escritório está localizado numa humilde comunidade de um bairro pobre, é simples e austero. Chamam a atenção as grades de ferro na entrada da porta. Quando lhe pergunto se recebeu ameaças, Fadel Leili diz que, nos últimos anos, não. "No entanto, a minha secretária vive no bairro de Matala, um lugar onde é comum as forças de segurança marroquinas ou colonos derrubarem as  portas a qualquer pretexto." Ela passa muitas horas no escritório sózinha e tem medo.
Mohamed Bachir Leili forma, junto com Bachir Rguibi Lahbib, Mohamed Boukhaled e Bazaid Lehmad, a equipa jurídica que defende os ativistas saharauis no Sahara ocupado. A sua tábua de salvação nos tribunais. São poucos os saharauis que conseguem obter uma licenciatura em Direito, pois Marrocos impede o desenvolvimento do ensino superior no Sahara Ocidental e quem quer estudar tem que viajar para o território marroquino. É o que fez Fadel Leili em janeiro de 1976, mas com um interregno: os 16 anos passados em que esteve «desaparecido». Mohamed Fadel Leili, antes de ser um advogado, foi sequestrado e detido em várias prisões secretas durante 16 anos, a mesma idade que tinha quando a polícia marroquina o prendeu em Kenitra, a 40 km de Rabat.
Com 32 anos, e depois de ter sofrido torturas indescritíveis, um tratamento desumano e ter visto morrer muitos dos seus amigos e familiares na prisão, Mohamed Fadel Leili tomou a decisão de retomar a sua vida no mesmo ponto onde a deixou: aceder aos estudos para a licenciatura em Direito.
Este é o seu relato sobre os dezasseis anos de desaparecimento forçado:

"Minha família vivia em Tan Tan, mas o meu irmão e eu tínhamos ido para Kenitra, para estudar no liceu, porque em Tan Tan estávamos recebendo ameaças. O meu tio morava em Kenitra e, embora estivéssemos internos, nos fins-de-semana podíamos visitá-lo. Porém, em janeiro de 1976, prenderam o meu irmão, numa vaga de desaparecimentos forçados contra os saharauis. Meu pai, minha mãe, meu tio e minha tia desapareceram a 27 de fevereiro de 76. Eu tinha 16 anos e, embora não soubesse da minha família, tinha recebido informações que garantiam que eles estavam na delegacia da polícia de Agadir ".
Fadel Leili foi levado para a prisão (então secreta) de Derb Moulay Cherif, juntamente com opositores ao regime e presos políticos. Desse lugar lembra a roupa que o obrigaram a vestir, cheia de pulgas e muito maior do que ele, de tal modo que tinha que andar sempre a segurar as calças compridas com as mãos. Nesse lugar também perdeu o seu nome, mudaram-no para 79 ou 97, não se lembra bem.
Os guardas também eram desumanizados, não se sabia o seu nome, havia que chamar a todos “El Hash”, Chefe, sempre que era necessário. Em Derb Moulay Cherif provou o sabor da tortura, longas sessões em que é interrogado sobre a Frente Polisario. Procuram sacar informação sobre a sua estrutura dirigente, perguntam-lhe por El Ouli Mustafa Sayed e por outros dirigentes do Movimento de Libertação, entre eles, outro dos seus irmãos: Mohamed Lamin Ahmed. “Claro que os recordava! Vinham à minha casa, mas eu não passava de uma criança sem ideias políticas”, rememora.

Fossa comum com 8 cadáveres de saharauis recolhida por equipa forense basca 

O seu destino seguinte foi a prisão secreta de Agdez, para onde iam parar a maioria dos saharauis com estudos superiores ou, como ele, que ainda estavam no Liceu. Detêm gente de forma aleatória, não pela sua relação entre si, mas gente que podia construir um movimento de resistência à invasão. Recorda o dia da mudança de prisão como se fosse hoje. “Oitocentos quilómetros em furgoneta, sob um sol abrasador de julho de 1976. Éramos dez jovens, algemados e vendados. Vim um vislumbre de humanidade num dos guardas que transgrediu a proibição de dar-nos de comer ou de beber quando nos deu um trago de água às escondidas. Receberam-nos com torturas e registaram-nos. Então teve  primeira surpresa. “Enquanto me registavam li em francês que no registo de saídas só havia mortos. É então que compreendo que estamos ali para morrer”. Como afirma o médico e psicólogo forense Carlos Beristain, “os procesos repressivos são muito burocráticos”. Há sempre abundante documentação que testemunha a quantidade e qualidade de danos infligidos ao inimigo.

É em Agdez onde consegue ver por uma frincha da cela passar a sua irmã, a sua mãe e a sua tia, e mais tarde o seu pai. “Senti alívio por não estar só, necessitava da família”.

Celas de 5 ou 6 metros quadrados para dez pessoas. Habitáculos vazios com um solo irregular donde irrompem grandes pedras. Mantas do tamanho de um guardanapo grande para passarem as frias noites do deserto. Pratos oxidados que contêm água quente com uma gota de azeite, em que flutua a ferrugem ou um bocado de cenoura tão grande como uma ponta de um dedo. Pela tarde, uma papa de cereais que fica negra em contacto com o óxido. A anemia instala-se nos corpos dos presos. “Perdiam a capacidade de andar, tinham os músculos enfraquecidos. Os dentes caiam e as gengivas estavam em carne viva, houve muitos mortos por desnutrição. Então optaram por nos dar quatro ou cinco tâmaras por dia. Mas nós dávamo-las aos doentes”. “Um dia deram-nos arroz, mas um velho reparou que junto com o arroz havia também pequenas agulhas e deu a voz de alarme. A alegria converteu-se em pesadelo”.

A morte sobrevoa Agdez. Os guardas permitem-lhes realizar o rito muçulmano com os cadáveres dos companheiros. Lavam-nos, envolvem-nos com lençóis brancos e rezam pelas suas almas. Cada vez que os guardas levam um corpo voltam a entregar-nos os lençóis e dizem “estes são para vocês”. Cada vez que um preso morre torturam outro para desviar a atenção dos vivos. A urgência do sofrimento fá-los esquecer aquele que já se foi. “Os guardas quebram a coluna vertebral dos cadáveres e deitam ácido nas suas caras para que não possam ser reconhecidos se alguém vier a descobrir a fossa”.

Qual era o plano das autoridades marroquinas? “Os guardas contam-nos que ao princípio veio o governador da zona, Ouarzazate, e deu ordens para que os presos morressem lentamente, fossem enterrados os corpos e que fossem castigados duramente as sentinelas que ajudem os saharauis”.

“Os guardas não tinham sido treinados (numa referência à formação em torturas que a CIA promoveu). Os guardas de Agdez dão espancamentos sem controlo, sem técnica, com paus com picos, com folhas grandes de palmeira, com garrafas de vidro… São dois ou doze guardas ao mesmo tempo”.

Apesar de tudo isso, Mohamed Fadel Leili e a sua família sobrevivem para conhecer mais uma prisão: Kalaat M’Gouna. “A noite mais dura da minha vida”, descreve rotundo, sem hesitação. É o mês de outubro do ano de 1980. Na caixa de cada camião vão atadas 25 pessoas, todos com o mesmo rolo de corda, para que a cada movimento ou estremeção aperte mais os nós dos outros. “Os militares passam por cima de nós, agridem-nos com a culatra das espingardas na cabeça e nos joelhos. Ao chegarmos cortam a corda e atiram-nos de bruços do camião para o chão. Um companheiro morre de hemorragia interna. Em Kalaat M’Gouna, as pequenas melhorias que tínhamos conseguido em Agdez desvanecem-se”.

E a família? Também tinham sido trasladados para ali, são-lhes dados dez minutos por semana para se encontrarem. Normalmente, nas celas permanecem atados de mãos e pés quatro pessoas. Um novo membro do clã chega à prisão, seu irmão mais novo, detido em 1983. “Um guarda um dia diz à minha mãe que tem um presente para ela, e leva-a a encontrar-se com esse filho, a caminho da sala de tortura. Adverte-a com um sorriso que ele enlouqueceu”. Estão juntos numa sala cheia de soldados. O filho não conhece a sua mãe, mas após uns momentos em que ela lembra-lhe recordações de infância, ele melhora, sorri, liga à realidade. Quando os guardas reparam, levam-no.

E assim sobreviveu a sua família, até à sua libertação.

Em 1991 Marrocos liberta 300 presos saharauis, entre eles Mohammed e a sua família. Levam-nos para El Aaiún onde chegam ao meio-dia. Durante a noite falece o seu pai, após 16 anos em prisões.

Aqui termina o parêntesis, mas não acaba a dor. Com 32 anos regressa ao Liceu, compartilhando as carteiras com jovens de 16 anos. Depois de passar por muitas penúrias económicas, consegue aceder à Universidade de Marraquexe.

Entretanto, o seu irmão mais novo, que havia melhorado psicologicamente graças a um tratamento médico, desaparece. A família empreende a sua busca pelas delegacias da polícia, pelos hospitais… Até que Mohammed chega à morgue. “Dizem-me que só há um corpo, que é de um marinheiro chamado Omar. Mas eu quero vê-lo, é o meu irmão. Afirmam que morreu afogado quando fazia natação. Que se despira, deixou o seu relógio nas sapatilhas e depois o mar devolveu-o juntamente com a roupa. A sua camisa denunciava marcas de pintura, uma sandália estava rota, tinha sinais de estrangulamento…”.

Em 1996 licenciou-se e em 97 passou no seu exame de acesso à advocacia. Em 2003 obtém o título de mestrado em Direito Internacional, e posteriormente doutora-se nesse âmbito, especializando-se em conflitos de fronteiras em África ante o Tribunal Internacional de La Haya. “Hoje prossigo com a minha promessa de defender os saharauis que sofrem torturas. Faço parte de uma equipa de advogados que trabalha de forma voluntária”.

O papel de Mohammed Fadel Leili, e dos seus três companheiros, é considerado como determinante pelos membros das associações saharauis de Direitos Humanos. Em 2011 receberam o prémio da Fundación Abogados de Atocha, um prémio que o Consejo General de la Abogacía Española [Ordem de Advogados espanhola] se comprometeu a impulsionar através de um convénio subscrito no passado mês de maio.

Ninguém melhor do que esta equipa de quatro advogados saharauis, três dos quais foram vítimas de desaparecimentos forçados e tortura, pode entender o sofrimento das pessoas que defendem. “Não gostamos nada do sistema jurídico, mas temos a obrigação de controlar todas as suas facetas. Sofremos quando vemos injustiças pelo único motivo dos acusados serem saharauis. Os juízes marroquinos cometem um delito quando alteram o direito que se deveria aplicar aqui. A nossa experiencia como equipa de advogados é importante, usá-la-emos quando desenharmos o nosso próprio sistema. Quando o Sahara for livre”.




Fonte: lamarea.com

Sem comentários:

Enviar um comentário