sexta-feira, 2 de setembro de 2016

Invasão marroquina na região de Guerguerat, o “Perejil” do Sahara Ocidental


A 11 de Agosto de 2016 produziu-se o incidente militar mais grave no Sahara Ocidental desde 6 de Setembro de 1991 [data de entrada do cessar-fogo]. É verdadeiramente escandaloso que a imprensa de Espanha, potência administrante do Sahara Ocidental, tenha silenciado (com as únicas exceções de Elena González em “Onda Cero” e Isaac J. Martín do "El Mundo" hoje mesmo) esta violação flagrante dos acordos militares firmados por Marrocos e a Frente Polisario juntamente com as Nações Unidas. A invasão por forças militares marroquinas da região para lá do muro divisório ao sul de Guerguerat, no sudoeste do Sahara Ocidental, tem lugar perto da localidade saharaui mais meridional do território, La Güera, lugar em torno do qual se gerou grande tensão nos últimos dois anos. Este facto tem um profundo significado que requer uma adequada análise @Desdelatlantico.


I. O ESTATUTO DE "LA GÜERA" E DO "KANDAHAR" SAHARAUI
Como já recordei neste blog, La Güera é um território que 1) Marrocos reconheceu , ante o Tribunal Internacional de Justiça, que NUNCA fez  parte do seu territorio; 2)  Marrocos num tratado bilateral de 1976 reiterou que La Güera não faz parte do seu territorio; e, finalmente, 3) La Güera é um territorio que se encontra fora das zonas de restrição militar acordadas por Marruecos e a Frente Polisario ante as Nações Unidas.
Não acontece o mesmo com o denominado "Kandahar" saharaui que é a zona que se encontra entre Guerguerat (onde se localiza o posto de controlo marroquino mais a sudoeste do Sahara Ocidental ocupado) e a fronteira internacionalmente reconhecida entre o Sahara Ocidental e a Mauritânia. A esta zona se aplicam as notas 1) e 2) que dissemos para La Güera, mas não a 3) pois esta zona se encontra regida pelo "Acordo Militar número 1", firmado em 1997 por Marrocos e a Frente Polisario que estabelece várias restrições e entre elas a proibição de que as tropas dos dois lados opositores ultrapassem o muro de divisão.


II. A TENSÃO EM TORNO DE LA GÜERA, DESDE JANEIRO DE 2015
O meu blog foi, não sei se a única, mas seguramente a primeira publicação espanhola que se fez eco do artigo de uma publicação independente, "Futuro Saharaui", a qual em 11 de Janeiro de 2015 afirmou que tropas saharauis tinham tomado o controlo, pela primeira vez desde 1975, da localidade de La Güera, no extremo sul do Sahara Ocidental.
O acontecimento tinha um significado político evidente pois La Güera é o único porto (embora hoje inutilizado) do Sahara O que não está sob ocupação marroquina.
A Frente Polisario desmentiu as informações da "Futuro Saharaui" que, no entanto, a mim me foram confirmadas por fontes figedignas. O que ocorreu exatamente em janeiro de 2015 não o sabemos ainda hoje, mas é um facto que em dezembro de 2015, o presidente mauritano, Mohamed Ould Abdelaziz, recebeu em Nouakchott uma delegação marroquina de máximo nível composta pelo ministro dos Negócios Estrangeiros (Salaheddin Mezuar), o chefe da espionagem exterior (Yasín Mansuri) e o general responsável pelo exército de ocupação do Sahara Ocidental (Bushaib Arrub).
Nesse momento especulou-se sobre o verdadeiro motivo daquele encuentro, mas hoje sabe-se, com segurança, que o objeto fundamental do encontro foi tratar da questão La Güera.
A 8 de janeiro de 2016 uma publicação argelina, "Algérie Patriotique", forneceu importantes revelações. Segundo esta publicação, confirma-se verdadeiro que tenha havido unidades militares saharauis em La Güera, com a complacência mauritana, e frente às pressões marroquíes, a Mauritânia içou a sua bandeira em La Güera, o que suscitou enorme irritação em Rabat.


III. REVESES DIPLOMÁTICOS MARROQUINOS NA EUROPA, ÁFRICA E NAÇÕES UNIDAS
Não é possível entender o que se está a pasar se não tomamos em conta que a diplomacia marroquina sofreu vários reveses neste último ano:
- Revés na União Europeia com a sentença de 10 de Dezembro de 2015 que anula a aplicação ao Sahara Ocidental do acordo entre a UE e Marrocos sobre liberalização de produtos agrícolas e pesqueiros.
- Revés na União Africana, onde a presidência da organização recusou prestar-se às manobras do Makhzen.
- Revés nas Nações Unidas, onde não só se desautorizou a expulsão unilateralmente decretada por Marrocos de membros da Missão das Nações Unidas para o Referendo no Sahara Ocidental (MINURSO), como teve lugar a mais dividida votação na história de todas as resoluções do Conselho de Segurança sobre o Sahara Ocidental.
A isto vem juntar-se o facto de a 1 de Agosto de 2016 o porta-voz do Secretário-Geral das Nações Unidas ter anunciado que o Enviado Pessoal do SG da ONU para o Sahara Ocidental, Christopher Ross, pensava reativar as negociações com uma "proposta formal".
É evidente que as opções diplomáticas para o expansionismo do Makhzen se esgotam. A única opção possível para quem se empenha em manter esse expansionismo é a militar. E essa foi a opção tomada pelo Makhzen.


IV. A INVASÃO MARROQUINA DE 11 DE AGOSTO, UMA DATA SIMBÓLICA
A 11 de Agosto de 2016 teve lugar a incursão de forças militares marroquinas na região denominada de "Kandahar" saharaui, para lá do muro divisório, violando flagrantemente o "Acordo Militar número 1".
Surpreende-me, e espanta-me, que nem uma só análise sobre a situação tenha examinado o simbolismo da data.
Foi num 11 de Agosto, mas de 1979, que teve lugar a segunda invasão marroquina do Sahara Ocidental. Nessa data, as tropas marroquinas entraram em Villa Cisneros (Dakhla), um território que o próprio Marrocos havia reconhecido ante o Tribunal Internacional de Justiça e num tratado bilateral com a Mauritânia que NÃO fazia parte de "Marrocos". Essa invasão, convém recordá-lo, foi condenada por várias resoluções da Assembleia Geral das Nações Unidas.
Que seja  11 de Agosto a data escolhida para esta nova invasão é TUDO MENOS CASUAL.





V. A CUMPLICIDADE COM MARROCOS DO PORTA-VOZ DO SG DA ONU POSTA EM EVIDÊNCIA POR "FUTURO SAHARAUI"
A invasão marroquina foi denunciada numa carta ao SG apresentada por Ahmed Bukhari, representante da Frente Polisario ante as Nações Unidas, cujo contúde pode ser lido num despacho da Inner City Press.
No entanto, de forma assombrosa, o porta-voz do SG da ONU, Farhan Haq, disse a 18 de Agosto que a MINURSO após uma investigação por terra e ar "não observou presença militar ou equipamentos na faixa-tampão " ("buffer strip").
Ante estas declarações a publicação independente "Futuro Saharaui" publicou, no dia seguinte, fotos e vídeos que demonstravam essa presença militar..
A cumplicidade de Farhan Haq ficou ainda mais em evidência quando a 28 de Agosto, o departamento de comunicação do SG da ONU emitiu um comunicado em que mostrava estar "profundamente preocupado" pela "tensa situação" resultante da infiltração de "unidades armadas" de "Marrocos" e da Frente Polisario.
Mas não disse Farhan Haq que não se havia observado presença militar marroquina?
O facto é que, como revelou Omar Slama num importante artigo, houve um comportamento da ONU e da MINURSO que, a não ser suspeito e cúmplice com o Makhzen marroquino, poderia ser qualificado de claramente deficiente na gestão deste grave incidente.


VI. "KANDAHAR", UM “PEREJIL” SAHARAUI
A invasão marroquina de "Kandahar" teve muitas similitudes com a invasão da ilhota de Perejil em Julho de 2002... e um final parecido para Rabat.
Também na invasão de Perejil, como na de Kandahar, foram utilizadas forças da Gendarmeria (forças que são militares). Também em Kandahar, como em Perejil, se tratava de um território sem forças militares presentes. Em Kandahar, como em Perejil, as forças do país soberano (Espanha em Perejil, a RASD em Kandahar) repeliram a agressão içando a sua bandeira no território que sofreu a invasão. E em Kandahar, como em Perejil, o conflito parece ter-se resolvido com uma intervenção de terceiros (EUA em Perejil, a MINURSO em Kandahar).
Com efeito, no momento em que escrevo estas linhas, a publicação "El Confidencial Saharaui" informa que foi garantido o "statu quo ante".
A intervenção militar que pôs fim à invasão de Kandahar foi um sucesso, que deve figurar no ativo do presidente saharaui, Brahim Gali.


NOTA
O site digital marroquino "Le Desk" publicou um amplo artigo sobre La Güera assinado por Christophe Guguen. O artigo em geral é aceitável, mas mas perde-se com informações objetivamente falsas como as relacionadas com a "recuperação" do Sahara Ocidental por Marrocos.
A documentação gráfica é também incorrecta, aunque hay alguna inexactitud, como la de un grabado antiguo que atribuyen a La Güera pero corresponde a Villa Cisneros.


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