quinta-feira, 9 de fevereiro de 2017

Marrocos entra na União Africana: de que modo isso afetará o Sahara Ocidental?




Marrocos foi admitido hoje (dia 30 de janeiro de 2017) como 55º Estado membro da União Africana. Já antes, neste blog, revelei (em julho de 2016) a alteração da estratégia marroquina. O ingresso de Marrocos na UA terá, sem qualquer dúvida, um impacte na questão do Sahara Ocidental. Mas, positivo ou negativo? Haverá efeitos positivos e efeitos negativos, ainda que pareça óbvio que se Marrocos pediu para entrar na UA é porque considerou (acertada ou equivocadamente) que lhe era benéfico.

Artigo do Prof. Carlos Ruiz Miguel, catedrático de Direito Constitucional na Universidade de Santiago de Compostela


I. A QUESTÃO DO SAHARA OCIDENTAL EM ÁFRICA

A questão do Sahara Ocidental foi tratada no âmbito continental africano tanto pela Organização de Unidade Africana (OUA) como pela União Africana (UA). Mas esse tratamento não foi uniforme.
Se analisamos a documentação relativa ao Sahara Ocidental aprovada pela OUA constatamos que a Assembleia de chefes de Estado e de Governo da OUA foi especialmente ativa na questão do Sahara Ocidental entre 1975 e 1984. Nesses anos Marrocos era membro da OUA e a República Saharaui (a RASD) não tinha ainda entrado na organização (fá-lo em 1984). Em 1984 Marrocos retira-se da OUA onde fica a RASD, mas a OUA diminuiu o nível de compromisso. Em qualquer caso, em 1990-1991, a ONU associou a OUA ao processo de paz para o Sahara Ocidental.

Quando em 2002 a OUA desaparece e é criada a UA, a RASD é um dos seus membros fundadores, ficando Marrocos fora da nova organização. A UA, pese embora a República Saharaui ser um dos seus membros fundadores não teve num primeiro momento um papel ativo na questão do Sahara Ocidental. Se se analisar a documentação da UA relativa ao Sahara Ocidental chama a atenção constatar como até dez anos depois da sua fundação praticamente não há atividade da UA relativa à questão do Sahara Ocidental. O facto é que desde então, tanto a Comissão Africana, como o Conselho de Paz e Segurança, como o Parlamento Africano ou a Assembleia de chefes de Estado e de Governo incrementaram o seu interesse pela questão do Sahara Ocidental.


II. MARROCOS PROCURA NEUTRALIZAR O ATIVISMO DA UNIÃO AFRICANA NA QUESTÃO DO SAHARA OCIDENTAL

O facto, indesmentível, é que 28-30 anos depois de 1984, a questão do Sahara Ocidental voltava a ter um papel protagonista na política continental africana. E isso, claramente, preocupava Marrocos.
Quando foi anunciado, em julho de 2016, que Marrocos pretendia entrar na UA, escrevi neste blog, a 16 de julho de 2016:

Dejando al margen otras cuestiones que no vienen al caso, esta decisión sólo se explica a partir del mayor compromiso que la UA ha tomado en el conflicto del Sahara Occidental en estos últimos dos o tres años, tanto mediante acciones e iniciativas en el seno de la organización (como el importantísimo dictamen de 15 de octubre de 2015 sobre la legalidad de las actividades económicas en el Sahara Occidental), como en el marco de Naciones Unidas, donde este año, por primera vez, la Unión Africana fue oída en el Consejo de Seguridad y donde presentó un importante documento.

El majzen ha hecho, como siempre, una evaluación de costes.
Queda claro que con la decisión de solicitar su ingreso en la UA el majzen de Marruecos sufre más costes que beneficios. Ahora bien, la delicada situación diplomática en la que se encuentra el majzen parece que le ha llevado a buscar el modo de sufrir los menores costes posibles, lo que en los cálculos majzenianos pasa por un ingreso, y rápido, en la UA..

No entanto, na cimeira da UA de Kigali, em julho de 2016, Marrocos surpreendeu ao não apresentar a sua candidatura oficialmente, apesar do o haver anunciado. Isso fez-me pensar que o objetivo real de Marrocos não era entrar na UA, apesar do que eu mesmo havia afirmado uma semana antes. A ofensiva marroquina canalizada através de Gabão pretendia algo não previsto na ata constitutiva da UA pelo que escrevi a 24 de julho de 2016 que

Si el objetivo no es ninguno de los dos apuntados antes... parece que el objetivo de Marruecos, que no es entrar en la UA ni expulsar de la UA a la república saharaui es.... destruir la UA.

Em todo o caso, numa ou noutra hipótese, o que se tratava era de anular o ativismo da UA em favor do Sahara Ocidental.





III. QUE IMPACTO PODE TER NA QUESTÃO DO SAHARA OCIDENTAL A ENTRADA DE MARROCOS NA UNIÃO AFRICANA?

Está claro que Marrocos entrou na UA para tentar, a partir de dentro, neutralizar a luta da UA a favor do Sahara Ocidental. Não é difícil adivinhar que a partir deste momento as decisões dos órgãos da UA sobre o Sahara Ocidental serão objeto de intensos debates, o que não é necessariamente negativo para a república saharaui.
Pois bem, independentemente de que possa ter êxito no objetivo de neutralizar essa ativismo, é um facto que a entrada de Marrocos na UA tem um custo muito importante.
Em primeiro lugar, goste ou não, a entrada de Marrocos na UA é um ato de reconhecimento da República Saharaui. Convém não esquecer que um dos objetivos da União Africana (art. 3 da sua Ata constitutiva) é

Defender a soberania, a integridade territorial e a independência dos seus Estados membros;

Portanto, Marrocos integra-se numa organização que procura defender a soberania, a integridade territorial e a independência da República Saharaui.
Em segundo lugar, a estratégia diplomática marroquina de tentar que outros Estados anulem o reconhecimento da RASD ou não o levem a cabo fica sensivelmente afetada a partir do momento que Marrocos aceita estar na mesma organização internacional que a RASD.


IV. O QUE PRETENDE MARROCOS COM A SUA ENTRADA NA UA?

Se estes custos são tão claros, a pergunta que se faz é o que pretende então Marrocos com a sua entrada na UA?

Há quem sugira que é "suspender" ou "expulsar" a RASD. Mas devo insistir (o que venho fazendo desde julho de 2016) que basta ler a ata constitutiva da UA para ver que isso NÃO É POSSÍVEL pela simples razão de que a Ata não prevê a "expulsão" de um membro. Embora erradamente tenha argumentado que a alteração da Ata exige a unanimidade dos Estados para a sua ratificação, o facto é que o artigo 32.4 da Ata Constitutiva, ainda que submeta a ratificação das alterações da Ata a "todos" os Estados-Membros, prevê que a entrada em vigor dessa ratificação ocorra quando a ratificação tenha sido depositada por 2/3 dos Estados-Membros. Pois bem, enquanto se possa, ou não, produzir tal eventualidade o Reino de Marrocos tem de reconhecer a República saharaui.
A minha opinião é que, possivelmente sob aconselhamento externo, Marrocos pretenda consagrar o status quo atual território separado pelo muro que divide o Sahara Ocidental.
No entanto, esta entrada na UA pode pretender um objetivo que vai muito mais longe e que seja permitir um reconhecimento da RASD sem ter que fazer um referendo de autodeterminação.

NOTA: DOCUMENTAÇÃO  DA OUA E DA UA SOBRE O SAHARA OCIDENTAL


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