Depois do Nagorno-Karabakh e da Etiópia, estala um terceiro conflito dos anos 1990. Os sarauís sonham com uma resolução do século XXI, semelhante à de Timor-Leste.
Autor: César Avó, jornalista do Global Media Group, artigo publico no DN online a 30-11-2020.
Menos de duas semanas depois de o exército marroquino ter lançado uma operação militar em Guerguerat, uma localidade no extremo sudoeste do Sara Ocidental, na sexta-feira o primeiro-ministro marroquino, Saad-Eddine El Othmani, visitou a povoação pela primeira vez.
Para Othmani, a operação militar levada a cabo na zona tampão patrulhada pela ONU ao longo da fronteira foi executada "no interesse de África, de Marrocos e da Europa".
Peixe, soberania e regresso à guerra aqui tão perto
A Frente Polisário, que luta pela independência do Sara Ocidental, bloqueou a passagem rodoviária durante cerca de três semanas, ao que diz com "uma centena de mulheres e crianças". Para os sarauís a estrada fronteiriça foi construída em violação de um acordo de cessar-fogo promovido pela ONU em 1991. "Esta brecha foi aberta em 2001 e a Frente Polisário queixou-se junto das Nações Unidas", recorda Mohamed Fadel, delegado do movimento em Portugal, ao DN.
"Marrocos saca do território recursos naturais explorados ilegalmente e, além disso, está demonstrado, aproveita para fazer circular enormes quantidades de haxixe para África e o Médio Oriente através desta brecha ilegal", acusa.
Após a intervenção do exército marroquino na terra de ninguém, o secretário-geral da Frente Polisário e presidente da República Árabe Sarauí Democrática, Brahim Ghali, declarou a trégua nula.
Mohamed Fadel diz que, em consequência, o exército sarauí ripostou com "uma guerra de intimidação e desgaste", ou seja, incursões ao longo do muro de areia e pedra de 2700 quilómetros. "Até agora Marrocos está a ocultar a situação bélica no terreno e inclusivamente nega ter registado vítimas. Marrocos mantém a opinião pública confundida e não quer que se saiba que na linha da frente há mortos e feridos", acusa.
Este regresso às armas é um sinal de desespero dos sarauís? "Guerguerat deu-nos a ocasião para reiniciamos as hostilidades até que Marrocos se submeta à legalidade internacional e que o mundo preste atenção ao drama que vive um povo pacífico durante quase 50 anos", diz o delegado da Frente Polisário, para quem a única exigência do seu povo é que se dê uma oportunidade para se pronunciarem nas urnas sobre o direito reconhecido nas Nações Unidas à autodeterminação.
O Sara Ocidental, uma vasta faixa de deserto na costa atlântica de África, é uma antiga colónia espanhola em disputa entre os sarauís e os marroquinos. A Polisário, apoiada pela Argélia, travou uma guerra pela independência de 1975 a 1991 e exige um referendo sobre a autodeterminação do Sara Ocidental, como estava previsto no acordo de cessar-fogo.
"Solução política" no lugar de referendo
A missão para a manutenção da paz da ONU explicita-o no seu nome, Missão das Nações Unidas para o Referendo no Sara Ocidental (Minurso, sigla em inglês), mas esse objetivo deixou de ser referido nas resoluções de renovação da missão do Conselho de Segurança das Nações Unidas.
"A resolução não contém qualquer referência ao referendo, embora aluda seis vezes à solução política", regozija-se o ministro dos Negócios Estrangeiros marroquino, Nasser Bourita, sobre a mais recente resolução, aprovada em 31 de outubro, como dá conta a revista “Jeune Afrique”.
A mensagem da "solução política" foi repetida pelo Ministério dos Negócios Estrangeiros de Marrocos, no seguimento da ação militar na zona patrulhada pela Minurso. "Marrocos continuará a apoiar os seus esforços no contexto do processo político. Isto deve ser retomado com base em critérios claros, envolver as partes reais neste conflito regional e permitir uma solução realista e exequível no âmbito da soberania do reino", lê-se no comunicado.
Em 2007, Rabat apresentou um plano que oferecia autonomia à região, a qual controla em cerca de 80%, incluindo os seus depósitos de fosfatos e as suas zonas de pesca, plano esse inaceitável para os sarauís, que consideram os marroquinos colonizadores e a marcha verde impulsionada por Hassan II nada menos que uma "farsa".
Sem enviado especial
As negociações entre Marrocos, a Frente Polisário, a Argélia e a Mauritânia, iniciadas em 2018, em Genebra, sob a supervisão de Horst Köhler, enviado especial do secretário-geral da ONU, António Guterres, foram suspensas e o ex-presidente alemão acabou por renunciar, em maio do ano passado, não tendo sido substituído até agora.
O DN perguntou ao gabinete do porta-voz do secretário-geral da ONU para quando está prevista a nomeação de um novo enviado especial. "Ainda não temos uma nomeação a anunciar", foi a resposta.
Segundo o Sahara Press Service, o ministro alemão dos Assuntos Europeus, Michael Roth, expressou no Parlamento a importância da nomeação o quanto antes de um novo diplomata, sob pena de todos os esforços diplomáticos caírem por terra.
Depois da incursão militar ordenada pelo rei Mohamed VI, o secretário-geral da ONU, António Guterres, afirmou-se resoluto para "levantar todos os obstáculos para o reatamento do processo político", uma linguagem em linha com a de Rabat.
"Tenho de dizer-lhe que é uma deceção o secretário-geral António Guterres, homem com reconhecida experiência diplomática, e que ajudou com muita determinação e clarividência na devolução da independência aos timorenses", aponta o delegado da Frente Polisário em Portugal.
"A esperança tem sido desvanecida", prossegue, "graças à sua nefasta gestão do conflito, quando conseguiu o que nenhum dos antecessores fez, que uma organização dependente das Nações Unidas esteja submetida de forma total às autoridades marroquinas. Basta dizer que as instalações da Minurso estão sob bandeiras marroquinas", exemplifica Mohamed Fadel.
Consulados ou aldeias Potemkin
Indiferentes aos apelos sarauís, desde finais de 2019, 17 países abriram representações diplomáticas na antiga capital colonial Laiune (El Aaiún) e no porto de pesca de Dakhla, mais a sul, como parte do impulso diplomático de Marrocos no espaço que considera as suas "províncias meridionais".
Depois de os Emirados Árabes Unidos, se terem tornado o primeiro país árabe a abrir uma missão diplomática na parte do território controlada por Marrocos, no dia 4 de novembro, a Jordânia anunciou na semana passada que tenciona abrir em breve um consulado, ao que foi secundada pelo Bahrein.
As missões diplomáticas no Sara Ocidental "não têm qualquer alcance do ponto de vista do direito internacional."
A Frente Polisário considera a abertura das missões uma "violação do direito internacional e um ataque ao estatuto legal do Sara Ocidental". Mohamed Fadel menoriza estas movimentações: "Não tem nenhum alcance do ponto de vista do direito internacional. É simbólico, é como as aldeias que Potemkin, o conselheiro da czarina russa, mandava pintar", compara.
Porta de Marrocos para África
El Fekir Khattat, um funcionário da administração local de Guerguerat, definiu à AFP a zona como "a porta de entrada de Marrocos para África".
"O posto fronteiriço tem um peso económico importante e gera receitas consideráveis", disse. A intervenção do exército "irá reforçar a sua atratividade económica", afirmou. Khattat disse estar a contar com a construção de duas zonas industriais "para desenvolver a atividade comercial" ao longo da estrada e criar empregos na zona escassamente povoada.
Rabat já levou a cabo outros projetos de infraestruturas no Sara Ocidental.Em 2017, ano em que Marrocos aderiu à União Africana, o rei Mohammed VI libertou cerca de 6,6 mil milhões de euros para investimentos destinados a transformar a região num "centro económico".
Um dos projetos, no valor de cerca de 835 milhões de euros, foi o desenvolvimento da Estrada Nacional 1, que atravessa o território. Percorrem-na diariamente cerca de 200 camiões.
Outro projeto consiste em transformar o porto de Dakhla num "centro marítimo regional" para servir Marrocos e a África Ocidental, juntamente com as espanholas ilhas Canárias.
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