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05 de Janeiro, 2021 - Ali Lmrabet - PoliticsToday.org
Até Donald Trump anunciar o reconhecimento pelos EUA da soberania marroquina sobre o Sahara Ocidental em troca do restabelecimento das relações diplomáticas entre Marrocos e Israel, essas duas questões nunca foram discutidas juntas.
Marrocos sempre teve duas causas "sagradas". A primeira e mais antiga causa é a Palestina, que existia desde a declaração do Estado de Israel em 1948, oito anos antes de o Império Cherifiano reconquistar sua independência da França e da Espanha. A segunda causa “sagrada” data de 1975, quando a Espanha entregou as chaves do Sahara Ocidental a Marrocos e à Mauritânia após a Marcha Verde e os acordos tripartidos de Madrid.
Este foi um presente envenenado da Espanha que desencadeou uma guerra entre Marrocos e os combatentes pela independência saharauis da Frente Polisario. A retirada da Mauritânia da sua zona, que foi a metade sul do Sahara Ocidental, em 1979, levou o Rei Hassan II a ocupar militarmente a zona para impedir que a Polisario a usasse em seu próprio benefício.
Os marroquinos sempre tiveram as causas da Palestina e do Sahara Ocidental perto de seus corações. Com exceção de alguns pequenos grupos berberes, todos os partidos políticos marroquinos continuamente se declararam pró-palestinos.
Em relação ao conflito do Sahara Ocidental, apenas uma formação política de afiliação marxista, Annahj Addimocrati (“O Caminho Democrático”), é neutra e exige a realização de um referendo sobre autodeterminação conforme aceite por Hassan II e adotada, em 1981, pela décima oitava cimeira da Organização da Unidade Africana (OUA), a precursora da União Africana (UA).
A posição de “O Caminho Democrático” é rara num país onde se impôs o conceito de “consenso nacional”, segundo o qual todos os marroquinos são obrigatoriamente a favor da marroquinidade do Sahara, e aqueles que se desviam de considerar o Sahara Ocidental como marroquino, bem como aqueles que convocam a realização de um referendo, embora concedido por Hassan II, são considerados "traidores".
Até o presidente Trump ter anunciado o reconhecimento pelos EUA da soberania marroquina sobre o Sahara Ocidental em troca do restabelecimento das relações diplomáticas entre Marrocos e Israel, estas duas questões nunca haviam sido discutidas em conjunto. Nenhuma dessas duas causas era mais importante ou mais sagrada do que a outra.
E era impensável que um dia pudessem ser trocadas uma pela outra. No entanto, foi exatamente isso que aconteceu. Ao concordar em voltar a se comprometer com o estado israelita, o rei do Marrocos Mohamed VI quebrou, mesmo que se defenda de o ter feito, esse consenso sobre a Palestina ao fazer um grande acordo geoestratégico.
Portanto, uma grande parte da população marroquina não entendeu a mudança para Israel. Enquanto os marroquinos estão satisfeitos que a atual administração norte-americana tenha reconhecido a soberania do seu país sobre o Sahara Ocidental, eles estão mortificados com a decisão do rei de restaurar as relações diplomáticas com Israel, que é considerado um Estado colonial.
Num país como o Marrocos, que tem uma monarquia supostamente constitucional, os representantes eleitos na Câmara dos Representantes (Câmara dos Deputados), apesar de conhecerem os sentimentos da sua base eleitoral, não expressaram a sua voz, ao menos simbolicamente, revelando o seu descontentamento com a mudança.
No entanto, nada aconteceu no país, onde a opinião pública não conta e onde praticamente todos os partidos políticos há muito foram domados. Apenas três partidos declararam opiniões contrárias à decisão real.
"Nada aconteceu no país, onde a opinião pública não conta e onde praticamente todos os partidos políticos há muito foram domados".
A Federação da Esquerda Democrática (FGD), com dois deputados na Câmara dos Deputados que protestaram, mas suavemente; e dois outros movimentos sem representação parlamentar, que ainda são considerados os verdadeiros partidos da oposição em Marrocos: os Marxistas de “O Caminho Democrático” e os islamitas da poderosa associação Al Adl Wal Ihsane (“Justiça e Espiritualidade”). Este último usou a mesma palavra para dizer não - "traição".
Quanto aos outros islamitas, o Partido para a Justiça e o Desenvolvimento (PJD), cujo secretário-geral, Saaddine El Otmani, é o chefe do governo marroquino, manifestou a sua reação, que se transformou em drama.
O PJD, o bloco mais forte na Câmara dos Representantes com 125 deputados em 395, construiu parte de sua credibilidade entre as massas marroquinas conservadoras com base na sua intransigência no conflito israelita-palestiniano.
Quando ainda não era chefe de governo, o Dr. Saaddine El Otmani escreveu um artigo intitulado "Normalização é um Genocídio Civilizacional".
E acima de tudo, em agosto passado, El Otmani havia alardeado alto e bom som antes de uma reunião com os jovens de seu partido que "Marrocos, o rei, o governo e o povo são resolutamente hostis a qualquer normalização com a entidade Sionista".
O facto de El Otmani ter sido forçado pelo Palácio Real a assinar, na frente das câmeras de televisão, na terça-feira, 22 de dezembro de 2020, os acordos tripartidos com Jared Kushner e um alto representante da “entidade Sionista”, Meir Ben-Shabbat, um assessor chegado do primeiro-ministro israelita, foi sentido por ele e pela sua base eleitoral como uma forte bofetada na cara.
Na quarta-feira, 23 de dezembro de 2020, Abdelillah Benkiran, o antecessor de El Otmani como chefe do PJD e do governo, afirmou que “o PJD não poderia se opor às decisões tomadas pelo rei” porque é parte do Estado. Isso perturbou ainda mais a base do partido .
A humilhação pública infligida a El Otmani foi, no entanto, o preço a pagar por aceitar o escasso poder concedido pelo Palácio Real. O que é ainda mais dramático é que os ministros do PJD não podem nem mesmo renunciar para escapar ao opróbrio geral. Em Marrocos, os ministros, quanto mais o primeiro-ministro, não renunciam. Eles são demitidos ou renunciam a pedido do rei.
Marrocos é reconhecido no Ocidente como um país árabe e muçulmano “moderado”. No entanto, se é realmente moderado, só o é nas suas relações com a União Europeia e os Estados Unidos da América.
Quanto a tudo o mais, a monarquia marroquina é uma genuína autocracia. O rei de Marrocos reina, governa, é o chefe supremo e o chefe do Estado-Maior das Forças Armadas Reais (FAR), e tem a maior fortuna do país. Para apoiar a legitimidade da sua dinastia, ele também se proclama o “comandante dos crentes” e afirma ser descendente direto do Profeta Moamet.
Se adicionarmos a esses poderes, tanto temporais quanto religiosos, o facto do soberano controlar diretamente vários "ministérios de soberania", como as relações exteriores e o interior, e que todos os serviços secretos estão sob seu controle, é fácil entender por que os marroquinos e os seus representantes no parlamento e no governo dificilmente farão muito para reverter a decisão real sobre a normalização com Israel.
No final de contas, as causas “sagradas” no Marrocos não são nem a Palestina nem o Sahara Ocidental. A primeira causa sagrada é a sobrevivência da dinastia Alauita. Ao abandonar a Palestina, o rei de Marrocos, que também preside o Comité Al-Quds, consolida a presença marroquina no Sahara Ocidental.
Um Marrocos sem o Sahara, depois de milhares de milhões de dólares em investimentos para o desenvolvimento desta árida região, servindo de maná, poderia significar simplesmente um Marrocos sem monarquia, acreditam alguns.
Isso é verdadeiro e falso ao mesmo tempo. Se um dia, por uma razão ou outra, a sobrevivência da monarquia dependesse do abandono do Sahara Ocidental, o rei não hesitaria um único segundo em se livrar dele, provavelmente usando argumentos fabricados semelhantes aos usados hoje. Dado o bastião do rei no aparelho repressivo do Estado, os marroquinos não farão objeções. Eles vão deixar o Sahara Ocidental, como estão fazendo hoje com a Palestina.
Ali Lmrabet
Ali Lmrabet é um jornalista marroquino e ex-diplomata. Foi fundador e diretor de diversos orgãos de comunicação em Marrocos, em árabe e francês, todos eles encerrados e banidos. Foram-lhe atribuídos vários prémios da imprensa internacional e foi um dos principais repórteres do diário espanhol El Mundo. Atualmente é pesquisador de história e continua a colaborar com diversos órgãos de comunicação internacionais. Está proibído de fazer jornalismo no seu próprio país.
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