Pedro Sanchez, Presidente do Governo de Espanha (AFP/Vladimir Simicek) |
Artigo do jornalista marroquino Ali Lmrabet – Middle East Eye – 22-03-2022
O importante
neste caso é a incapacidade do governo espanhol em compreender que nem o
Makhzen (poder do palácio em Marrocos) nem os líderes argelinos renunciarão aos
objectivos que se fixaram.
Neste
caso de inversão da posição histórica espanhola sobre o Sahara Ocidental,
existem factos. E há interpretações.
Os factos são os seguintes. Neste conflito sem fim, o governo espanhol acaba de abandonar a sua tradicional neutralidade ativa de décadas para abraçar a posição marroquina.
A
proposta de Rabat para uma resolução definitiva da questão é a concessão de
autonomia. Deve dizer-se que esta não é uma autonomia generosa ao estilo
espanhol com amplas prerrogativas. O regime alauita continuaria a controlar
estreitamente a antiga colónia.
Esta
brusca inversão espanhola é importante porque pode ter um efeito de
arrastamento sobre outros Estados da UE, mas também porque para a ONU, a
Espanha continua a ser o poder administrante do território - sendo Marrocos um
administrador de facto - até que se realize um referendo sobre a
autodeterminação.
Esta iniciativa espanhola (carta enviada por Pedro Sánchez, o presidente socialista do governo espanhol, ao Rei de Marrocos) apanhou todos de surpresa.
A começar pelas Nações Unidas, cujo porta-voz, Stéphane Dujarric, acaba de nos lembrar timidamente que o conflito deve ser resolvido no âmbito de um processo político ao abrigo das suas directivas.
E,
sobretudo, a classe política da Península Ibérica, da esquerda àa direita, que
condenou, por uma vez em uníssono, a decisão de Sánchez de abandonar esta
antiga província espanhola aos marroquinos por uma "segunda vez" (a
primeira vez foi em 1975, quando Marrocos e a Mauritânia concordaram em dividir
o Sahara Ocidental).
Os
aliados do governo de Pedro Sánchez (o Podemos) e seus apoiantes parlamentares
tornaram isto bem conhecido, acusando o executivo de ter cedido à
"chantagem" por parte de Marrocos.
E
mesmo o Partido Popular (PP), o principal partido da oposição, denunciou esta
quebra no consenso nacional em matéria de política externa. De momento, apenas
o Partido Socialista Espanhol dos Trabalhadores (PSOE) apoia o seu líder.
Imigração: uma cooperação crucial
Estes
são os factos. Agora vêm as interpretações.
O que
aconteceu para fazer de Sánchez, antigo apoiante do movimento independentista
saharaui, minar uma posição consensual de 46 anos e virar as costas ao programa
do seu próprio partido, com o risco de alienar os seus parceiros políticos e a
Argélia, um "aliado estratégico", segundo o Ministério dos Negócios
Estrangeiros espanhol?
Em
primeiro lugar, houve a necessidade - diz-se em Madrid -, com a guerra em curso
na Ucrânia, de não ter duas frentes abertas ao mesmo tempo. A russa e a
marroquina.
Como
se a Espanha tivesse uma posição preponderante nas estruturas da OTAN. Como se
os saltos diplomáticos marroquinos pudessem ser vistos como constituindo uma
verdadeira frente.
Editorialistas,
muito raros, próximos das posições da Moncloa (sede do governo), no entanto
sublinham este ponto. Alguns deles vão, sob uma chuva de reprovações é verdade,
apresentar a autonomia sob controle marroquino como a melhor solução para o
povo saharaui.
Em
segundo lugar, para Madrid, a cooperação com Marrocos na luta contra a
imigração ilegal é essencial.
E não
há dúvida sobre a possibilidade de outra raiva marroquina, como a de maio de
2021, quando as autoridades marroquinas abriram os portões de sua fronteira com
Ceuta para deixar passar milhares de marroquinos, incluindo crianças.
Sobre
este último ponto, para ajudar o seu chefe, Miquel Iceta, o Ministro da Cultura
e do Desporto, retweetou um artigo publicado na imprensa que afirmava que, em
troca do reconhecimento do plano de autonomia, Marrocos teria "desistido
de Ceuta, Melilla e das Ilhas Canárias".
O
facto de o Ministro Iceta, um dos leais seguidores de Sánchez, ter saltado
alegremente para esta afirmação espantosa, ainda não corroborada para
justificar a reviravolta espanhola, mostra que a «entourage» do presidente do
governo ou está perplexa ou a dizer disparates.
A renúncia de Marrocos às suas reivindicações territoriais históricas sobre os enclaves de Ceuta e Melilla, mais do que as Ilhas Canárias, que não têm nenhuma reivindicação séria excepto no que diz respeito às águas territoriais, seria uma trovoada no céu patriótico marroquino.
Em terceiro lugar, fala-se de uma ligeira pressão americana sobre Pedro Sánchez para ser conciliador em relação às reivindicações marroquinas.
Isto
é muito provável, uma vez que os americanos têm estado diplomaticamente
envolvidos em convencer a Argélia a reabrir o Gasoduto do Magrebe Europeu (GME)
que liga a Argélia a Espanha através de Marrocos.
A
Secretária de Estado Adjunta dos EUA, Wendy Sherman, visitou pessoalmente Argel
como parte de uma digressão que a levou a Rabat e Madrid. Sem sucesso.
Algumas
horas antes de Marrocos anunciar a decisão espanhola de reconhecer o plano de
autonomia marroquino, Argel respondeu rejeitando o pedido americano.
O
mestre do tempo
Mas
todas essas interpretações não podem explicar plenamente o excesso, segundo a
grande maioria dos analistas espanhóis, da reviravolta espanhola, tanto mais
que na Espanha o eleitor socialista, o de Pedro Sánchez, é aquele, junto com os
outros simpatizantes da esquerda, que mais apoiam os independentistas saharauis.
Para
alguns, há algo misterioso nessa reversão. Porque irritar a Argélia, o principal
fornecedor de gás da Espanha, tem algo de "descabelado" (loucura), afirmam
preocupados alguns comentaristas, que destacam a vulnerabilidade energética de
seu país. A retirada pela Argélia do seu embaixador em Madrid mais fez adensar este
panorama.
Outros
acreditam que há uma conspiração hispano-americana-marroquina, com o apoio de
Bruxelas, para empurrar os saharauis para os braços do regime.
Pode
haver algo verdadeiro, e também muito falso, nesses comentários. Mas o
importante é a incapacidade do governo espanhol de entender a idiossincrasia –
uma palavra que os espanhóis adoram – do Makhzen marroquino e dos líderes
argelinos.
O
Palácio Real marroquino não abrirá mão de nada e não cederá nada à Espanha.
Depois do Sahara, virá a vez de Ceuta e Melilla, hoje asfixiadas
economicamente. Melilla foi privada da sua fronteira, velha de há muitas
décadas, em 2018 sem protesto do governo Sánchez.
Da
mesma forma, Rabat não retrocederá nas leis aprovadas pela Câmara dos Deputados
em 2019, que delimitam suas fronteiras marítimas com a Espanha sobrepondo-se às
das Ilhas Canárias.
O
regime de Mohamed VI, como o de Hassan II, só entende a relação de forças. A
Marcha Verde de 1975 e o assalto organizado a Ceuta em maio de 2021 são a
expressão desta política musculada.
Para
mostrar quem é o mestre do tempo, o Palácio Real marroquino – não La Moncloa –
anunciou primeiro a reviravolta espanhola.
Aparentemente,
nem Pedro Sánchez nem o pequeno grupo que o rodeia sabiam que a carta enviada
pelo Presidente do Governo ao rei Mohamed VI há algum tempo - e não nesse mesmo
dia como parecem acreditar em Espanha -, ia ser tornada pública pelos
marroquinos, sem notificarem os espanhóis.
A
vice-presidente do governo espanhol, Yolanda Díaz (do Unidas Podemos),
declarou-se surpreendida e frustrada com o anúncio, do qual repetiu que não
tinha tido conhecimento até que os marroquinos o tivessem noticiado na
imprensa.
E o
ministro espanhol dos Negócios Estrangeiros, José Manuel Albares, que se
encontrava de visita a Barcelona, teve de realizar uma conferência de imprensa
de emergência para confirmar o anúncio de Rabat. De acordo com testemunhas, Albares
parecia ter sido apanhado desprevenido. Ele provavelmente esperava que o
anúncio fosse feito em concertação com os marroquinos.
A
outra idiossincrasia que os anfitriões de La Moncloa não compreendem é a
argelina. Quando questionado sobre possíveis represálias argelinas após a
aceitação do plano de autonomia, o Ministro Albares fingiu acreditar que os
ganhos financeiros que Argel iria acumular ao aumentar o fornecimento de gás à
Europa o impediriam de cometer o ato irreparável: privar Madrid do seu
fornecimento de gás.
No
entanto, se os argelinos, habituados a levar o seu tempo antes de tomarem
decisões importantes, não fecharem a torneira do Medgaz, o gasoduto que liga a
Argélia a Espanha, darão sem dúvida preferência num futuro próximo ao Transmed,
o gasoduto que liga o seu país a Itália.
Quanto
a futuros investimentos conjuntos hispano-argelinos, é provável que sofram
desta raiva argelina que cresce a cada dia, se olharmos atentamente para as
interpelações e anúncios de Argel.
O
antigo embaixador espanhol em Rabat, Jorge Dezcallar, que foi também o antigo
chefe dos serviços secretos espanhóis (CNI), acaba de escrever um artigo deopinião no diário El País.
Este
conhecedor de Marrocos e do Makhzen, que concebeu o famoso "colchão de
interesses" (enquanto houver grandes investimentos espanhóis em Marrocos,
este último não se envolverá em hostilidades com Madrid), pergunta-se se a
decisão de Pedro Sánchez é um ato bem pensado ou uma estupidez. E ele parece
estar inclinado para este último.
(*) Ali
Lmrabet é jornalista marroquino, ex-repórter do diário espanhol El Mundo, para
o qual ainda trabalha como correspondente no Magrebe. Proibido de exercer a sua
profissão de jornalista pelas autoridades marroquinas, colabora atualmente com
vários meios de comunicação social espanhóis. Ppode segui-lo no Twitter:
@alilmrabet.
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