A
Amnistia Internacional (AI) acaba de publicar o seu Relatório anual 2021-2022.
Entretanto,
um ex-preso lançou no início do ano, em França, um livro esclarecedor: “No
coração de uma prisão marroquina”. Quem se submeteria voluntariamente a um regime
destes!?
A
experiência de um preso político
O
jornalista Hicham Mansouri, co-fundador da Associação Marroquina do Jornalismo
de Investigação (AMJI), nomeado no Relatório da AI no capítulo do “direito à
privacidade” pelo facto de ter sido uma das pessoas cujo telemóvel foi
infectado pelo programa de espionagem Pegasus, vendido a instituições públicas
de segurança de vários Estados pela empresa israelita NSO, conta assim como foi
a sua detenção:
“No
dia 17 de Março de 2015 uma amiga chega a minha casa por volta das 21h45.
Passados alguns minutos, pancadas na porta. Não estando à espera de visitas
imprevistas, ligo ao meu irmão Khalid para lhe perguntar se é ele, talvez se
tivesse esquecido das chaves. Diz-me que não, que está justamente a caminho de
casa.
A ou
as pessoas que estão atrás da porta não respondem aos meus “Quem é?”, e as
pancadas são cada vez mais insistentes e violentas. Telefono ao meu colega
Samad Aït Aicha. O nosso escritório fica apenas a cinco minutos a pé e ele diz que
chegará rápido. De repente, dez homens com uma figura imponente forçam a porta
do meu apartamento, atiram-se sobre mim, agridem-me violentamente e começam a
despir-me. Eu grito a pensar que vou ser morto ou violado. É nesse momento que
um deles grita: “Polícia! Polícia!”. Estão todos à civil. Querem também despir
a minha amiga, mas ela resiste e a seguir grita o mais forte que consegue que
lhe tiraram o vestido. O chefe diz então aos outros polícias que basta.
Obrigam-nos a deitar na cama e tiram-nos fotografias.
“Os
polícias fizeram uma rusga aos meus livros, documentos e roupas. Mais tarde
descobrirei que faltam dois livros e cerca de 6.000 dirhams. (. . . ).
“Levam-nos
a seguir, de carro, ao comissariado da polícia de Rabat. Vou algemado e só com
uma pequena toalha a cobrir-me. Uma vez no posto, os polícias encarregados do
interrogatório obrigam-me a ser fotografado nu. Fotografam mesmo o meu sexo.
Impedem-me de contactar os meus advogados, Abdelaziz Nouaydi e Naima El Gallaf.
Alertada pelo meu irmão Khalid e pelo meu amigo Samad Aït Aicha, a Dra. El
Gallaf dirige-se à esquadra de Rabat, mas os polícias dizem-lhe que não
prenderam ninguém com o meu nome. Ela contou isso ao juiz durante o meu processo.
“É a primeira vez que nos trazem para aqui alguém quase nu”, diz-lhe
discretamente um polícia mais tarde. (. . . ).
“A
acusação de que sou alvo é: “manutenção de um local de prostituição e
cumplicidade em adultério”! Um comunicado da prefeitura da polícia de Rabat,
divulgado pela MAP, a agência de informação oficial, precisa que a minha prisão
ocorreu ‘devido a instruções escritas do julgado competente, que pediu uma
investigação sobre a utilização de um apartamento para fins de prostituição com
a apresentação de todas as pessoas implicadas nesses actos criminosos.”
“A
quase totalidade do meu interrogatório, que dura dois dias, é sobre as minhas atividades,
as minhas relações profissionais e as minhas opiniões políticas. O
interrogatório é conduzido por, pelo menos, quatro ou cinco equipas em
diferentes salas do comissariado de Rabat. (. . . ).
“Fico
fechado durante dois dias num quarto obscuro situado no sub-solo, com numerosas
pessoas embriagadas e agressivas. Não me dão nenhuma refeição nem nenhuma cama,
e faz muito frio nesse mês de Março. De qualquer modo, não tenho apetite. No
primeiro dia, recusaram as roupas e a alimentação trazidas pela minha família.
A única sandes que foi autorizada a entrar no segundo dia dei-a aos meus
co-detidos, que me reclamaram que a partilhasse com eles.”
Durante
o julgamento foram evidenciadas diversas contradições. O juiz dispensava
rapidamente as testemunhas que não corroboravam ou mesmo contradiziam os factos
apresentados pela acusação.
“Apesar
de todas estas contradições e de outras reveladas pelo relatório de observação
do processo realizado pelos Advogados Sem Fronteiras (ASF), apesar do apoio do
conjunto de ONG de defesa dos direitos humanos e da liberdade de imprensa, fui
declarado, no dia 30 de Março de 2015, culpado de cumplicidade em adultério
pelo tribunal de primeira instância de Rabat no seguimento de um processo iníquo.
Fui condenado a dez meses de prisão e a uma multa de 20.000 dirhams marroquinos
(cerca de
2.000
euros). A sentença foi confirmada depois pelo recurso, a 27 de Maio de 2015.
Após um relatório publicado pelos Advogados Sem Fronteiras sobre o meu caso no
dia 15 de Janeiro de 2016, Nisma Bounakhla, a representante desta ONG em
Marrocos, foi expulsa a 20 de Fevereiro de 2016.”
Durante
dez meses Hicham Mansouri viveu na prisão de Salé (nos arredores de Rabat) e
continuou o seu trabalho profissional: dedicou-se, por um lado, a observar o
funcionamento geral do estabelecimento e, por outro, a recolher testemunhos e
factos sobre uma questão mais precisa: os tráficos que por ali passam, desde
canábis, a telefones portáteis. Conseguiu escrever um diário e fazer passar
para o exterior, através da roupa que entregava à família para lavar, 30 blocos
de notas. Foi a partir desse
manancial
de informação que agora foi publicado o livro “No coração de uma prisão
marroquina”.
Voltaremos
a ele, para compreendermos melhor como funcionam de forma coordenada os
sistemas político, económico, judicial, de segurança e prisional, de modo a
garantir a sobrevivência de um regime corrupto e autoritário.
“No
dia seguinte à minha saída da prisão, sabendo que seria visado por um outro
processo por ‘atentado à segurança interna do Estado’, tomei o primeiro avião
com destino a Tunis.”
O
Relatório da Amnistia Internacional
Este
Relatório cobre as violações de Direitos Humanos ocorridas em Marrocos e no
Sahara Ocidental - obra do mesmo aparelho repressivo - e abrange várias áreas:
liberdade de expressão e de associação; direito à privacidade; liberdade de
reunião; tortura e outros tratamentos degradantes; direito à saúde; direitos
das mulheres e das raparigas; direitos das pessoas LGBTI; e direitos dos
migrantes e refugiados. Em cada um destes contextos identifica casos concretos
que foram investigados e têm dados confirmados. Expomos aqui alguns, mais diretamente
ligados à falta de liberdades e garantias dos cidadãos e das cidadãs.
Liberdade
de expressão e de associação
“Novamente
durante este ano, defensores/as dos direitos humanos, jornalistas,
utilizadores/as de redes sociais, académicos/as e militantes foram reprimidos
no exercício legítimo da sua liberdade de expressão. Pelo menos sete pessoas
foram presas e/ou levadas à justiça por infracções ligadas à liberdade de
expressão. O professor universitário e militante dos direitos humanos Maati
Monjib que estava na prisão de El Arjat, perto de Rabat, a capital, foi posto
em liberdade provisória no dia 23 de Março. Sujeito desde Outubro de 2020 a uma
medida arbitrária de interdição de deixar o território, não pôde, em Outubro,
viajar até França como previsto, para comparecer numa consulta médica e visitar
a família.
“O
jornalista independente Omar Radi, que não poupava nas suas críticas às
autoridades, foi condenado em Julho a seis anos por espionagem e estupro, no
seguimento de um processo que não cumpriu as regras internacionais de equidade.
Em particular, não conseguiu exercer o seu direito a conhecer todos os
elementos apresentados contra ele de forma a poder contestá-los.
“Em
Setembro, o Tribunal de Primeira Instância de Marraquexe condenou Jamila
Saadane a três meses de prisão, por causa dos vídeos que ela publicou no
YouTube nos quais as autoridades marroquinas eram acusadas de cobrir redes de
prostituição e factos sobre tráfico de seres humanos em Marraquexe. Esta mulher
foi declarada culpada de ultrajar as instituições e difundir notícias falsas. “As
autoridades marroquinas continuaram durante todo o ano a violar os direitos
dos/as saharauis que militam a favor da independência, submetendo-os/as a maus-tratos,
a perseguições e procedendo a prisões. O jornalista saharaui Essabi Yahdih,
diretor do órgão informativo virtual Algargarat, foi preso em Maio no seu local
de trabalho no Sahara Ocidental. As autoridades interrogaram-no sobre as suas atividades
jornalísticas e acusaram-no de ter filmado um edifício militar em Dakhla, uma
cidade do Sahara Ocidental. Este homem foi condenado em 29 de Julho a um ano de
prisão e a uma multa.
Na
prisão de Dakhla foram-lhe recusados cuidados médicos para problemas de audição
e de vista dos quais padecia antes de ser preso. (. . . ).”
Liberdade
de reunião
“O
militante Noureddine Aouaj foi condenado em Julho a dois anos de prisão. Preso
em Junho depois de ter participado numa concentração pacífica de apoio aos
jornalistas presos Omar Radi e Soulaimane Raissouni, este defensor dos direitos
humanos foi acusado de ‘insultos às instituições constitucionais, aos
princípios e aos símbolos do reino’ e de ‘denúncia de crime fictícios’ e de ‘atentado
à autoridade judicial’. (...).”
Tortura
e outros tratamentos degradantes
“Várias
pessoas foram presas em condições extremamente duras, nomeadamente em
isolamento prolongado com duração indeterminada, em violação da proibição da
tortura e de outros maus-tratos.
“O
jornalista Soulaimane Raissouni, chefe de redação do jornal Akhbar Al Yaoum,
esteve detido em isolamento desde a sua prisão, em Maio de 2020. Em sinal de
protesto contra esta medida, começou a 8 de Abril uma greve de fome, à qual pôs
termo 118 dias depois.
“Condenado
em ligação com a manifestação de Gdeim Izik, Mohamed Lamine Haddi estava
submetido a isolamento desde 2017. Em Março, guardas da prisão acabaram com a
greve de fome que ele fazia para protestar contra os maus-tratos a que era
sujeito: alimentaram-no à força, o que é considerado um acto de tortura no
quadro do Direito Internacional.
“Membros
das forças de segurança assaltaram a casa de Sultana Khaya pelo menos três
vezes, em 2021. Esta militante saharaui declarou que, no decurso de uma destas
operações, em Maio, os agentes das forças de segurança lhe bateram e tentaram
violar com matracas, e agrediram brutalmente e violaram a sua irmã. No dia 15
de Novembro, membros das forças de segurança entraram em sua casa, violaram-na
e agrediram sexualmente as suas duas irmãs e a sua mãe de 80 anos.”
Direitos
das mulheres e das raparigas
“(. .
. ). Vítima duma campanha de difamação depois da cadeia de televisão ChoufTV
ter publicado, em Dezembro de 2020, um vídeo que pretendia mostrar uma suposta
relação extra-conjugal, a antiga polícia Wahiba Kharchich chegou aos Estados
Unidos em Janeiro. Esta antiga polícia tinha apresentado uma queixa, em 2016,
por assédio sexual por parte do seu superior, Aziz Boumehdi, chefe de uma unidade
de polícia de El Jadida, queixa à qual não foi dado seguimento.”
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