sábado, 18 de março de 2023

Foi assim que Trump ajudou Sánchez a contornar o Sahara Ocidental

Donald Trump e Pedro Sánchez, na cimeira da NATO, julho de 2018. EFE

 
O então presidente dos EUA vingou-se do senador Jim Inhofe, defensor da causa saharaui, por não ter introduzido emendas ao orçamento da defesa.

Ana Alonso - EL Independiente - 18/03/23

 

O senador republicano Jim Inhofe é um dos mais fortes defensores da causa saharaui nos Estados Unidos. Várias vezes durante o seu mandato, explicou a Donald Trump por que razão um referendo deveria ser apoiado. Se Trump já tinha ouvido falar do Sahara, foi graças a este veterano conservador que conhecia a situação nos acampamentos. Quando Trump teve uma discussão com Inhofe, ele sabia o que tinha de fazer para o magoar. A 10 de Dezembro, o presidente cessante dos EUA escreveu dois tweets. Num ele criticou o Senador Inhofe e no outro reconheceu a soberania de Marrocos sobre o Sahara [Ocidental].


Rabat tinha conquistado uma vitória histórica por um golpe de sorte. Na proclamação subsequente, Donald Trump alude à proposta de Marrocos sobre a autonomia do Sara e chama-lhe "a única base séria, credível e realista". Estes são os mesmos adjetivos utilizados na carta emitida pelo Reino de Marrocos a 18 de Março de 2022 sobre a nova posição do governo espanhol sobre o Sahara. A única diferença é que a carta de Moncloa fala de "a base mais séria, credível e realista".

Com esta reviravolta de 180 graus, Sánchez pretendia encerrar a crise diplomática desencadeada pela raiva de Rabat após a recepção humanitária em Espanhado líder saharaui Brahim Gali, para tratamento médico do Covid-19 em abril de 2021. Marrocos utilizou a arma migratória para provocar a chegada de cerca de 10.000 pessoas a Ceuta, nos dias 15 e 16 de Maio. Com a carta, o governo de Sánchez pôs fim a 47 anos de neutralidade ativa.

"A declaração de Trump elevou o nível das expectativas marroquinas. Assim, Rabat aumentou a pressão sobre a Alemanha, França e Espanha".

IRENE FERNÁNDEZ MOLINA, RRII UNIV. EXETER

"A mudança de posição foi o resultado de uma campanha de pressão por parte de Marrocos. Começou com a declaração de Trump e isso elevou o nível das expectativas marroquinas. Pensavam que outros países ocidentais seguiriam os EUA. Assim, Rabat aumentou a pressão sobre a Alemanha, França ou Espanha dentro da UE. Foi a Espanha, depois de Trump, que foi mais longe", diz Irene Fernández-Molina, professora de Relações Internacionais, especializada no Magrebe, na Universidade de Exeter.

A testemunhar esse momento em Washington estava Mouloud Said, o veterano representante da Frente Polisario nos Estados Unidos. O diplomata saharaui, que conhece o Senador Inhofe há mais de duas décadas, soube do ocorrido imediatamente. E o próprio senador contou-lhe o que tinha acontecido.

"A decisão não foi tomada numa reunião da Trump Administration. A razão foi que o presidente da Comissão de Defesa, o Senador Inhofe, ia apresentar a votação do orçamento da Defesa pouco antes de Trump o ter chamado para introduzir emendas de última hora. O senador disse-lhe que não o podia fazer porque o resultado, o resultado das negociações na Câmara dos Representantes e no Senado, e depois no comité conjunto, era a única possibilidade de ser aprovado. Trump persistiu e o Senador Inhofe confrontou o presidente. O último apelo terminou mal. E depois Trump afixou dois tweets, um contra Inhofe e um sobre o Sahara. Sem esse confronto, Trump não teria dado esse passo", explica Mouloud Said ao El Independiente.


O presidente cessante queria que Inhofe incluísse disposições no projeto de lei para revogar as proteções para as empresas de comunicação social e remover uma disposição para renomear as instalações militares com o nome dos líderes confederados. Mas o senador republicano Inhofe não o poderia fazer, mesmo que quisesse. Já era um negócio fechado. Trump ameaçou vetar o orçamento e, num tweet, acusou-o de ameaçar a segurança nacional. Ele ficou furioso por o senador o ter confrontado.

“A decisão foi o resultado de uma birra de Trump, que queria provocar a raiva do Senador Inhofe".

MOULOUD SAID, REPRESENTANTE DA FRENTE DA POLISARIO NOS EUA

"Trump sabia muito bem o quanto a questão do Sahara significava para Inhofe. Ele tinha explicado a situação a Trump várias vezes. A decisão foi o resultado de uma birra de Trump, que queria provocar a cólera do senador Inhofe. Quando ele me falou disso, ficou muito perturbado", acrescenta o diplomata. "Até esse momento", relata Mouloud Said, "as relações com a administração Trump foram sem precedentes e houve contactos ao mais alto nível, com o Conselho Nacional de Segurança". Ele recorda como foi a Administração Trump que propôs no Conselho de Segurança da ONU prolongar a missão da MINURSO de seis em seis meses, em vez de um ano, a que Marrocos se opôs.

 

Jared Kushner com Mohamed VI

O genro de Donald Trump, o judeu Jared Kushner, com o cargo de conselheiro especial na sua administração, juntamente com o seu braço direito Avi Berkowitz, foi um defensor da aproximação com Marrocos. O ex-director adjunto da Mossad Ram Ben Barak e o empresário judeu marroquino Yariv Elbaz procuraram um acordo multilateral quid-pro-quo pelo qual Marrocos normalizaria as relações com Israel em troca do reconhecimento pelos EUA do estatuto marroquino do Sahara. No entanto, segundo o diplomata saharaui, Trump tinha dito a Kushner para procurar um caminho alternativo.

Em maio de 2019, o genro de Trump encontrou-se com o empresário judeu marroquino Elbaz em Marrocos. Nessa viagem, Kushner teve a oportunidade de falar com o rei Mohamed VI, que lhe explicou a importância do Sahara Ocidental para Marrocos. Desde então, desenvolveu-se um fio condutor entre a equipa do ministro dos Negócios Estrangeiros marroquino Nassem Bourita e a equipa de Kushner. SegundoAxios, Bourita realizou várias reuniões nas quais discutiu o Sahara com Kushner e Ivanka Trump, sua esposa, e visitou a Casa Branca.

O chefe da diplomacia marroquina chegou a um acordo com Kushner, mas encontrou a forte oposição do então Conselheiro de Segurança Nacional John Bolton e do Senador Jim Inhofe. Como Trump precisava do apoio de Inhofe, ele não deu qualquer passo.

Mas a 10 de dezembro Trump, quando escreveu o tweet sobre a marroquinidade do Sahara, estava já de saída, embora se tenha recusado a reconhecê-lo. De facto, dias mais tarde, teve lugar o assalto ao Capitólio. A embaixada marroquina condecorou Trump e Kushner após esse ataque ao edifício legislativo em Washington, encorajado pelo presidente e perpetrado pelos seus furiosos apoiantes.

Na opinião de Bolton, a decisão de Trump deitou por terra os saharauis "após três décadas de apoio dos EUA à autodeterminação livre através de um referendo para o povo saharaui". Ele recorda mesmo num artigo no Política Externa como o Senador Inhofe já dizia que "este acordo poderia ser feito sem falhar aos direitos do povo sem voz".

Bolton sublinha igualmente como Trump não consultou nem a Frente Polisario nem a Argélia ou a Mauritânia, os dois países mais afetados por esta mudança. Sánchez também não falou com o seu parceiro de governo, a oposição, ou com a Argélia, país com o qual a Espanha tem agora um conflito com graves repercussões económicas.

O diplomata saharaui afirma que ele também não falou com o seu genro nem com os seus conselheiros, embora a versão de Axios seja a de que aproveitaram a ocasião para impulsionar as suas teses.

 

O papel da Administração Biden

Nos Estados Unidos, a causa saharaui goza de apoio dos dois partidos. O diplomata saharaui aponta como o Senador Ted Kennedy foi um dos primeiros democratas com quem teve contacto e defendeu a autodeterminação. "Aí está uma causa sem ideologia, pelo que é compreensível que um conservador convicto como Inhofe tenha sido um dos nossos grandes apoiantes", acrescenta ele.

O exemplo deste apoio bipartidário é a carta de 27 senadores democratas e republicanos, incluindo o então Presidente do Senado Patrick Leahy, pedindo-lhe que inverta a decisão do seu antecessor sobre o Sahara.

A Administração Biden ainda não o fez até agora. Mas também não fez progressos. "Não implementou os compromissos de Trump, tais como a abertura do consulado em Dakhla. Além disso, obrigou Rabat a aceitar um enviado especial da ONU e solicitou ao Conselho de Segurança da ONU que reativasse o plano da ONU", diz Mouloud Said.

“A transação do Trump não foi concluída porque nem Marrocos abriu uma embaixada em Israel nem Israel reconheceu a soberania marroquina sobre o Sahara".

HAIZAM AMIRAH FERNANDEZ, R.I.ELCANO

Haizam Amirah Fernández, investigador do Elcano Royal Institute, subscreve este ponto de vista: "A Administração Biden fala de 'uma abordagem potencial' ao que Rabat propõe e defende uma solução no quadro das Nações Unidas. E não esquecem as aspirações do povo saharaui. O compromisso de Trump não foi finalizado porque nem Marrocos abriu a embaixada em Israel nem Israel reconheceu a soberania de Marrocos sobre o Sahara, para evitar conflitos com outros países que os apoiam".

O diplomata saharaui afirma que para a atual administração dos EUA, a decisão de Trump não é a solução. "Nos nossos contactos, que existem, ao contrário do que acontece com o governo espanhol, em que já não confiamos, asseguram-nos sempre que uma solução que a Polisario não aceita não é uma solução válida". E acrescenta: "Os americanos são muito ativos e querem desempenhar um papel, algo que este governo espanhol já não será capaz de fazer. Sánchez não contou nem com os seus parceiros de coligação, nem com o Congresso, nem com o povo espanhol. É um assunto de Sánchez e do seu ministro dos Negócios Estrangeiros".

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