terça-feira, 19 de janeiro de 2021

Marrocos subordina o seu relacionamento com Espanha à posição dos EUA no Sahara Ocidental

 

Mohamed VI recebeu a 22 de dezembro uma delegação norte-americana-israelita dias
depois de cancelar a cimeira com Espanha, prevista para 17 do mesmo mês (foto MAP)

Rabat pressiona o Governo espanhol para que reconheça a sua soberania sobre aquele território ou, pelo menos, apoie publicamente, tal como a França, a solução de ‘autonomia’ que defende para resolver o conflito.

Por Ignacio Cembrero (*) - El Confidencial 19/01/2021


Os artigos publicados expressam as visões e os pontos de vista dos seus autores, não necessariamente as posições da AAPSO


O Marrocos subordina o bom relacionamento com a Espanha à atitude que o governo tiver em relação à minha traçada pelos EUA, que no mês passado reconheceram a soberania marroquina sobre o Sahara Ocidental, segundo referem fontes diplomáticas familiarizadas com a relação bilateral. Em troca deste reconhecimento, Marrocos concordou em estabelecer relações diplomáticas com Israel.

O Sahara Ocidental foi uma colónia de Espanha até 1975, altura em que o país entregou a Marrocos, dois terços, e à Mauritânia, um terço do território. A Frente Polisario, considerada a representante da população saharaui, iniciou então uma guerra que obrigou a Mauritânia a retirar-se do seu território, o que levou Marrocos a dele se apoderar. Em 1991, graças a uma mediação da ONU, Rabat e a Polisario chegaram a um acordo que previa um cessar-fogo e um referendo sobre a autodeterminação da população saharaui que não foi realizado devido aos obstáculos colocados por Marrocos.

O ministro marroquino das Relações Exteriores, Nasser Bourita, deu uma entrevista coletiva na última sexta-feira na qual secretamente instou a Espanha a seguir o caminho dos EUA ou, pelo menos, a apoiar a proposta de solução marroquina, que consiste em conceder Sahara uma autonomia, mas sob a soberania marroquina. Bourita mudou repentinamente do árabe para o francês sem que nenhum jornalista desse idioma fizesse uma pergunta durante a conferência de imprensa. O ministro dirigiu-se à imprensa no final de uma conferência virtual, convocada conjuntamente pela diplomacia norte-americana e marroquina, em apoio à proposta de Rabat de conceder ao Sahara uma autonomia limitada. “A Europa deve sair da sua zona de conforto e seguir a dinâmica dos EUA”, que reconhece “a soberania de Marrocos sobre o Sahara e apoia a autonomia”, disse Bourita em francês, dirigindo-se assim a toda a União EuropeiaE. "A posição dos EUA deve desafiar a Europa", acrescentou o ministro, que co-presidiu à reunião com David Schenker, secretário de Estado adjunto dos EUA para o Médio Oriente e Norte de África.

“Uma parte da Europa deve ser ousada, porque está perto desse conflito”, continuou numa clara alusão à Espanha. Mais tarde, perante o correspondente da agência (espanhola) EFE, foi mais direto: “É preciso perguntar [à Espanha] por que não estava lá”, frisou. “Numerosos observadores constataram que a Espanha prima pela ausência, o que foi lamentado por um bom número de diplomatas marroquinos”, sublinhou o jornal digital 'Le 360', o mais próximo do palácio real. A França foi o único país europeu a participar da conferência. Marrocos já adiou para fevereiro, por motivos sanitários, a cimeira bilateral com a Espanha marcada para 17 de dezembro, cuja convocação havia sido solicitada por seu chefe de governo, Saaedine el Othmani, e anunciada no Twitter. No mês que vem, porém, também não será realizada essa reunião entre os dois governos. Houve duas razões para, na prática, cancelar a cimeira hispano-marroquina. A delicada saúde do rei Mohamed VI, que sofre de doença pulmonar obstrutiva crónica (DPOC)(**) e tem pouca atividade, embora no dia 22 de dezembro tenha recebido uma delegação norte-americana-israelita chefiada por Jared Kuschner, (genro e) assessor do presidente Donald Trump.


O chefe do Governo de Espanha, o socialista Pedro Sanchez,
em visita a Mohamed VI, novembro de 2018

O palácio real marroquino também agora vincula a convocatória da cimeira a que a diplomacia espanhola faça um gesto em relação ao Sahara. Aos olhos de Rabat, a posição da Espanha é importante, porque é a ex-potência colonial. O último parecer jurídico, elaborado em 2002 por Hans Corell, Secretário-Geral Adjunto da ONU para Assuntos Jurídicos, chega a considerar que a Espanha continua a ser a potência administrante do território, embora não possa exercê-lo. Se a Espanha mudar de posição, poderá arrastar grande parte da UE, na opinião das autoridades marroquinas.

A negociação entre Rabat, Washington e Tel Aviv para que os marroquinos estabelecessem relações com Israel em troca dos EUA reconhecerem a soberania sobre Sahara — foi o primeiro país ocidental a fazê-lo — e abrirem um consulado em Dakhla (antiga Villa Cisneros) teve início no final do Verão passado. Foi a partir de então que a emigração marroquina para as Ilhas Canárias aumentou fortemente — a maioria dos 23 mil emigrantes ilegais que desembarcaram no arquipélago em 2020 são marroquinos —, partindo principalmente do litoral da ex-colónia deixado pelas forças de segurança praticamente sem controle. Alguns diplomatas espanhóis estão se perguntando se Rabat abriu a torneira da emigração clandestina massiva do Sahara — algo inédito até então — para começar a pressionar a Espanha.

Até dezembro, Marrocos não aceitava repatriações dos seus imigrantes que chegavam às ilhas. Depois de uma visita a Rabat, no final de novembro, do Ministro (do Interior) Fernando Grande-Marlaska, começou a fazê-lo, mas a conta-gotas: entre 60 a 80 por semana, cada um acompanhado por um par de polícias espanhóis em aviões da Royal Air Maroc. O Ministério do Interior paga as passagens de todos eles e as PCR [testes à Covid-19] a que são submetidos antes de viajar. Desde os tempos em que José Luis Rodríguez Zapatero era primeiro-ministro, sucessivos executivos espanhóis apoiaram a proposta marroquina de autonomia de forma encoberta e encapotada, apesar de sua escassa credibilidade.

A proposta de Rabat, formulada em 2007, não é semelhante nem nada que se pareça à autonomia de que gozam as comunidades em Espanha e, além disso, também não prevê garantias internacionais que obriguem a respeitá-la. Dezenas de ativistas saharauis estão presos no Sahara e em Marrocos, e muitos outros estão sujeitos a censuras ou restrições, o que não cria um clima propenso ao estabelecimento de uma autonomia aceite pela população autóctone. Os relatórios das ONGs de direitos humanos sobre o Sahara são devastadores para as autoridades marroquinas.


imigração ilegal a partir das costas do Sahara Ocidental: a pressão marroquina


As autoridades espanholas, especialmente as socialistas, tomaram iniciativas discretas para ajudar Marrocos ao longo dos anos. Luis Planas, embaixador da Espanha em Rabat (2004-2010), ofereceu-se, por exemplo, para melhorar a proposta marroquina de autonomia, de acordo com os cabogramas do Wikileaks. A diplomacia espanhola sabotou, em 2013 nas Nações Unidas, a tentativa do secretário de Estado dos EUA, John Kerry [responsával pela pasta do Clima na futura administração do presidente Joe Biden], de ampliar o mandato da MINURSO, contingente da ONU implantado no Sahara, para que fiscalizasse o respeito pelos direitos humanos. Os advogados do Estado espanhol fizeram causa comum com os dos 'lobbies' marroquinos para enfrentarem no Tribunal de Justiça da UE os da Polisario nas disputas sobre a aplicabilidade dos tratados agrícolas, de pesca e aéreos ao Sahara Ocidental. Em todas as suas recentes declarações sobre o Sahara Ocidental, a ministra das Relações Exteriores, Arancha González Laya, insistiu na necessidade de "garantir a manutenção do cessar-fogo" na região, mas não lembrou que a realização de um referendo está por fazer. O segundo vice-presidente, Pablo Iglesias [do Unidas Podemos], tem insistido nisso no Twitter, pondo assim em relevo as divergências no seio do governo.

Rabat aspira, no entanto, a que a diplomacia espanhola passe do apoio velado ao público, e que se não se alinhar com os Estados Unidos, pelo menos o faça com a França, que não esconde a sua simpatia pela autonomia. Assim, coloca o governo de Pedro Sánchez em apuros, relutante em modificar a posição da Espanha, mas ansioso para evitar tensões com seu vizinho do sul. A presença de Podemos no Executivo, muito apegado à autodeterminação dos saharauis, também dificulta qualquer mudança. O fim da era Trump foi uma espécie de lua de mel entre Marrocos e os Estados Unidos. No mesmo dia em que o Departamento de Estado co-patrocinou a conferência de apoio à autonomia, Trump concedeu a Mohamed VI a Legião de Mérito, com o posto de Comandante-em-Chefe, “por sua visão e coragem pessoal para retomar o contacto com o Estado de Israel ”. O monarca, por sua vez, condecorava o presidente americano com o Wissam Al-Mohammadi. Esta repentina amizade entre a Casa Branca e o palácio real levou a imprensa marroquina, apoiada em parte pela espanhola, a especular que o Pentágono abriria uma base militar no sul de Marrocos ou no Sahara e até mesmo transferiria a base de Rota (Cádiz). David Schenker negou-o categoricamente no Twitter em 8 de janeiro. No Pentágono, o debate é mais sobre a transferência do Africom, o seu comando militar para a África, para a base de Rota, cuja sede provisória é hoje em Stuttgart (Alemanha).

Resta saber se, após a sua posse, o presidente democrata Joe Biden preservará o legado de Trump no Magrebe. Alguns 'pesos pesados' republicanos, como o ex-secretário de Estado James Baker ou o ex-conselheiro de Segurança Nacional John Bolton, pediram-lhe que revertesse a decisão de Trump sobre o Sahara, mas isso provavelmente implicaria que Marrocos esfriaria o seu relacionamento com Israel. Por esse motivo, é improvável que Biden faça marcha atrás.

 

(*) - Ignacio Cembrero é um veterano na cobertura jornalística da região do Norte de África. Foi correspondente do El Pais durante mais de 20 anos, trabalhou depois no El Mundo, e colabora agora no El Confidencial. As suas opiniões merecem ser lidas ou escutadas já que é, seguramente, um dos jornalistas mais bem informados sobre a região na Península Ibérica. Autor de vários livros sobre a região.


(**) - A Doença Pulmonar Obstrutiva Crónica (DPOC) é uma doença respiratória muito incapacitante, caracterizada por uma obstrução progressiva das vias aéreas, associada a uma resposta inflamatória do aparelho respiratório, com repercussões sistémicas. O diagnóstico é feito através de espirometria, um exame simples que mede o fluxo de ar nos pulmões. O tabaco é responsável 80 a 90% dos casos.

 Embora possa manter-se estável durante algum tempo, a DPOC progride, naturalmente, para estádios cada vez mais graves (A, B, C e D). A doença está associada a várias complicações graves.

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