sexta-feira, 4 de junho de 2021

Bernabé López: “Marrocos mostrou o pior de si mesmo”

Um prestigiado arabista

 

JOAQUÍN LUNA 04/06/2021 - La Vanguardia

 

Entre Tunes e Madrid, Bernabé López García (Granada, 1947) olha para a crise hispano-marroquina com uma vantagem: nada do que aconteceu nos últimos 50 anos no Magrebe lhe é estranho. Professor honorário na Universidade Autónoma de Madrid, ele é um dos mais sólidos árabistas espanhóis e autor de numerosos livros sobre o tema, tais como “Historia y memoria de las relaciones hispano-marroquíes” e “Marruecos y España, una historia contra toda lógica”.

 

MARROCOS

"Com Ceuta, deram a imagem de um país em que não se pode confiar"

 

Tem estudado, para além do presente, todas as crises hispano-marroquinas desde a Marcha Verde de 1975. O que é que este episódio tem de único?

Ainda estamos no túnel porque o episódio ainda não terminou. Mas voltando à história, fico com a impressão de que se trata da maior crise desde a de Perejil em 2002. Como então, tem respondido ao mal-estar marroquino sobre certas declarações e gestos, mas a resposta tem sido desproporcionada. Soltar dez mil pessoas, sem mais nem menos, para entrarem em Ceuta atraiu a atenção de todo o mundo. Sem dúvida, teve o efeito oposto do desejado. Basta recordar o editorial no “Le Monde”. Eles deram a imagem de um país em que não se pode confiar. Mostrou o pior de si mesmo.

 

Marrocos nunca se tinha atrevido a uma ação semelhante. Será devido ao apoio recebido pelos Estados Unidos em Dezembro, quando Donald Trump abençoou a marroquinidade do Sahara?

Sem dúvida, a decisão do Presidente Trump de reconhecer o Sahara como mais um território de Marrocos criou neles um sentimento de impunidade, o que ajuda a compreender a forma encorajada como se opôs ao ponto de vista da Espanha, uma pressão que eles também exerceram sobre a UE. Basta olhar para a suspensão das relações com a Alemanha no início de Março, também por causa do Sahara. Já era um aviso do que poderia estar para vir na nossa direção.

 

O que é que Marrocos conseguiu ao causar esta crise de uma forma clara e não muito discreta?

O principal objectivo de Marrocos era realçar as ambiguidades internacionais sobre o Sahara e fazer esquecer aquilo em que não está interessado: a solução reside num acordo entre as partes. A hospitalização em Espanha de Brahim Gali foi uma desculpa que lhes serviu como uma luva. Mas eles têm sido excessivamente encorajados e por isso têm agido. O seu segundo erro, na minha opinião, é terem ido demasiado longe na demonização da Frente Polisario, que eles querem equiparar a uma organização terrorista, quando esta é a outra parte no conflito reconhecida pelas Nações Unidas. Fecharam a porta a uma solução.

 

FRENTE POLISARIO

"Foram longe demais na sua ânsia de a diabolizar: a ONU reconhece-a como uma parte".

 

Falando das Nações Unidas e do Sahara: desde que o antigo Secretário de Estado James Baker deixou o seu Plano, fruto dos esforços diplomáticos entre 1997 e 2003 como enviado pessoal do SG da ONU, e que Marrocos boicotou, não houve notícias da ONU: podemos ainda esperar alguma coisa do organismo responsável pela descolonização?

A verdade é que desde 2003 e o Plano acima mencionado, a ONU tem demonstrado inação e passividade absolutas. Limita-se a aprovar resoluções descafeinadas, muito ao gosto de Marrocos. Pouco se pode esperar das Nações Unidas em relação ao futuro do Sahara, quando nem sequer é capaz de nomear um representante especial. Veremos se esta crise a encorajará a repensar algumas coisas.

 

Entre esta passividade da ONU e o apoio dos EUA, não é surpreendente que Rabat atue ainda com mais beligerância?

Vejamos o que acontece de agora em diante. De momento, as manobras militares conjuntas com os Estados Unidos, Africa Lion, (previstas para começar na próxima segunda-feira) terão lugar em zonas de Marrocos, mas não no Sahara, como havia alardeado próprio Primeiro-ministro Al Othmani. Há que perguntar se este não será um bom gesto para desencorajar Marrocos.

 

A que líder compararia Brahim Gali para aqueles que não têm ideia sobre o seu carácter?

Marrocos cometeu um baixeza com Gali, um perfil cinzento, que de tanto o denegrirem acabaram por fabricar um perfil de guerrilheiro mítico. A Argélia explorou-o rapidamente, há a imagem do seu presidente, rodeado de militares, visitando-o como se ele fosse um herói. Conheci-o quando ele era o representante da Frente Polisario em Madrid e ele tinha um perfil bastante discreto. Não era certamente um caudilho. O tiro saiu pela culatra a Marrocos.

 

O lobby marroquino no estrangeiro está a tornar-se cada vez mais poderoso...

Sem dúvida. E devemos ter em conta a relação judaico-marroquina, dois lobbies que se têm               alimentado mutuamente desde os tempos do Rei Hassan II até se juntarem no recente Acordo de Abraão, o que na prática significa aceitar a marroquinidade do Sahara em troca do pleno reconhecimento de Israel. Isto, tal como a abertura das fronteiras, tem sido mais um bomerangue para Marrocos, uma vez que tem realçado as ambiguidades com Israel, razão pela qual, a título de compensação, o governo marroquino tenha felicitado publicamente o Hamas pela sua "vitória" em Gaza. Houve provavelmente um puxão de orelhas por parte da casa real e da sua comitiva, o poder oculto do Makhzen.

 

Como interpreta o silêncio da França nesta crise?

Este silêncio é significativo em si mesmo. É uma mudança em relação às crises anteriores, quando a França deixou clara a sua relação especial com Marrocos. Desta vez, denota prudência. Desde a presidência de François Hollande (2012-2017), a França tem manifestado o desejo de se dar bem com a Argélia, algo que enfurece Marrocos, que receia perder o seu grande apoiante. As relações também arrefeceram consideravelmente em 2014 após uma tentativa judicial de processar o homem forte da segurança Abdelatif Hammuchi por tortura, o que levou à suspensão durante um ano da cooperação em matéria de segurança, uma questão-chave. Mas o peso de Marrocos é tão forte que um ano mais tarde Hammuchi foi condecorado pelo Eliseu.

 

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