domingo, 5 de março de 2023

Brahim Ghali ao Público: “Se o conflito do Sara se resolvesse com Guterres na ONU ele entrava para a história”

 


Líder sarauí desde 2016, Brahim Ghali acusa Pedro Sánchez de “repetição da traição de 1975”, quando Espanha permitiu a Marrocos ocupar a região.

Sofia Lorena, jornalista do PÚBLICO, entrevistou o líder saharaui na véspera do 47.º aniversário da proclamação da República Árabe Saharaui Democrática (RASD), no preciso momento em que a Espanha, potência colonial, anunciava oficialmento o abandono do território e do seu povo.

 

PÚBLICO - Sofia Lorena -. 27 de Fevereiro de 2023

 

Aos 73 anos, Brahim Ghali acaba de ser reeleito para um terceiro mandato na liderança da Frente Polisário e da República Árabe Sarauí Democrática (RASD). O congresso de Janeiro aprovou uma estratégia de intensificação da guerra contra Marrocos, reiniciada em Novembro de 2020. “Uma intensificação significa, claro, fazer com que o inimigo sofra o máximo de perdas humanas, materiais e morais possíveis”, afirmou numa entrevista ao PÚBLICO e ao Expresso, em videoconferência, a partir de Rabouni, capital administrativa dos acampamentos de refugiados sarauís de Tinduf, no deserto argelino.

A RASD foi proclamada há exactamente há 47 anos pela Polisário, o movimento de libertação que a ONU reconhece como representante dos sarauís.

 

No relatório de Outubro sobre o Sara Ocidental, o secretário-geral das Nações Unidas apela a todas as partes para renunciarem às condições prévias a uma solução pacífica. Interpreta este pedido como um apelo para repensar também a exigência de um referendo?

Avaliámos o recente relatório do secretário-geral e os seus apelos, que não são inéditos. A Frente Polisário e a República Sarauí responderam consistentemente aos pedidos do secretário-geral da ONU para implementar a lei internacional. Para nós, a solução diplomática ainda está em cima da mesa e continuará a estar. Mas isto requer que o secretário-geral e o seu enviado pessoal [Staffan de Mistura] exerçam pressão suficiente sobre a parte obstrutora, o reino de Marrocos, para cumprir a legalidade internacional, respeitar as resoluções do Conselho de Segurança e o plano de paz da ONU de 1991.

 

No Congresso de Janeiro, aprovou-se uma estratégia de intensificação da luta armada. Como é que essa estratégia se vai pôr em prática?

O 16º Congresso da Polisário estabeleceu claramente as prioridades que consistem em preparar todas as condições necessárias e todas as capacidades nacionais sarauís para incentivar a luta e o combate contra a ocupação expansionista e injusta da ocupação marroquina.

Há quase três anos que estamos numa guerra, que nos foi imposta pelo invasor e depois de termos esperado durante quase 30 anos que a comunidade internacional cumprisse as suas obrigações através das Nações Unidas e permitisse ao povo sarauí exercer o seu direito inalienável à autodeterminação. Sabemos que a vitória está próxima porque muitos povos combateram e resistiram e triunfaram antes de nós, como o povo de Timor-Leste. Os sarauís vão intensificar a sua luta e resistência recorrendo a todos os meios legítimos.

 

Mas com que tipo de acções vão intensificar a luta? Com ataques a barcos pesqueiros, por exemplo, como nos anos 1970 e 80?

Este movimento de libertação está a lutar uma guerra de libertação, escolhendo as tácticas que servem os seus objectivos, escolhendo o lugar e o momento, o tipo de batalha e o tipo de combate e de ataques que exerce. Não vou entrar em mais detalhes.

 

Claro que não nos vai dizer quando e o que vão fazer. Mas quando dizem que têm de usar todos os meios e reunir todas as condições estamos a falar de quê? Precisam de mais armas, de outras armas, de outros meios?

Estamos em circunstâncias especiais da nossa luta nacional e avançamos com passos bem estudados e claros e com tácticas bem pensadas para nos adaptarmos aos novos objectivos. Isso implica dispor dos meios apropriados, de uma táctica e de planos apropriados. Uma intensificação significa, claro, fazer com que o inimigo sofra o máximo de perdas humanas, materiais e morais possíveis. Estamos a combater uma guerra de desgaste, impondo perdas morais e materiais à economia do adversário.

Como há um desequilíbrio de forças entre os poderes de libertação e os poderes coloniais, sabemos que estamos numa luta longa, só assim se afecta o moral, o poder militar e a economia do inimigo. Esta não é a nossa primeira guerra com Marrocos, lutámos contra eles 16 anos, conhecemos o Exército marroquino, os seus planos e as suas capacidades.

 

Mas a luta armada serve para conseguir melhorar a vossa posição nas negociações e não tem havido melhorias, Marrocos nem sequer admite que há uma guerra. Como espera obter progressos reais?

Mesmo se o regime de Marrocos nega a existência da guerra, há perdas significativas, humanas e materiais. E há um impacto moral nos soldados, ao longo do muro e dentro do território sarauí.

 

No último ano, o principal acontecimento no conflito foi a mudança política em Espanha, com o abandono da neutralidade por parte do Governo de Pedro Sánchez, ao apoiar o plano de autonomia marroquino para o Sara. Que consequências é que essa mudança ainda pode ter para os sarauís?

O apoio de Espanha a Marrocos é ilógico, é quem não tem a dar a quem não merece. Marrocos não propôs nada a Sánchez, a proposta [do plano de autonomia] foi-nos feita a nós, sarauís, e nós rejeitámo-la completamente. O apoio de Sánchez à posição marroquina significa colocar-se ao lado do agressor contra a vítima, do mais forte contra o mais vulnerável, está fora de toda a lógica e, sobretudo, do que prevê a justiça.

Foi Espanha que criou o problema e, infelizmente, sucessivos governos só deitaram lenha para a fogueira em vez de trabalharem para resolver o problema. Com o seu apoio à autonomia, à ocupação, Sánchez decidiu uma vez mais ser parte do problema, em vez de ser parte da solução. A posição de Sánchez é uma nova traição ao povo sarauí, uma repetição da traição de 1975, quando Espanha abandonou as suas obrigações internacionais perante o povo sarauí, em vez de nos ter permitido exercer o nosso direito legítimo e inalienável à autodeterminação.

Esta nova posição não muda em nada o estatuto jurídico de Espanha no Sara Ocidental – o país continua a ser considerado pelas Nações Unidas como potência administradora do território, a sua ex-colónia –​ nem altera as suas responsabilidades morais e, sobretudo, jurídicas.

Esta posição de Sánchez só reforça o nosso agradecimento à sociedade civil de Espanha, que sempre mostrou todo o seu apoio e solidariedade com o Sara Ocidental, opondo-se a esta política de Sánchez e a políticas anteriores. Mas claro, o que queremos é que haja uma rectificação desta posição. E olhando para a Península Ibérica, esperamos que Espanha acabe por assumir a sua responsabilidade, a exemplo do que fez Portugal com a sua ex-colónia de Timor-Leste.

 

Falou em rectificação por parte de Espanha. Estão em diálogo com o Governo? O que é que será preciso para uma nova alteração de posições?

Espanha tem de assumir as suas responsabilidades como potência administradora, apoiando um povo em vias de descolonização.

 

"É o que dizemos hoje aos espanhóis, têm de exercer pressão suficiente para que o vosso Governo acabe por adoptar a vossa posição"

Brahim Ghali

 

Mas o que é preciso para Espanha deixar de apoiar Marrocos?

A solidariedade dos espanhóis com a causa e o povo sarauís de que falava antes tem de se traduzir em pressão. E aí o melhor exemplo vem mesmo de Portugal, onde foi a pressão e a solidariedade da sociedade civil que acabou por influenciar a posição do governo sobre Timor. É o dizemos hoje aos espanhóis, têm de exercer pressão suficiente para que o vosso Governo acabe por adoptar a vossa posição.

E aqui não falamos só das pessoas, a posição de Sánchez também foi condenada nas duas câmaras do Parlamento e por vários partidos da oposição. A minha grande esperança é que a opinião pública espanhola provoque uma reavaliação da posição vergonhosa adoptada o ano passado por Espanha.

 

Como estão as relações da Frente Polisário com a Rússia, tradicionalmente boas? A guerra na Ucrânia afectou esta relação? Há possíveis apoios da Rússia à Polisário?

A relação com a Rússia, tal como com os norte-americanos, é boa. Temos boas relações com todos os países que não se alinharam com Marrocos. A principal consequência que o conflito na Ucrânia poderia ter, para nós, seria despertar a consciência internacional para esta política de dois pesos e duas medidas, perceber como isso é inaceitável. Recordar que o povo sarauí foi vítima de uma agressão e é vítima de uma ocupação, pedindo a estes países que agora têm posições tão claras sobre alguns conflitos que clarifiquem as suas posições no Sara Ocidental, denunciando a ocupação e exigindo o regresso à legalidade.

 

No fim de 2021, disse-me que esperava mais de um secretário-geral da ONU português. Estamos em 2023: ainda espera alguma coisa de António Guterres ou pensa que só haverá progressos no Sara Ocidental com um novo secretário-geral?

Estávamos muito optimistas com a escolha de António Guterres, tínhamos muitas esperanças, especialmente por causa do papel determinante que assumiu em relação à causa de Timor-Leste enquanto primeiro-ministro português. Mas com o tempo, essa esperança foi-se desvanecendo.

Guterres ainda tem tempo para fazer justiça ao povo sarauí, ele representa a comunidade internacional e toda a doutrina e responsabilidade que as Nações Unidas têm em relação ao Sara Ocidental. O povo sarauí chegará seguramente aos seus objectivos, não sei quando, mas para nós é apenas uma questão de tempo. Conseguir chegar ao fim deste conflito com este secretário-geral seria melhor, se não, chegaremos com outro. Se o conflito do Sara se resolvesse com Guterres na ONU ele entrava para a história.

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