sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

“O Governo espanhol está a levar a cabo uma campanha frenética contra o povo saharaui”


Bucharaya Beyun, membro da direcção nacional da Frente Polisario e delegado saharaui para Espanha, recebeu a jornalista Tatiana Escárrga, do jornal online www.portal.ajintem.com uns dias depois da última ronda de negociações entre a Frente Polisario e Marrocos, realizadas nos EUA. Beyun critica a postura espanhola face ao conflito e assegura que os saharauis estão dispostos a voltar às armas se não se realizar o referendo, através do qual os saharauis possam alcançar a autodeterminação. “A chantagem permanente que Marrocos exerce sobre Espanha é inadmissível”, afirma.

Realizou-se mais uma ronda encontros entre a Frente Polisario e Marrocos nos Estados Unidos, sob os auspícios da ONU mas, como sempre, não se avançou. Quais as suas expectativas relativamente a futuras conversações?
As reuniões não vão dar em nada porque quando Marrocos aceitou negociar não o fez com a vontade sincera de alcançar uma solução. Aqueles que apoiam Marrocos — Espanha incluída —, não queriam uma saída negociada, antes colocar o conflito sob o chapéu-de-chuva da ONU e, assim, obrigar a Polisario a aceitar as condições marroquinas, apesar do conteúdo da resolução falar de ir para negociações sem condições prévias. Estas reuniões têm por base a rejeição de Marrocos à realização de um referendo. A ONU criou a MINURSO, que é a missão para o realizar e foram feitos todos os trabalhos técnicos, inclusive um censo eleitoral para determinar quantos saharauis podiam votar. Determinou-se que eram cerca de 85 mil pessoas, das mais de 200 mil que se apresentaram como candidatas.

Mas a Ministra dos Negócios Estrangeiros de Espanha, Trinidad Jiménez, assegurou recentemente que para a Frente Polisario seria complicado estabelecer um censo eleitoral.
Isso é completamente falso. Não é verdade. É um argumento esgrimido para defender a tese marroquina de que o referendo não é possível por razões técnicas. Os impedimentos existentes são a falta de vontade política que tem Marrocos, confortado pelo apoio de Espanha e de França. O que disse a ministra não tem fundamento. Pergunto: porque razão a Espanha tem tanto medo que os saharauis possam escolher e decidir? Podem decidir até… ser marroquinos. Mas que lhes seja permitido decidir. As declarações de Trinidad Jiménez inscrevem-se dentro da frenética campanha que está a levar a cabo o Governo espanhol contra o povo saharaui.
A grande maioria dos terroristas do 11 de Março eram marroquinos.


Acha que Espanha teme Marrocos? Porquê?
Estou convencido de que Marrocos tem suficientes métodos de pressão e de chantagem sobre este governo e obriga-o a torcer o braço. Quais são essas formas de pressão? Não sei. O que sei é que as razões de Espanha não são convincentes. Fala-se sempre de interesses económicos. Quais? Espanha apenas tem umas 600 pequenas e médias empresas em Marrocos. Isso não é comparável com o volume de investimento da Repsol, Cepsa e Gas Natural na Argélia. Eu não acredito nos interesses económicos, Tão pouco é comparável com os interesses que a Espanha pode ter amanhã num Sahara independente. Interesses estratégicos? Marrocos sempre será uma zona de influência francesa em primeiro lugar, americana e só depois espanhola. Querem que Marrocos pare com a emigração ilegal, as drogas...Isso é uma espada de Damocles que sempre penderá sobre Espanha. É uma chantagem constante. E é inadmissível. Marrocos diz ser o muro de contenção do terrorismo. De qual? Do seu próprio terrorismo, do que está em Casablanca, em Marraquexe...O caldo do terrorismo está nas grandes cidades onde há injustiça, marginalização, desigualdade, discriminação e pobreza. É aí que tem origem o terrorismo. Segundo a imprensa espanhola, nos atentados do 11 de Março a maioria dos autores eram marroquinos. Acha que tantos marroquinos podem fazer algo sem que o seu governo esteja ao corrente? O terrorismo que Marrocos quer vender à Europa é o seu próprio terrorismo, porque a sua fronteira sul é o Sahara Ocidental, e no deserto não há terrorismo. Cada vez que Marrocos pressiona ou chantageia, Espanha cede. Não entendo como é que um Estado membro da OTAN e da UE, cede tanto ante uma monarquia feudal. Depois há os partidos políticos do Estado espanhol que sempre apoiam a independência

Os partidos políticos, como disse, apoiam a causa saharaui, mas apenas quando estão na oposição. Ao chegarem ao poder parece que se esquecem. Foi o caso do PSOE…
O PSOE, como partido, sempre esteve connosco. Quando ocorreu o desalojamento pela força do acampamento de Gdeim Izik vários governos autonómicos dirigidos por socialistas o condenaram. É a actual cúpula deste governo quem apoia a ocupação marroquina.

Crê que as palavras do Ministro da Presidência, Ramón Jáuregui, segundo as quais a Frente Polisario deve considerar a possibilidade de uma autonomia, reflectem a posição real do Governo?
É a demonstração material do compromisso deste governo com a tese marroquina. A campanha frenética de Espanha, através dos seus porta-vozes, deixa claro que Marrocos está numa situação difícil porque a sua proposta da autonomia é obsoleta. Espanha está-nos de novo a atraiçoar. Antes foi Franco, agora é o um governo socialista. É horrível. Querem hipotecar o direito do povo saharaui à autodeterminação, o que não vamos admitir. Não fizemos o antes, quando éramos mais débeis, sem meios, sem experiência, sem apoio internacional...Agora temos três dezenas de embaixadas, 83 países que nos reconhecem, somos membros da União Africana, temos um exército, homens suficientes para impedir que Marrocos consume a ocupação militar.

A confrontação bélica continua a ser uma opção para vocês...
Nunca a rejeitámos. Assinámos um cessar-fogo, não a paz ou um armistício. Fizemo-lo para criar as condições para o referendo. Se não, não teria sentido. Se a comunidade internacional não encontra uma solução aceite pelo povo saharaui não temos outro remédio que retomar as armas.

Esperavam com esta última crise mais apoio internacional, mais pressão sobre Marrocos?
Todo o mundo quer uma solução para o conflito de acordo com o direito internacional. Quem realmente o impede é, em primeiro lugar, a França com o seu direito de veto na ONU; e Espanha, que utiliza a sua ligação ao conflito vendendo a ideia de que o referendo não é a melhor solução.

EUA: com Obama "um papel mais aceitável"

E o papel dos EUA?
Passámos de um papel totalmente negativo com a administração Bush, que apoiava a tese marroquina, para um papel que considero mais aceitável com a administração de Obama, que não apoia Marrocos. Aceitamos o trabalho do mediador internacional, Chistopher Ross, que é americano e que propõe uma forma de negociar em que as partes discutam todas as alternativas sobre a mesa, porque antes só se queria forçar Polisario a discutir unicamente a proposta marroquina.

Enquanto prosseguem as negociações o conflito perpetua-se e o povo saharaui continua a viver em condições dramáticas...
É verdade que são condições difíceis, mas foram mais difíceis há 10, 20 ou 25 anos. Se já suportámos isso anteriormente, como não suportar agora que estamos muito melhor?

Em que é que estão melhor?
Melhorámos em tudo. As casas têm gás, placas solares, televisor, antenas parabólicas, as crianças vão à escola. É uma situação difícil mas é melhor do que no passado. Melhor até do que a que vivem outros povos africanos. Nos acampamentos ninguém pede esmola, porque todo a gente tem que comer, nem dorme em papelões nas ruas, como acontece em Madrid. Conseguimos que nenhum marido bata na sua mulher nem que a mate. Em muitos aspectos sociais, espirituais e morais estamos melhor que outras sociedades que são vítimas da droga, do alcoolismo e da violência de género.

Qual a situação nas zonas ocupadas?
Muitas coisas estão pior, como é o caso da educação, do trabalho.. Se a isso se acrescentar a repressão, a marginalização e a humilhação, podem imaginar como é insuportável.

Houve observadores internacionais que têm denunciado a repressão, as torturas...Nada parece ter mudado.
Marrocos persiste com a sua política de repressão e de violação dos Direitos Humanos, apesar dos relatórios de organizações como a Human Rights Watch e da Amnistia Internacional. E, inclusive, de ONG humanitárias marroquinas. O último relatório é da Fundação Robert F. Kennedy e nele estão patentes as torturas, a perseguição sistemática. A nossa batalha actual é que haja um mecanismo em todo o Sahara Ocidental que controle o respeito pelo Direitos Humanos, o que pedimos é que a Missão da ONU que está no território se encarregue disso. Mas Marrocos recusa esta opção. Procura impedir que ninguém vá para as ruas proclamar o seu direito à autodeterminação..

A situação que se vive nas prisões é extrema...
Há presos que esperam há mais de dez anos um julgamento. E as ameaças e os espancamentos são uma constante.

A fuga de jovens saharauis de barco para as Canárias esteve a ponto de provocar uma nova crise. O que acha da recusa do Ministério do Interior em conceder asilo a todos eles?
É uma situação que importa analisar muito bem. Desde o desalojamento do acampamento de Gdaim Izik, Marrocos está a levar a cabo uma espécie de limpeza étnica. Quer fazer desaparecer tudo aquilo que reflecte a identidade saharaui, seja o camelo, a jaima (tenda), o todo-o-terreno, os trajes de vestir. E por isso fazem circular a notícia que andam à procura de gente, e então obrigam-nos a sair, fazem vista grossa e a polícia não impede nada, até conseguem que lhes cobrem menos por viajar nas embarcações. É verdade quer alguns são perseguidos, a esses há que lhes dar a mão.. Outros não. Marrocos que simplesmente que se vão embora do território.

Os saharauis de origem Espanhola que residem aqui têm que enfrentar também o muro administrativo imposto pelo governo. Muitos, apesar de terem a nacionalidade espanhola, são tratados como cidadãos de segunda.
Nós, como Frente Polisario, o que pedimos a Espanha é que assuma a sua responsabilidade jurídica e política ante o conflito. Enquanto isso, cada saharaui é livre de ir aos tribunais e de lutar pelos seus direitos. É uma questão entre cada individuo e a administração espanhola.

A postura pacifista de Aminatu Haidar e de outros destacados activistas pode criar um certo distanciamento entre vocês…?
Travamos uma guerra porque nos a impuseram quando nos invadiram e tivemos que responder militarmente. Desejamos uma solução pacífica, mas se isso não chega, o que podemos fazer? Há muitos activistas que são pacifistas mas defendem a autodeterminação. Respeito-os a todos, são corajosos, bravos. Pagaram pelos seus ideais. Aminatu esteve quatro anos com os olhos vendados a maior parte do tempo, encerrada num lúgubre cárcere. Insisto, se a comunidade internacional não respeita o compromisso do referendo, que querem que façamos? Só nos deixam a possibilidade de ser marroquinos. E nem os próprios marroquinos querem sê-lo.

Porquê?
Porque o seu regime é pior que o tunisino.

As revoltas na Tunísia propagaram-se ao Egipto. Acha que poderão propagar-se a outros países?
Creio há condições em Marrocos para que isso aconteça, mais até do que na Tunísia. Aí havia uma classe média mais fortalecida, em Marrocos não, e, além do mais, há uma repressão terrível. Há muita pobreza, muita injustiça, muita miséria. O que ocorreu na Tunísia acontecerá noutros países. Em Marrocos luta-se pelo direito a comer. A riqueza está nas mãos de uma minoria e do rei.

As mulheres tem tido um papel muito activo na luta do povo saharaui...
Têm tido um papel muito importante. Durante os anos de guerra suportaram o peso da educação, saúde..São elas que estão em todo o lado. Mas não existem diferenças entre mulheres e homens e isso, comparado com o que acontece no mundo árabe, é um avanço enorme. Como disse, conseguimos que nenhum homem bata na sua mulher. E quando há divórcios são sempre elas que ficam com a casa. Eles têm que abandonar a residência.

E a situação dos menores? Dizia que tiveram grandes progressos mas em termos de infra-estrutura continua a ser dramático.
É dramático porque não compara com a quilo que vocês vivem.

Referia-me às condições de pobreza
A pobreza é moral. Aqui, no mundo ocidental, considera-se que o material é a felicidade. Lá, não temos a riqueza que têm aqui, e é verdade que há dificuldades, mas a ideia é criar uma infra-estrutura para assimilar os jovens que não têm trabalho. Impulsionámos a iniciativa privada e agora podem-se abrir oficinas para reparar veículos, móveis...E quanto ao problema sanitário faltam-nos muitos meios mas estamos ao nível dos países vizinhos. Trabalhamos muito na área da prevenção, e não temos muitas doenças com que os nossos vizinhos se confrontam . Contamos com a ajuda de comissões humanitárias de todo o mundo. Também há intervenções cirúrgicas que são feitas em Espanha.

Dá a sensação de que à margem do Governo a sociedade espanhola apoia completamente a causa saharaui . Como encaram essa situação?
A sociedade espanhola está muito ligada a nós porque percebe que a Espanha não levou a cabo uma boa descolonização. Por isso, muitos reclamam que o Estado espanhol se envolva na solução.

O actual embaixador de Marrocos em Espanha é saharaui. Foi dirigente da Frente Polisario e os seus antepassados lutaram contra a ocupação. Como analisa esta passagem para o «outro lado»?
Para mim este homem não acrescenta nem subtrai. Se um saharaui se passa para o lado do inimigo terá porventura os seus argumentos. Ele não é o primeiro nem o único. A história está cheia de homens assim. Olhe, por exemplo, Felipe González, que pronunciou um discurso maravilhoso no ano de 76 a favor dos saharauis e hoje defende Marrocos…

Peço-lhe um exercício de autocrítica. Em que é que se equivocou a Frente Polisario?
No início da nossa revolução cometeram-se erros. Prendemos a nossa própria gente, muitos a quem acusávamos de estar com o inimigo, e não era verdade. Mas fizemos “mea culpa” e não temos nenhum complexo em reconhecê-lo ante opinião internacional.

E a corrupção?
Corrupção há em todos os governos e em todos os países do mundo. Mas não temos a corrupção de que fala Marrocos. Uma coisa é o que faz um funcionário e outra coisa é a administração. Acusaram-nos de vender o apoio internacional. Mas as ONG estão presentes quando chega a ajuda e são elas que a recebem, armazenam e distribuem. Uma sociedade de anjos onde ninguém comete erros é utópico. Se uma ONG que está sobre o terreno denuncia, há que dar crédito, mas que o diga Marrocos...

Outro grande drama é a divisão de tantas famílias saharauis que estão nos acampamentos de refugiados e na zona ocupada e que não podem ver-se. Felizmente que o programa de visitas foi reactivado...
Sim, foi reactivado na sequência da última reunião em Nova Iorque. É um programa de intercâmbio de visitas supervisionado pela ONU, mas depois Marrocos começou a vetar algumas pessoas e então paralisámo-lo. Quem tem o critério para vetar é a ONU, não Marrocos. Esperemos que desta vez se respeitem os acordos.

Autor/a: Tatiana Escárraga / Equipo Ajintem
Fonte: www.portal.ajintem.com

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