sábado, 8 de março de 2014

Fosfatos, peixes, frutas e legumes, exportados para a Europa — O Riquíssimo Sahara Ocidental




A questão do Sahara Ocidental esconde cada vez mais a do desenvolvimento económico de Marrocos. Porque os territórios que Rabat designa como «províncias do sul» contribuem muito para as receitas de exploração do reino. Os defensores da independência contestam a legalidade desta exploração.

Enviado especial Olivier Quarente  - jornalista
Le Monde Diplomatique – edição março 2014

É difícil contar os camiões que transportam polvos e peixes brancos no principal eixo rodoviário que liga a grande cidade do Norte do Sahara Ocidental, El-Aaiún (1), a Dakhla, situada a mais de quinhentos quilómetros a sul. A região totaliza mil e duzentos quilómetros de costa e as suas águas são das mais ricas do mundo em peixe. Segundo um relatório do Conselho Económico, Social e Ambiental (CESE) de Marrocos(2), o sector da pesca representa setenta e quatro mil empregos(3), aos quais deve juntar-se uma importante atividade não declarada. Representando por si só 17% do Produto Interno Bruto (PIB) deste território, 31% dos empregos locais e 78% das capturas marroquinas, a pesca das «províncias do sul» - como em Marrocos se designa oficialmente o Sahara Ocidental – gera uma riqueza imensa. O reino apropriou-se dela em 1975, ao mesmo tempo que anexou este território considerado «não autónomo»(4) desde a aprovação em 1965 da Resolução 2072 da Assembleia-Geral da Organização das nações Unidas (ONU).

Nesta estrada única e perigosa, cruzamo-nos com outros camiões, que podem transportar tomates, pepinos e melões produzidos em Dakhla. Segundo a organização não-governamental (ONG) Western Sahara Resources Watch, nos arredores da cidade há onde explorações agrícolas, entre as quais a da empresa Tawarta. Uma estufa ladeia a estrada durante pelo menos quinhentos metros. Nesta exploração agrícola produzem-se tomates-cereja comercializados com o nome «Estrela do Sul», uma marca pertencente à empresa francesa Idyl. Estes cultivos, que injustamente recebem a etiqueta «origem Marrocos» e que em 2008 cobriam cerca de seiscentos hectares(5), são em seguida exportados para a Europa através de Agadir, a mil e duzentos quilómetros dali.
 
Exploração agrícola perto da cidade de Dakhla


Direitos inalienáveis… ou quase

O CESE encara esta agricultura como uma atividade de «alto valor acrescentado». O plano Marrocos Verde previa que o Sahara Ocidental passasse de trinta e seis mil toneladas de frutas e legumes em 2008 para oitenta mil toneladas em 2013, atingindo cento e sessenta mil em 2020, numa superfície de dois mil hectares. Toda esta produção está programada para a exportação. O número de empregados, atualmente, à volta dos seis mil, triplicaria no mesmo período.

Mais a norte, a uma dezena de quilómetros de El-Aaiún, descobre-se o porto explorado pelo Office Cherifien des Phosphates (OCP) Uma poeira fina perturba a visão. A sua origem são os fosfatos transportados desde a mina de Bu Craa graças a um tapete rolante que se estende por uma centena de quilómetros através da paisagem desértica. Apenas vislumbramos os silos de armazenamento e a silhueta dos cargueiros(6) vindos de todo o mundo para embarcar o minério. Este recurso é primordial para o reino: o OCP é o segundo produtor e o primeiro exportador de fosfato bruto e de ácido fosfórico do mundo, bem como um dos principais exportadores de insumos fosfatados. Marrocos retirava daqui 6% do seu PIB em 2012 e detém as reservas mundiais mais importantes.

Encontramo-nos com Mohamed Alisalem Bobeit, vice-presidente de uma associação que trabalha sobre a questão dos recursos naturais do Sahara Ocidental, numa casa de El-Aaiún. Ele fala calmamente. Tem perfeita consciência da importância da PhoBouCraa para Marrocos. No local são produzidos cerca de 10% dos fosfatos extraídos pelo OCP e este prevê duplicar a produção até 2020. »É uma pilhagem de recursos que pertencem ao povo saharaui», pensa ele. Ao exprimir-se publicamente sobre este tema está a correr riscos: Sid Ahmed Lamjayed, o presidente da associação (ilegal, já que Marrocos não reconhece qualquer associação criada por saharauis), foi detido a 25 de novembro de 2010, depois do amplo movimento de protesto de Gdeim Izik(7), tendo sido condenado a prisão perpétua pelo Tribunal Militar de Rabat.

Mas a sua análise é partilhada por um número crescente de pessoas, a julgar pela multiplicação do número de manifestações. Suspensão da exploração dos recursos enquanto o conflito não for resolvido através da organização de um referendo de autodeterminação: esta reivindicação está desde outubro de 2010, e desde a manifestação de Gdeim Izik, no centro do conflito que opõe a Frente POLISARIO (movimento político armado considerado pela ONU como «representante legítimo do povo saharaui») a Marrocos. «Uma resolução da ONU que proibisse a exploração dos recursos por Marrocos criaria as condições favoráveis para se avançar na direção da resolução do conflito», considera Brahim Sabbar, secretário-geral da Associação Saharaui das Vítimas de Violações Graves dos Direitos Humanos Cometidas pelo Estado Marroquino (ASVDH).

Dividida, a «comunidade internacional» deixou, na prática, Marrocos apropriar-se deste território de duzentos e setenta mil quilómetros quadrados. Desta forma, pôde controlar a PhosBouCraa, em acordo com o ocupante anterior, a Espanha, que explorava as instalações desde 1962 e permaneceu seu acionista até 2002. No entanto, a guerra com a Frente POLISARIO já tinha eclodido e o Sahara Ocidental já nessa altura inscrito na lista dos territórios não autónomos regidos pelo artigo 73 da Carta das Nações Unidas. Em 1962, a Assembleia-Geral da ONU consagrou os direitos dos povos «a usar e dispor dos recursos naturais que os seus territórios contêm para assegurar o seu desenvolvimento e bem-estar»(8). A jurisprudência confirmou em seguida os «direitos inalienáveis» dos povos dos territórios não autónomos sobre os seus recursos naturais, bem como o seu direito «a serem e permanecerem donos da valorização futura desses recursos».
 
Minas de fosfatos de Bu Craa

Todo o debate atual gira em torno da questão dos lucros que os saharauis retirariam – ou não – da exploração económica levada a cabo por Marrocos. A assinatura pelo reino, em outubro de 2001, de contratos de prospeção petrolífera com duas companhias, entre as quais a TotalFinaElf, deu à ONU uma oportunidade para emitir um parecer que matizava os grandes princípios enunciados anteriormente. «A questão consiste em saber se a regra dasoberania permanente” [sobre os recursos naturais] impede à potência administrante qualquer atividade ligada aos recursos naturais do território não autónomo que ela administra, ou apenas as que seriam levadas a cabo em detrimento das necessidades e dos interesses da população desse território, sem que esta deles beneficie», declara o secretário-geral adjunto para as questões jurídicas.

Mas não está previsto qualquer mecanismo de avaliação destes interesses. As condições que permitiriam aos «povos coloniais dos territórios não autónomos» exercer os seus direitos legítimos sobre os seus recursos naturais não estão definidas. Desde logo, a questão torna-se um elemento da relação de forças entre as partes em conflito. A Frente POLISARIO denuncia a «pilhagem» dos recursos naturais e o desprezo pelo «povo do Sahara Ocidental». Acionou em novembro de 2012 um processo judiciário no Tribunal Europeu de Justiça para pedir a anulação do Acordo de Comércio Livre entre a União Europeia e Marrocos, um acordo comercial e agrícola que, assinado no anterior mês de março, inclui o Sahara Ocidental. O primeiro argumento avançado é que a Frente POLISARIO não foi consultada.

Pagamentos de subsídios para comprar a paz social

Quanto às autoridades marroquinas, desencadearam uma intensa atividade para convencer que a exploração económica beneficia «a população do território». Multiplicam os anúncios de novos programas de investimento, regularmente transmitidos na imprensa francesa(9) e abundantemente na imprensa marroquina.  Neles fala-se da «população local», sem que se saiba se se trata de saharauis ou dos marroquinos instalados às centenas de milhares nesta zona. A Frente POLISARIO, por seu lado, refere-se ao «povo do Sahara Ocidental». As duas expressões são utilizadas pelo consultor jurídico da ONU para designar saharauis, o que ainda aumenta mais a confusão.



O makhzen (o palácio) faz tudo para convencer que os saharauis beneficiam das riquezas naturais. O OCP, por exemplo, estaria a levar a cabo uma política social: «Todos os rendimentos líquidos da PhosBouCraa são reinvestidos na região e beneficiam os seus habitantes», pode ler-se no seu Relatório de Atividade de 2012. Nas instalações mineiras foram recrutados não menos de quinhentos e trinta  jovens saharauis depois dos acontecimentos de Gdeim Izik. Tratou-se de empregar os filhos dos reformados que já ali trabalhavam na época espanhola e que não estavam satisfeitos com a reforma que recebiam. «De facto chegou-se a acordo, mas os jovens foram contratados com um estatuto com que já ninguém é recrutado, portanto com um salário menor», lamenta no entanto Eddia Sidi Ahmed Moussa, figura do sindicalismo local, secretário-geral da Confederação Sindical dos Trabalhadores Saharauis (ilegalizada).

Uma outra alavanca desta campanha é a atribuição da Carta de Promoção Nacional, uma ajuda social equivalente a cerca de 150 euros mensais, que parece ser muito concedida. Vários testemunhos recolhidos no terreno reforçam a ideia de que, no que se refere aos saharauis, este subsídio permite comprar a paz social e regular a agitação política através da distribuição do dinheiro por chefes tribais. As autoridades podem chegar ao ponto de retirar a prestação a uma pessoa vista numa manifestação pró-saharaui.

Será possível falar de «benefícios» reais? Na ausência de dados fiáveis sobre o território, que Marrocos não é obrigado a fornecer porque não é considerado pela ONU como a «potência administrante»(10), é impossível responder com certeza. A instrumentalização desta questão para servir a política real não suscita, em contrapartida, qualquer dúvida. A definição, em novembro de 2013, de um «novo modelo de desenvolvimento das províncias do sul» elaborada pelo CESE tinha o objetivo de suscitar a contribuição da «sociedade civil» para o «êxito da iniciativa marroquina de autonomia»(11). Desde 2007, Mohamed VI apresenta-a como o contraprojecto ao referendo de autodeterminação anualmente requerido pela ONU desde 1991.


O Parlamento Europeu renova o Acordo de Pesca

O último exemplo a registar é o facto de, a 10 de dezembro de 2013, a maioria do Parlamento Europeu ter validado o novo acordo de pesca que deve prolongar; entre 2014 e 2017, o de 2007-2011. Mais uma vez, e sem que isso seja sequer mencionado no protocolo, Marrocos inclui as águas do Sahara Ocidental. O acordo prevê novamente o pagamento de um subsídio anual (30 milhões de euros, em vez dos anteriores 36 milhões [Nota: mas mais 10 milhões provenientes dos armadores que beneficiam das licenças de pesca…] para desenvolver o sector da indústria. Em contrapartida, Marrocos atribui licenças a barcos europeus e quotas de pesca por cada espécie. Tendo a mesma assembleia recusado, em dezembro de 2011, reconduzir o primeiro acordo, este novo voto favorável surge como um sinal de apoio ao governo marroquino e à sua política «reformista».

Com efeito, o serviço jurídico do Parlamento Europeu rejeita demasiado depressa a questão dos benefícios, considerando que Marrocos pode incluir as águas do Sahara Ocidental e que um tal acordo é legal na medida em que o reino «respeite as suas obrigações para com o povo do Sahara Ocidental». Tanto pior se os únicos parlamentares autorizados a deslocar-se a este território são os do Grupo de Amizade União Europeia-Marrocos. Aliás, o deputado francês Gilles Pargneaux (Partido Socialista), presidente deste grupo, não se confunde: «Era ilusório querer resolver o problema do Sahara Ocidental através da rejeição deste acordo de pesca. Recordo que a proposta de autonomia do Sahara Ocidental apresentada por Marrocos às Nações Unidas em 2007 é a única solução possível»(12). Tanto pior também para o interesse puramente económico e financeiro do texto. Com efeito, uma avaliação independente do acordo de pesca anterior mostrara uma relação custo-eficácia «muito fraca» e uma ineficiência absolutamente excecional.



A França, principal investidor estrangeiro em Marrocos, contribui ativamente para este statu quo em prejuízo dos saharauis. Em novembro de 2013 teve lugar a inauguração do novo porto de pesca de Bojador, impressionante com o seu molhe principal de setecentos e vinte e quatro metros e o seu molhe transversal de duzentos e sessenta metros. O porto foi construído com o apoio financeiro da Agência Francesa de Desenvolvimento, cuja contribuição a Marrocos passou de 380 milhõers de euros em 2011 para 831 milhões em 2012. Em Bojador, Sultana Khaya, jovem militante saharaui pelos direitos humanos acaba de criar a Liga para a Proteção dos Recursos Naturais. Ela teme que o petróleo venha a ser explorado pela Total, empresa que, em julho de 2013, ou seja, doze anos depois do primeiro contrato no Sahara Ocidental, estava a conduzir uma missão de prospeção sísmica numa zona de mais de cem mil quilómetros quadrados chamada «Anzarane offshore»…

  (1) Ler Gaël Lombart e Julie Pichot, Medo e silêncio em El-Aaiún, Le Monde Diplomatique – edição portuguesa, janeiro de 2006.
  (2) «Nouveau modele de développment pour les provinces du Sud», CESE, Rabat, outubro de 2013.
  (3) O número inclui a região de Tan-Tan e de Guelmim, no sul de Marrocos.
  (4) País não descolonizado ou cujas populações ainda não se administram completamente a si próprias.
 (5) Segundo a ONG Western Sahara Resources Watch, número retomado pela Comissão Europeia.
  (6) Navios que transportam mercadorias ao peso.
 (7) Ler «A resistência firme dos saharauis», Le Monde Diplomatique-edição portuguesa, fevereiro de 2012.
  (8)    Resolução 1803 (XVII) de 14 de dezembro de 1962.
  (9) Anne Cheyvialle, «Le Maroc investit massivement dans le Sahara Occidental», Le Figaro, Paris, 11 de novembro de 2013.
 (10) Como recordou o consultor jurídico da ONU em fevereiro de 2002, os Acordos de Madrid, assinados em novembro de 1975 entre a Espanha, Marrocos e a Mauritânia, não transformaram Marrocos na nova potência administrante do Sahara Ocidental.
( (11) CESE, comunicado de imprensa, 8 de novembro de 2013.
 (12) «Le Parlement européen adopte définitivement l’accord de pêche entre l’Union européenne et le Maroc», Groupe d’amitié UE-Maroc, 10 de dezembro de 2013, http://groupedamitieeumaroc.wordpress.com.


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