Pesca e fosfatos e energia verde - grandes rcursos do Sahara Ocidental |
Hugh Lovatt(*) - European Council on Foreign Relations - 21 Dezembro 2020
A proclamação do presidente Donald Trump reconhecendo a soberania marroquina sobre o Sahara Ocidental colocou o frequentemente ignorado conflito de volta aos holofotes internacionais. A medida vai contra a lei internacional, mas foi saudada com entusiasmo previsível pelo Marrocos, que há muito reclama o território como seu. Igualmente previsível é a leve resistência das capitais europeias. Muito embora tenham geralmente reafirmado o seu compromisso com posições internacionais de longa data sobre a resolução do conflito por meio de um processo de paz supervisionado pela ONU, elas, uma vez mais, se esquivaram a esclarecer as suas próprias posições sobre o território, seu estauto legal e as reivindicações de Marrocos.
Essa ambiguidade decorre de impulsos contraditórios. Por um lado, os governos europeus e a União Europeia são obrigados pelo dever do direito internacional a não reconhecer a soberania marroquina sobre o Sahara Ocidental e de defender o direito à autodeterminação do povo saharauí. Por outro lado, o estreito alinhamento com Rabat fez com que eles favorecessem a inclusão do território nas suas relações comerciais bilaterais. O resultado é uma relação fundamentalmente comprometida com o Sahara Ocidental, que está minando os interesses comerciais da Europa, subvertendo as suas posições políticas e jurídicas e prejudicando as perspectivas de resolução do conflito a longo prazo.
A política europeia para o Sahara Ocidental foi motivada tanto pelas exigências políticas de Marrocos como pelo desejo da UE de manter um bom relacionamento com o país em matéria de comércio, cooperação antiterrorista e migração. No passado, Marrocos não foi tímido em alavancar tais interesses para garantir apoio político para as suas reivindicações territoriais. A situação tornou-se mais complexa devido a divergências de pontos de vista jurídicos não apenas entre os Estados-Membros, mas também entre as instituições da UE, com a Comissão Europeia, o Conselho Europeu e o Tribunal de Justiça Europeu (TJUE), todos a tomarem posições diferentes sobre a aplicabilidade ao território do Direito Internacional Humanitário (que regula as ocupações militares).
Desde dezembro de 1966, a ONU reconheceu o direito inalienável à autodeterminação do povo do então Sahara espanhol. Em outubro de 1975, o Tribunal Internacional de Justiça (TIJ) rejeitou a noção de qualquer “laço de soberania territorial” entre o Sahara Ocidental e Marrocos. No mesmo dia da decisão do TIJ, Marrocos anunciou a sua intenção de "ocupar pacificamente" o território costeiro. Desde então, o país foi incorporado formalmente no direito interno marroquino como parte das suas regiões administrativas. No entanto, em 1979, a Assembleia Geral da ONU declarou o Sahara Ocidental como um território não descolonizado ocupado por Marrocos, colocando responsabilidades e limites claros às ações marroquinas como potência ocupante de acordo com o Direito Internacional Humanitário. Tão importante quanto, reconheceu a Frente Polisrio como legítima representante do povo do Sahara Ocidental (os saharauis).
No entanto, embora a UE não reconheça a soberania marroquina sobre a área, não adotou a caracterização da ONU como território ocupado. Em vez disso, a UE rotulou o Sahara Ocidental como um “território não autónomo 'de facto' administrado pelo Reino de Marrocos” - evocando um conceito jurídico que não existe no direito internacional. E embora a UE, juntamente com muitos dos seus membros, tenha reafirmado repetidamente o direito à autodeterminação dos saharauis, absteve-se de se envolver com a Frente Polisario na sua qualidade de representante legal do povo do Sahara Ocidental. Os governos europeus também se recusaram a reconhecer a República Árabe Sarauí Democrática (RASD), que a Frente Polisario estabeleceu como um estado em 1976.
Tendo como pano de fundo um processo de paz negligenciado, as posições europeias sobre o Sahara Ocidental repercutiram nas relações comerciais da UE. Ao tratar Marrocos como o poder administrativo de facto no Sahara Ocidental (livre das limitações legais que de outra forma teriam sido impostas como potência ocupante), a UE incorretamente - de acordo com o TJEU - permitiu que Marrocos incluísse o território nos seus acordos bilaterias. Isso permitiu que empresas marroquinas e europeias lucrassem com os abundantes recursos naturais do Sahara Ocidental - incluindo ricos ‘stocks’ pesqueiros, fosfatos e energia verde - em detrimento dos saharauis.
A Frente Polisario contestou repetidamente essas práticas perante o TJUE, argumentando que a UE errou ao reconhecer o regime administrativo de Marrocos no Sahara Ocidental e ao não procurar o consentimento dos sarauís para a inclusão do seu território nos acordos agrícolas e de pesca UE-Marrocos. Como resultado, os tribunais da UE têm sistematicamente derrubado os argumentos apresentados pela Comissão Europeia e pelo Conselho Europeu (que são conjuntamente responsáveis pelas relações comerciais da UE) para justificar a inclusão do Sahara Ocidental em tais acordos.
Em dezembro de 2016, o TJUE decidiu que o Sahara Ocidental estava fora do âmbito do Acordo de Associação de Marrocos, que constitui a base da sua relação comercial com a UE. Uma decisão anterior havia advertido a Comissão por não ter obtido o consentimento do povo saharauí. Em busca de uma nova base jurídica, a Comissão afirma agora ter obtido o consentimento da população local para incluir o Sahara Ocidental no acordo comercial alterado com Marrocos. Fê-lo, não procurando obter a aprovação da Frente Polisario como representante internacionalmente reconhecido dos saharauis - como deveria -, mas antes obtendo a aprovação de entidades locais ligadas a Marrocos. No processo, a Comissão pode ter induzido em erro o Parlamento Europeu, que assinou os termos do acordo comercial alterado em janeiro de 2019. É provável que o esforço da Comissão para contornar a decisão de 2016 seja rejeitado pelo TJUE, mais uma vez retirando qualquer fundamento para o comércio da UE com o Sahara Ocidental.
Estas decisões jurídicas estão gradualmente a endurecer a política de diferenciação da UE entre Marrocos e o Sahara Ocidental. O resultado esperado será a exclusão do território dos acordos bilaterais com Marrocos, espelhando o desenvolvimento das práticas comerciais europeias em relação a situações comparáveis, como o território palestiniano ocupado por Israel e os Montes Golã na Síria, e a Crimeia ocupada pela Rússia. Nesse caso, os pescadores da UE não serão autorizados a operar nas águas do Sahara Ocidental utilizando licenças marroquinas, enquanto os produtos agrícolas marroquinos originários do território serão excluídos das tarifas preferenciais da UE. Para ter acesso legal aos recursos do Sahara Ocidental, a UE parece ter, portanto, poucas opções a não ser negociar acordos autónomos com a Frente Polisário ou a RASD - algo pelo qual não tem demonstrado entusiasmo, dada a crise diplomática que isso desencadearia com Rabat.
A Europa tem um interesse legítimo em manter relações estreitas com Marrocos. Mas isso não deve acontecer à custa do seu compromisso com o direito internacional e os direitos saharauis - até porque isso poderia minar a política europeia em situações semelhantes de ocupação e anexação estrangeira. Nem é suficiente para a Europa se opor suavizadamente à decisão do governo Trump.
A UE e os seus Estados-Membros devem considerar o cumprimento do direito internacional, incluindo o reconhecimento de Marrocos como potência ocupante sujeita ao direito internacional humanitário, como uma fonte de força. Isto poderia dar aos europeus o ímpeto e a influência para ajudar a relançar as negociações de paz entre Marrocos e a Frente Polisario, garantindo ao mesmo tempo que as práticas comerciais europeias não minam ainda mais as perspectivas de autodeterminação saharaui. Uma abordagem baseada no direito internacional também poderia fornecer um ponto de entrada útil para o envolvimento europeu com o próximo governo Biden, para reajustar a posição dos EUA sobre o Sahara Ocidental e relançar um processo de paz viável da ONU.
(*) Hugh Lovatt é investigador do programa para o Médio Oriente e Norte de África no Conselho Europeu de Relações Exteriores. Desde que ingressou no ECFR, Lovatt tem se concentrado amplamente na política da UE em relação ao Processo de Paz no Médio Oriente (MEPP), na política interna palestiniana e na política regional israelita.
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