Nos bastidores de uma rixa franco-marroquina
Desde janeiro, o reino Cherifiano deixou de ter um embaixador em França. As tensões que têm afetado as relações entre as duas capitais nos últimos anos foram reavivadas pela polémica em torno da ajuda humanitária após o terramoto de 8 de setembro. Mas por detrás das querelas, de um lado e de outro do Mediterrâneo, as pessoas sabem chegar a acordo sobre interesses.
Artigo de ABOUBAKR JAMAÏ * - in Le Monde Diplomatique - Outubro 2023
* Professor de Relações Internacionais no Colégio Americano do Mediterrâneo (ACM) em Aix-en-Provence.
Estamos a assistir a uma deterioração irreparável das relações entre a França e Marrocos, que decidiu ignorar a oferta de ajuda da França na sequência do terramoto de 8 de setembro? O terramoto que atingiu o Alto Atlas causou quase três mil mortos, deixou milhares de feridos e dezenas de milhares de desalojados. Antes de responder a esta pergunta, uma coisa é certa: Emmanuel Macron não é bem-vindo no reino Cherifiano. A 16 de setembro, a agência noticiosa oficial marroquina Maghreb Arabe Presse (MAP) publicou um comunicado de imprensa anunciando que uma visita do Presidente francês não estava "nem na ordem do dia, nem prevista".
Este esclarecimento foi feito poucas horas depois de a ministra dos Negócios Estrangeiros francesa, Catherine Colonna, ter dito que Macron planeava visitar Marrocos em breve.
Antes disso, as autoridades de Rabat já tinham manifestado a sua irritação, com o ocupante do Palácio do Eliseu ao exprimir a sua solidariedade e a do seu país diretamente aos marroquinos através de um vídeo difundido na rede X (antigo Twitter) (12 de setembro). Para muitos funcionários, tratava-se de um ato de condescendência para com um Estado soberano "culpado" de ter ignorado a mão estendida da França - bem como as ofertas de cerca de quarenta outras capitais - em favor da ajuda oferecida pelos Emirados Árabes Unidos, Espanha, Qatar e Reino Unido.
Esta controvérsia só serviu para reforçar um mal-estar já palpável entre os dois países. De facto, as relações entre Rabat e Paris deterioraram-se desde que os Estados Unidos reconheceram a marroquinidade do Sahara Ocidental em dezembro de 2020. O ministro dos Negócios Estrangeiros Nasser Bourita apressou-se a instar os aliados ocidentais do seu país a alinharem-se com a posição americana. Em agosto de 2022, o rei Mohammed VI reiterou esta exigência num discurso: "A partir de agora, a questão do Sahara é o único prisma através do qual o Reino de Marrocos organiza as suas alianças. É o único barómetro para determinar amizades e parcerias". Bourita fez com firmeza o mesmo pedido a Colonna em Rabat durante uma visita em dezembro de 2022, numa altura em que o restabelecimento por Paris de uma "relação consular normal" no que diz respeito à emissão de vistos para os marroquinos - outro diferendo bilateral - pressagiava uma acalmia da situação.
Indulgência para com Madrid
À primeira vista, Rabat critica Paris por não se ter conformado com as as suas imposições em relação ao Sahara Ocidental, sobre o qual Marrocos reivindica a sua soberania(1). Mas há outra razão para esta queixa. A súbita viragem da diplomacia americana pelo Presidente Donald Trump foi o resultado de uma cedência de alto risco para a monarquia. Em troca da reviravolta de Washington - até então favorável a uma solução sob a égide das Nações Unidas - Rabat aceitou normalizar as suas relações com Telavive. Com a perspetiva óbvia de alienar uma opinião pública predominantemente pró-palestiniana.
Apesar de uma campanha mediática maciça sobre os benefícios de uma tal aproximação, 67% dos marroquinos declararam-se contra a "tatbi" (normalização) em 2022 (2). O reconhecimento por Paris da marroquinidade do Sahara Ocidental teria, sem dúvida, ajudado a suavizar a pílula, demonstrando que os benefícios para Marrocos eram proporcionais ao gesto feito a Israel.
Mesmo que Paris não tenha seguido o exemplo de Washington, podemos interrogar-nos sobre o carácter excessivo e parcial da cólera de Marrocos contra ela. Se a França não negou o direito dos saharauis à autodeterminação, como exige Rabat, nem os Estados Unidos nem a Espanha o fizeram de forma definitiva. A evolução da posição americana após o reconhecimento da soberania marroquina sobre o Sahara Ocidental pela administração Trump é até embaraçosa para o Reino. O Presidente Joseph Biden, que assumiu o cargo em janeiro de 2021, tem reafirmado consistentemente o seu apoio ao processo da ONU, cuja pedra angular - a autodeterminação das populações em causa - é sistematicamente incluída nas resoluções anuais aprovadas pelo Conselho de Segurança para renovar o mandato da Missão das Nações Unidas para o Referendo no Sahara Ocidental (Minurso).
Desde 2007, Marrocos defende como solução um plano de autonomia para o Sahara Ocidental. Se, por um lado, conseguiu obter a aceitação da credibilidade desta proposta, por outro, não conseguiu desqualificar a autodeterminação como forma alternativa de resolução do conflito. É neste sentido que a decisão da administração Trump parecia representar um ponto de viragem importante.
Ela deveria mostrar a rejeição dos Estados Unidos ao direito dos saharauís de decidirem o seu próprio destino através de eleições. A administração Biden corrigiu o rumo sem incorrer na ira de Rabat.
O caso de Espanha é igualmente emblemático. Em março de 2022, o gabinete real marroquino anunciou que o rei Mohamed VI tinha recebido uma carta do chefe do governo espanhol, Pedro Sánchez, na qual este declarava considerar o plano de autonomia de Rabat como "a solução mais séria, credível e realista" para resolver o conflito. Esta missiva provocou uma grave crise diplomática entre a Espanha e a Argélia, que continua a defender a autodeterminação sob a égide da Organização das Nações Unidas (ONU). Interrogado pela imprensa e atacado pela sua oposição de direita e por uma parte do seu próprio campo, Sánchez nunca confirmou nem desmentiu a existência desta carta. Durante o seu discurso perante a Assembleia Geral da ONU, a 21 de setembro, reafirmou o seu apoio ao processo da ONU, sem provocar a ira da diplomacia marroquina.
No fundo, a posição do governo francês não difere muito da dos seus homólogos americano e espanhol. Historicamente, a França é mesmo o membro permanente do Conselho de Segurança que mais defende os interesses marroquinos. Por exemplo, em 2014, quando a administração de Barack Obama decidiu apoiar o pedido da Frente Polisário para acrescentar o controlo dos direitos humanos ao mandato da Minurso, foi Paris que impediu essa iniciativa, que visava, mais cedo ou mais tarde, acusar o Reino.
Existem outros exemplos de tratamento diferenciado de Marrocos em relação à França, por um lado, e aos Estados Unidos e à Espanha, por outro. Por exemplo, a imprensa próxima do regime valorizou o apoio dado pelos eleitos de Macron à resolução do Parlamento Europeu de 19 de janeiro de 2023 que condena Marrocos pelas suas violações da liberdade de imprensa (3).
Desde essa data, o reino deixou de ter um embaixador em França, uma vez que o rei Mohamed VI cessou as funções de Mohamed Benchaâboun, que ocupava o cargo desde outubro de 2021. Mas, em novembro de 2022, quando os Estados Unidos criticaram Marrocos pela utilização de spyware e pelas pressões exercidas sobre os defensores dos direitos humanos perante o Conselho dos Direitos Humanos da ONU em Genebra, Rabat não reagiu.
A aproximação a Israel explica também porque é que muitos responsáveis marroquinos já não hesitam em repreender os seus homólogos franceses, quando no passado exprimiam o seu desagrado de uma forma muito mais comedida. A normalização das relações entre Rabat e Telavive deu origem a um sentimento de omnipotência, graças ao apoio de que o reino beneficia atualmente por parte do lobby pró-Israel no Ocidente, nomeadamente nos Estados Unidos. Já para não falar do apoio ainda mais declarado de Israel nos domínios militar e da espionagem.
No seu recente livro "Le Déclassement français" (Michel Lafon, 2022), os jornalistas Georges Malbrunot e Christian Chesnot utilizam fontes da contraespionagem francesa para confirmar que os serviços marroquinos utilizaram o spyware Pegasus contra políticos franceses, incluindo o Presidente Macron. Segundo os autores, o serviço de contraespionagem tem mesmo a certeza de que os serviços marroquinos estão a trabalhar em segredo para a Mossad em França. Foram efectuadas várias investigações sobre duplos nacionais franco-marroquinos empregados em empresas consideradas sensíveis, como a Total e a Airbus. Duas delas terão dado origem a condenações por espionagem.
A cólera do rei
As tensões entre os serviços marroquinos e franceses não remontam nem a estas investigações nem ao caso Pegasus.
Em fevereiro de 2014, a justiça francesa recebeu várias queixas de tortura e crimes contra a humanidade contra Abdellatif Hammouchi, o todo-poderoso diretor-geral de uma unidade de segurança que englobava a Direção-Geral de Vigilância Territorial (DGST) e a Direção-Geral de Segurança Nacional (DGSN). Durante a sua deslocação a Paris, foi surpreendido pela visita de agentes da polícia judiciária que vinham entregar-lhe uma intimação para comparecer perante o juiz que investigava um dos processos contra ele. A severidade da reação marroquina foi proporcional à influência de Hammouchi no seio do regime. Em maio do mesmo ano, um órgão de comunicação social próximo das autoridades revelou a identidade da chefe da delegação de Rabat da Direção Geral de Segurança Externa (DGSE) francesa, obrigando Paris a chamá-la de volta rapidamente. A assistência prestada pelos serviços secretos marroquinos às autoridades francesas durante os atentados terroristas em Paris, em novembro de 2015, abriu, no entanto, caminho a um apaziguamento já esboçado em fevereiro anterior, quando, durante uma visita a Marrocos, o Ministro do Interior francês, Bernard Cazeneuve, condecorou Hammouchi com a Legião de Honra.
Recusa da ajuda humanitária francesa, expulsão do embaixador, críticas contundentes na imprensa... Será de recear uma rutura total das relações entre os dois países? O risco parece reduzido, quanto mais não seja porque as trocas económicas bilaterais continuam a ser significativas. Determinado a aumentar as suas exportações de automóveis, o reino considera os grupos franceses Renault e Stellantis como as locomotivas do seu desenvolvimento industrial. A proximidade geográfica dos seus principais mercados, a mão de obra barata, as infra-estruturas modernas e os benefícios fiscais generosos são apenas alguns dos atrativos que Marrocos oferece a estas multinacionais. Nos últimos anos, a França perdeu a sua posição de primeiro parceiro comercial do Reino para a Espanha (4), mas continua a ocupar um vantajoso segundo lugar num país onde os seus nacionais representam o maior contingente de turistas internacionais. As remessas dos marroquinos residentes no estrangeiro (MRE) são um verdadeiro garante da estabilidade social do país, representando 10% do produto interno bruto. Ora, 32% destas remessas provêm de França, onde se encontra uma grande comunidade que continua muito ligada ao seu país de origem.
Outro fator reduz a probabilidade de uma rutura total entre os dois países: as elites políticas e económicas marroquinas e francesas têm muitas vezes interesses comuns. Através da sua holding Al-Mada, o rei é sócio de muitas empresas francesas, incluindo uma controlada pelo Estado francês, a Engie [Nota da tradução: ver artigo AQUI].
Evitando os mercados mais abertos à concorrência internacional no seu país de origem, esta holding orienta os seus investimentos pessoais para os sectores mais vigiados, nomeadamente o financeiro e o energético. Como estes setores são regulados por um Estado que a monarquia controla, dispõe de uma clara vantagem competitiva de que beneficiam os seus parceiros, como a Engie.
A multinacional é também co-acionista da Al-Mada na Safiec, uma central elétrica a carvão que tem sido criticada - sem sucesso - por organizações não governamentais pelo seu impacto ambiental na cidade de Safi.
Desta forma, ambas as partes beneficiam uma da outra. Por um lado, um poder autoritário e personalizado e, por outro, um país que o tolera para proteger os seus interesses económicos. Mas, por vezes, o fator humano pode perturbar este equilíbrio. Segundo Tahar Ben Jelloun, romancista e defensor do regime nos órgão de comunicação social franceses, parte da causa da fratura pode ser explicada pela falta de respeito de Macron pelo rei Mohamed VI. No meio do caso Pegasus, o Presidente francês recusou-se a acreditar no seu interlocutor real, que lhe tinha telefonado pessoalmente para o convencer de que os serviços marroquinos não o tinham espiado. Uma vez que a cólera do rei ainda não amainou, é provável que as relações entre os dois países se mantenham tensas.
(1) Ver Réda Zaïreg, "Consensus marocain sur le Sahara", in Manière de voir, n.º 181, "Le Maghreb en danger...", fevereiro-março de 2022.
(2) ÍArab Opinion 2022, janeiro de 2023, https://arabcenterdc.org
(3) "Resolução do Parlamento Europeu, de 19 de janeiro de 2023, sobre a situação dos jornalistas em Marrocos, em particular o caso de Omar Radi", Jornal Oficial da União Europeia, Luxemburgo, 19 de janeiro de 2023.
(4) "França-Marrocos. Les relations économiques impactées par la crise politique", 21 de junho de 2023, https://econostrum.info
Sem comentários:
Enviar um comentário