Artigo publicado no jornal “Público” – 20-05-2022
Nos
anos 1980 a solidariedade portuguesa assinalou de várias formas, no mesmo dia,
o direito à autodeterminação de Timor-Leste e do Sahara Ocidental. Numa dessas
iniciativas, que se tornou memorável, José Afonso juntou a sua voz à dos
presentes na Voz do Operário, em Lisboa, ampliando a força das convicções na
luta pela justiça a nível internacional.
O 20
de Maio celebrava a formação da ASDT (Associação Social-Democrata Timorense),
em 1974, que meses mais tarde se transformaria na FRETILIN (Frente
Revolucionária de Timor-Leste Independente). Foi a data escolhida para o
reconhecimento internacional da Independência do país, em 2002, cujo 20º
aniversário festejamos esta semana. Mas recordava também a realização, em 1973,
da primeira acção armada da F.POLISARIO (Frente Popular para a Libertação de
Saguia El Hamra e Rio de Oro) contra o colonialismo espanhol. Sendo os dois
“territórios não autónomos”, pendentes de descolonização, e constando da lista
das Nações Unidas no âmbito da Declaração sobre a Concessão da Independência
aos Países e Povos Coloniais (1960), o paralelo era evidente.
Havia
mais algumas coincidências. As ditaduras que governavam os dois países
colonizadores entraram em colapso em meados da década de 1970, dando origem a
processos de democratização: em Portugal, a 25 de Abril de 1974, através de um
golpe militar que se transformou numa revolução; em Espanha, por vontade do
ditador Franco, através da relegitimação da monarquia constitucional, em 1975.
Os dois territórios foram invadidos por um poderoso vizinho, no último
trimestre de 1975: o Sahara Ocidental pelo Reino de Marrocos, em final de
Outubro (a data convencional é 6 de Novembro); Timor Leste pela República da
Indonésia, também a partir de Outubro, com o assalto final a Díli no dia 7 de
Dezembro. Ambas as acções foram fortemente condenadas pela ONU. Os respectivos
movimentos independentistas, como forma de luta contra a ocupação ilegal dos
seus países, proclamaram unilateralmente a independência: a República
Democrática de Timor-Leste foi instituída dias antes da conquista pela força de
Díli, a 28 de Novembro de 1975; a República Árabe Saharaui Democrática foi
consagrada no dia seguinte à total retirada das tropas espanholas, a 27 de
Fevereiro de 1976. Em 1984 foi aceite como membro de pleno direito da
Organização de Unidade Africana (hoje União Africana).
Em
1991 surgiu um raio de esperança: a F.POLISARIO e o Reino de Marrocos assinaram
um acordo de cessar-fogo, sob os auspícios da ONU e da OUA, concordando em
realizar um referendo de autodeterminação para decidir sobre o futuro do
território. Nesse sentido, foi criada a MINURSO (Missão de Paz das Nações
Unidas para o Referendo no Sahara Ocidental) e iniciou-se o processo de
identificação do universo eleitoral saharaui. A Resistência timorense, os
activistas em vários países que apoiavam a luta pelos direitos do povo de
Timor-Leste, festejaram. Era um precedente importante, e poder-se-ia aprender
muito.
No
mesmo ano de 1991, enquanto o regime marroquino colocava todos os entraves
possíveis à elaboração dos cadernos eleitorais, em Timor ocorria o massacre de
Santa Cruz, que despoletou a indignação mundial e deitou por terra um plano
negociado durante anos entre Portugal e a Indonésia no sentido da aceitação da soberania
indonésia contra promessas, por parte de Jacarta, de respeito pela cultura
portuguesa e pela religião católica na sua “27ª província”. Seguiram-se a
prisão de Xanana e o seu mediático julgamento, o reforço dos protestos da
juventude timorense, a expansão da solidariedade internacional a todos os
continentes e, em 1996, o Prémio Nobel da Paz atribuído a Mons. Ximenes Belo e
a José Ramos Horta. Foi nesse dia, no seu discurso de aceitação, que o bispo
timorense afirmou: “quando um povo escolhe a via não-violenta é frequente
ninguém o ouvir”.
Fiel
à palavra dada e à confiança na luta política por meios pacíficos, o povo do
Sahara Ocidental esperou até que a ONU, em 2000, desse por terminado o
recenseamento eleitoral. Ao conhecer o resultado, prevendo uma derrota,
Marrocos recusou-se a aceitar a realização do referendo. A lógica de Rabat foi
então a mesma de Jacarta: em 2007 ofereceu aos saharauis a possibilidade de uma
autonomia no quadro do Reino.
O
povo timorense teve a oportunidade de escolher, a 30 de Agosto de 1999, entre
aceitar ou rejeitar a “autonomia especial integrada na Indonésia”. Sabe-se como
apesar das ameaças, 95% dos eleitores inscritos foram votar, e 78,5% recusaram
a autonomia, optando pela independência. Foi precisa clarividência e coragem
política de todas as partes e apoio internacional a uma resolução pacífica de
um conflito sem saída. As Nações Unidas ganharam credibilidade, Portugal,
potência administrante, viveu um momento de unidade nacional lembrado com
orgulho e saudade, a Indonésia libertou-se de uma guerra, e a região criou
laços de cooperação entre os países que a compõem, a todos os níveis.
No
caso do Sahara Ocidental, as negociações conduzidas pela ONU não chegaram até
hoje ao desfecho que, de acordo com o Direito Internacional, só pode ser um:
dar a palavra ao povo saharaui para que ninguém escolha por ele o seu futuro.
Consequência de 45 anos de impasse, a guerra entre a F.POLISARIO e Marrocos
recomeçou em Novembro de 2020, e continua. A procura de uma solução política
também.
Ao
mesmo tempo, a espiral de violação dos direitos humanos não cessa, porque uma
ocupação pela força de um território é isso mesmo que provoca: humilhação e
discriminação da população, reacção desta, repressão mais violenta, reforço das
convicções e da luta. Um regime que oprime outros povos não aceita liberdades
nem críticas em casa. Coerentemente, Marrocos é um regime autocrático, que
castiga duramente todas as pessoas, incluindo intelectuais e jornalistas, que
ousam pedir justiça.
A
inaceitável invasão da Ucrânia levou à condenação generalizada, veemente, e com
razão, da Rússia de Putin. O Secretário-geral das Nações Unidas disse: "As
fronteiras não devem ser redesenhadas a bel-prazer das grandes potências... A
Carta das Nações Unidas baseia-se na igualdade soberana de todos os seus
membros. Exige ‘o respeito do princípio da igualdade de direitos e da
autodeterminação dos povos’. Não podemos permitir que se minem estas
normas" (13 de Março de 2022).
Estas
e outras afirmações semelhantes, assim como o processo de autodeterminação de
Timor-Leste, expõem um problema que se tenta muitas vezes esconder: a prática
da política de “dois pesos e duas medidas”, de acordo com interesses
circunstanciais.
Saibamos renunciar a ela, é o nosso futuro comum que está em jogo.
Luísa
Teotónio Pereira - Ex-coordenadora da Comissão para os Direitos do Povo Maubere
(CDPM), membro da Associação de Amizade Portugal-Sahara Ocidental (AAPSO)
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