O
fim do conflito no Sahara Ocidental está finalmente chegando? É
algo que não se pode adivinhar. O que podemos saber é que os
eventos se aceleraram desde a decisão europeia de 21 de dezembro de
2016. O novo enviado pessoal para o Sahara Ocidental, Horst Köhler,
nomeado meses depois dessa sentença ter sido proferida, imprimiu uma
nova dinâmica que desencadeou a pânico no Makhzen de Marrocos que
vê, impotente, como está perdendo sucessivas batalhas diplomáticas
na luta para se impor neste conflito. A última é ver como os EUA e
a Rússia ignoram as ameaças marroquinas e apoiam a retomada das
negociações diretas entre Marrocos e a Frente Polisario para acabar
com o conflito. @ Desdelatlantico.
Artigo
do Prof. Carlos Ruiz Miguel, Catedrático de Direito Constitucional
na Universidade de Santiago de Compostela.
I.
UMA NOVA DINÂMICA DESDE 21 DE DEZEMBRO DE 2016
Como
escrevi neste blog no dia seguinte ao proferido, a sentença da
Grande Câmara do Tribunal de Justiça de 21 de dezembro de 2016 foi
uma "vitória judicial histórica para o Sahara Ocidental na
União Europeia".
O
motivo é muito simples. Após o ataque de 11-M de 2004, Marrocos
conseguiu enterrar o "Plano Baker" e congelar o processo de
paz da ONU. Em 2007, houve uma aparente tentativa de reativar o
processo de paz por meio de negociações diretas, mas num contexto
em que o objetivo real era fazer com que a Frente Polisario
claudicasse. Neste contexto, realizaram-se conversações diretas
entre Marrocos e a Frente Polisario em Manhasset (2007-2008).
Desde
então, Marrocos negligenciou qualquer outra coisa que não fosse a
anexação do território.
Esta
política foi mortalmente ferida pela decisão do Tribunal da União
Europeia, que afirmou claramente que Marrocos não tem soberania
sobre o Sahara Ocidental e não pode concluir tratados que incluam
este território.
II.
KÖHLER, ENVIADO PESSOAL DA ONU PARA O SAHARA OCIDENTAL DESDE AGOSTO
DE 2017 IMPRIME UMA NOVA DINÂMICA
Em agosto de 2017, Horst
Köhler, ex-presidente da Alemanha, foi oficialmente nomeado como o
novo enviado pessoal do Secretário Geral da ONU para o Sahara
Ocidental. Ele substituiu o diplomata americano Christopher Ross, que
se deparou com a total oposição de Marrocos ao seu trabalho, sem
que o Conselho de Segurança apoiasse seus esforços com força
suficiente.
Desde o primeiro momento,
Köhler imprimiu a sua marca com duas iniciativas que Marrocos
tentou, sem sucesso, contrapor. Essas duas iniciativas responderam a
uma lógica realista:
1) a ocupação marroquina do
Sahara Ocidental teve em vista a exploração económica do
território para fazer negócios, principalmente com a União
Europeia
2) Marrocos entrou (não
"retornou") à União Africana em janeiro de 2017,
aceitando a Carta da UA que obriga a respeitar a soberania dos
Estados-Membros ... entre os quais a República Saharaui.
O
REALISTA em política era, portanto, envolver a UE e a UA na gestão
do conflito do Sahara Ocidental. E assim ele o fez. Embora Marrocos
se opusesse a este tipo de iniciativa, Köhler manteve a sua política
como o primeiro enviado pessoal a tratar com funcionários da UE e da
UA sobre o tema.
III.
A RESOLUÇÃO DO CONSELHO DE SEGURANÇA DE ABRIL DE 2018 MUDA A
TENDÊNCIA SEGUIDA DESDE 2008
A
resolução 2414 do Conselho de Segurança, de 27 de abril de 2018,
representou uma reviravolta na política seguida pelo Conselho desde
2008. Como disse neste blog, Marrocos fracassou ao tentar provocar
uma tensão artificial para impedir que os propósitos da Köhler
fossem por diante. Marrocos, longe de impedir um novo apelo a
negociações diretas com a Frente Polisario, recebeu o impacto de
uma resolução que exortava a que as negociações fossem aceleradas
ao ver reduzida para metade (6 meses) a extensão do mandato da
Missão das Nações Unidas para o Referendo do Sahara Ocidental
(MINURSO).
Se
desde 2008 o Conselho de Segurança, dominado pelos aliados da
política do Makhzen, estendia o mandato da MINURSO um ano com apelos
retóricos à negociação, em 2018 a extensão foi reduzida para 6
meses e com um aviso muito sério feito pelos EUA na explicação do
seu voto, algo deveras importante quando foram eles os próprios
redatores do texto final aprovado... o qual foi emendado de acordo
com a Rússia.
IV.
KÖHLER SE MOBILIZA E O MAKHZEN AMEAÇA... EM VÃO
Poucas
semanas após a aprovação da resolução 2414, Köhler organizou
uma viagem pela região viajando para Marrocos, Argélia, Mauritânia
e Sahara Ocidental, território que visitou em junho deslocando-se a
El Aaiún, Villa Cisneros (Dakhla) e Smara.
Para
surpresa geral, na programação do Conselho de Segurança de agosto,
a presidência britânica anunciou uma intervenção de Köhler, a 8
de agosto, solicitada pelo próprio enviado pessoal.
Dois
dias antes, a 6 de agosto, o embaixador marroquino na ONU escreveu
uma surpreendente carta ao presidente do Conselho de Segurança, na
qual considerava que Köhler estava a precipitar-se e que ele estava
fazendo uma leitura estranha dos "parâmetros" a que se
deviam cingir as negociações exigidas pelo Conselho de Segurança.
Vale a pena citar dois pontos da sua argumentação:
1)
Dizia que a proposta marroquina apresentada por Marrocos em 2007
devia ter "preeminência" sobre a proposta da Frente
Polisario apresentada na mesma data ;
2)
Dizia que a Argélia devia ser "parte" nas negociações.
V.
KÖHLER E O CONSELHO DE SEGURANÇA IGNORAM AS AMEAÇAS MARROQUINAS
A
8 de agosto, Köhler comparece perante o Conselho de Segurança. Mas
como foi revelado por um digital marroquino, não sem antes se
encontrar com John Bolton, o Conselheiro de Segurança Nacional do
presidente Donald Trump. Parece haver pouca dúvida de que Köhler e
Bolton coordenaram a sua atuação.
Como
o presidente do Conselho revelou após a reunião, Köhler anunciou
que iria enviar em Setembro convites formais às partes (Marrocos e
Frente Polisario) e aos Estados observadores vizinhos (Argélia,
Mauritânia, Espanha?) para encetar negociações diretas no final do
ano. Isso significa que Köhler, apoiado pelos EUA, ignorou
completamente as interpretações do embaixador marroquino sobre a
legalidade internacional.
VI.
E A RÚSSIA REMATA A OPERAÇÃO
Quando
o Makhzen de Marrocos emergia ainda da sua comoção, talvez
confundindo as estranhas leituras da legalidade internacional do seu
embaixador com a realidade da legalidade internacional, a operação
projetada por Köhler recebe um elogio definitivo.
Ontem,
15 de agosto, festa de Nossa Senhora da Assunção, o porta-voz do
Ministério dos Negócios Estrangeiros da Rússia, Maria Zakharova,
assestou um golpe final. Numa declaração para a imprensa divulgada
pela Sputnik, disse:
"Notamos
com satisfação que o enviado do Secretário-Geral da ONU, o
ex-presidente alemão Sr. [Horst] Köhler está ativando os esforços
para promover o processo de paz relançando as negociações diretas
sem pré-condições entre os dois protagonistas com a participação
dos vizinhos Argélia e Mauritânia como observadores ".
VII.
PERGUNTAS QUE SERÃO EM BREVE ESCLARECIDAS
1)
Que posição assumirá a diplomacia do novo Presidente do Governo
espanhol, Pedro Sánchez Pérez-Castejón?
2)
A nova invasão de imigrantes permitida pelas autoridades marroquinas
foi a tentativa de pressionar a Espanha a apoiar Marrocos neste novo
cenário?
3)
A França vai apoiar desta vez o Makhzen opondo-se aos EUA, Rússia
... e Alemanha (pátria de Köhler)?
4)
Será que o Makhzen vai conseguir impedir a retomada das negociações
diretas entre Marrocos e a Frente Polisario para resolver de uma vez
por todas o conflito no Sahara Ocidental?
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