O
que parecia ser uma simples iniciativa cultural transformou-se num
bom exemplo das ingerências marroquinas na vida pública francesa.
No
dia 30 de Outubro o Centro Nacional de Arte e Cultura Georges
Pompidou, em Paris, anunciou a apresentação numa das suas galerias
de uma mostra dedicada à questão do Sahara Ocidental, organizada
sob a supervisão do artista norte-americano Jean Lamore, e que
enquadrava a apresentação do livro Necessidade dos rostos, uma obra
coletiva da qual Lamore é um dos autores.
Compreendia
uma colecção de livros, de brochuras e de fotografias
exemplificando os caminhos da resistência saharaui — militar e
política — à ocupação marroquina assim como o dia-a-dia da
população nos territórios ocupados, marcado pela repressão
policial e a discriminação social.
“O
objectivo desta iniciativa é dar a conhecer ao público francês a
realidade da luta do povo do Sahara Ocidental” disse Lamore na
altura, numa declaração à imprensa. Das fotografias faziam parte
as que tinham sido encontradas em poder dos soldados marroquinos
feitos prisioneiros pelas forças armadas do movimento de libertação
durante o período de guerra, suspensa pelo acordo de cessar-fogo
assinado em 1991. Segundo Lamore estas fotos “contradizem a versão
oficial das autoridades marroquinas” na qual o território
ter-lhe-ia sido “restituído pacificamente pelo colonizador
espanhol”.
Segundo
declararam inicialmente os responsáveis do Centro, a exposição
permaneceria na galeria até
Julho de 2019, prevendo-se a sua inclusão no programa da
universidade de verão cuja organização é supervisionada pela
direção do Centro Georges Pompidou. No dia 10 de Novembro, porém,
Lamore foi surpreendido por aquilo que considerou uma decisão
“inqualificável”. Conforme então relatou à comunicação
social, o Centro teria suspendido a apresentação do livro e
retirado a mostra devido a pressões das autoridades e da imprensa
marroquinas.
“É
lamentável que em pleno séc. XXI, em França, obras de arte sejam
censuradas e retiradas de uma mostra em resultado da pressão de um
Estado estrangeiro. É inaceitável!”, disse o artista.
Incriminando,
em primeiro lugar, a direção do Centro, de onde partiu aliás a
iniciativa do lançamento da obra, qualificou a decisão, da qual não
foi informado, de “censura inaceitável”.
“É
uma censura inaceitável. A maneira unilateral como foi feita —
enviam-se ordens de Marrocos e Paris
verga-se — faz-me acreditar que não estamos no século XXI.
Regressámos aos séculos XIX e XVIII”.
E
era tanto mais inaceitável quando se tratava de um projeto cultural
Frisou
que foi o Centro que decidiu mostrá-lo ao público, sabendo
perfeitamente que abordava o conflito
do Sahara Ocidental. “Não viemos aqui para vender bombons ou louça
de barro mas para apresentar
um tema sensível. Há uma grande maturidade neste projeto e uma
reconhecida qualidade estética.
(. . . ). Não tive qualquer informação do Centro Pompidou sobre a
sua decisão de suspender o
projeto. Não é aceitável que uma instituição cultural se
comporte deste modo”.
“Pessoalmente
conheço muito bem a situação. Conheço o problema do Sahara
Ocidental desde há muito
tempo. Tenho uma relação profunda com o povo saharaui mas sempre
tive o cuidado de não fazer
propaganda. Não há nada de propaganda naquilo que faço. Limito-me
a apresentar factos”.
Lembrou
que foi a terceira vez na sua carreira de artista que foi objeto de
ingerências marroquinas. A primeira foi em Paris, em La Villette,
aquando de uma exposição mas a direção “manteve-se firme”
apesar da pressão do Quay d'Orsay (sede do Ministério dos Negócios
Estrangeiros francês) sob instigação de Marrocos. A segunda quando
foi excluído da Bienal de Dacar (Senegal) financiada por Marrocos.
No
dia seguinte Jean Lamore publicou uma carta aberta dirigida a Serge
Lasvignes, o presidente do
Centro Pompidou. Nela lembrou que o projeto proposto por um coletivo
informal de artistas investigadores, de que faz parte, é apoiado por
personalidades “de prestígio” como José Saramago, prémio Nobel
da Literatura, Eyal Sivan, Noam Chomsky ou Ken Loach. “É conhecido
e respeitado a nível internacional e foi sem dúvida por este motivo
que o Centro Pompidou se interessou por ele há já vários anos”.
Lembrou que a mostra em questão foi apresentada em Outubro de 2012
na Pequena Sala do Centro tendo sido depois integrada na Coleção da
Biblioteca Kandinsky e do Gabinete da fotografia, após a sua
apresentação no Beyrouth Art Center.
“Em
Outubro de 2018 fomos contactados pela Biblioteca Kandinsky a fim de
que fosse apresentado no âmbito das coleções permanentes do Centro
e tivemos o cuidado de ter uma longa troca de ideias sobre o formato
da sua apresentação a fimm de evitar toda a ambiguidade de
interpretação”.
Explicou
que o projeto conheceu um longo caminho no seu processo de
amadurecimento e resultou de
uma abordagem artística “rigorosa” e de uma “profunda ligação”
aos valores humanos. “Trata-se de
fotografias, a maioria delas anónimas, de proveniência e formato
diversos, que revelam uma guerra escondida”, disse. Inclui também
testemunhos da ocupação e imagens de satélite do muro com que as
forças marroquinas dividiram o Sahara Ocidental ao longo de mais de
2.000 km. Recordou que tinha consagrado ao muro um filme - Building
Oblivion — que foi projetado na Assembleia Nacional francesa em
2008.
O
artista denunciou as declarações do presidente do Centro Pompidou
que escreveu numa carta que
“a posição da França sobre este assunto [o Sahara Ocidental]
está gravada em mármore”. “Esta posição
é contrária ao direito internacional e à posição da ONU que
define o Sahara Ocidental como um
território não autónomo e ocupado ilegalmente por Marrocos desde
1975” disse, salientando que “valoriza
mais” as considerações de ordem ética que a intromissão de um
país que reivindica a anexação “unilateral” de um território.
Considerou
que neste caso se trata dos valores dos direitos humanos, da
liberdade de imprensa e mais geralmente da liberdade de expressão,
indicando que numerosas personalidades, jornalistas, intelectuais e
parlamentares, “se interrogam sobre este grave disfuncionamento: o
caso de um estabelecimento cultural público francês obedecer a uma
intromissão de caráter político que emana de um governo
estrangeiro”.
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