Durante um ano e sete meses, esteve presa na sua própria casa, cercada e atacada de todas as formas imagináveis pelas forças de Marrocos. A sarauí Sultana Khaya passou por Lisboa.
10 de Dezembro de 2022
Em
2020, quando a Frente Polisário declarou o regresso à luta armada,
depois de considerar que as forças marroquinas tinham violado o
cessar-fogo em vigor durante 29 anos, Sultana Khaya estava em
Espanha, onde tinha ido por razões médicas. Decidiu de imediato
voltar para Bojador, a sua cidade, no Sara Ocidental ocupado.
Marrocos aproveitou o regresso da presidente da Liga para a Defesa
dos Direitos Humanos e Protecção dos Recursos Naturais para
retaliar contra o movimento de libertação e quis fazer dela um
exemplo.
Sultana, Luaara e a mãe estiveram presas
durante 19 meses. Sem luz, sem água, sujeitas aos odores de produtos
químicos que lhes atiravam para dentro de casa, ao camião que uma
madrugada embateu contra o edifício, ao assédio e aos ataques
sexuais de polícias que lhes entravam em casa quando queriam, para
lhes levar os telefones, para lhes bater, para o que quisessem. “Mas
nós todos os dias subíamos ao telhado e içávamos a bandeira do
Sara Ocidental, e eles nunca conseguiram tirá-la, apesar de terem
tentado de tudo, camiões com gruas... Com a nossa determinação,
libertámos essa parte da nossa casa”, descreveu Sultana, sorriso
de vencedora, numa conversa na Casa do Alentejo, durante a sua
passagem recente por Lisboa.
Sultana
diz que não se importa de relembrar as memórias desses dias. Apesar
de admitir que foram duros como nada antes tinha sido, a ela que a
polícia marroquina tirou uma vista, numa manifestação. “Foi a
minha escolha. Ser activista, lutar pelo meu povo”, afirmou. De
acordo com o relatório Situação dos Direitos Humanos no SaraOcidental, publicado pela Associação de Amizade PortugalSahara-Ocidental (AAPSO), por ocasião do Dia Internacional dosDireitos Humanos, este sábado, 10 de Dezembro, a violação de
Sultana e de Luaara pela polícia marroquina aconteceu a 12 de Maio
de 2021.
“Entraram no nosso quarto, onde estávamos as
três, eu, a minha mãe e a minha irmã, tiraram-nos a roupa, e
sofremos violência sexual, com a minha mãe a ver. Apontavam bem a
lanterna para que ela visse tudo”, contou Sultana. “O pior foi
obrigarem a minha mãe a ver enquanto nos violavam”, disse. Há
outra coisa que Sultana descreve como “pior”: “Não podíamos
dormir, os químicos que nos lançavam faziam arder os olhos, não
poder dormir era terrível.”
Dar o salto
Nascida
sob ocupação, Sultana descreve a vida da sua família como a de
todos os sarauís. “Vivemos os mesmos problemas de todos, a minha
família foi separada, uma parte foi para o exílio, vive nos
acampamentos [no deserto argelino, contíguo ao Sara Ocidental,
ocupado desde 1975, e à Mauritânia], o meu pai e a minha mãe
ficaram nos territórios. O meu pai já morreu. Antes de mim e dos
meus irmãos, os meus pais também sofreram e estiveram presos”,
recordou.
Sultana fala como se tivesse nascido já activista, mas sabe bem quando é que começou a sê-lo por inteiro. “A 21 de Maio de 2005, dei o salto.” Nessa data, em Bojador, houve “uma grande manifestação contra a ocupação”, “aí começou a minha verdadeira actividade, e comigo a de toda uma geração”. Depois desse protesto, foi expulsa da sua cidade e levada para El Aaiún [que os sarauís vêem como a sua capital], daí de novo expulsa, para Smara.
Depois,
surgiu a possibilidade de fazer um curso de francês na Universidade
de Marraquexe. “Para mim, era a única maneira de continuar a
estudar e a lutar. Éramos um grupo de 500 jovens, 500 estudantes
sarauís, e organizávamos também manifestações. Ali, tínhamos
mais liberdade de movimentos do que nos territórios ocupados”,
descreveu. Em 2007, no dia 10 de Maio, data da fundação da Frente
Polisário, o movimento de libertação sarauí, fizeram uma
manifestação dentro da universidade. “Aí a polícia atacou-me e
tiraram-me um olho. Puseram-me na prisão, em Marrocos. Em vez de
prenderem o que me tirou a vista, prenderam-me a mim.”
Foi
há 15 anos, Sultana perdeu uma vista, mas a determinação com que
já lutava pelo direito do seu povo a um país só aumentou. Dois
anos depois, co-fundava a Liga para a Defesa dos Direitos Humanos,
“uma ferramenta para desafiar Marrocos”, para “ter um quadro
legal”, ainda que ilegal à luz da lei marroquina. No mesmo ano,
houve Gdeim Ikiz, quando os jovens, “a geração dos nossos
filhos”, pegaram nas suas jaimas (tendas beduínas) e ergueram um
acampamento de protesto nos arredores de El Aaiún. As tendas
chegaram a sete mil e ali estiveram entre 20 mil e 30 mil pessoas
(perto de 10% de uma população estimada entre os 200 mil e os 400
mil). “Marrocos reagiu como sempre, com violência e repressão”,
descreveu Sultana.
A partir daí, admite, o regresso à luta armada começou a ser visto como “inevitável” por muitos jovens que não vêem presente nem futuro. Mas, como os sarauís levam a resistência pacífica ao limite, o inevitável ainda demorou dez anos.
Sultana acabou por ser uma das grandes vítimas do regresso à guerra. “Fui apenas uma, as vítimas continuam, civis atingidos por drones nas zonas libertadas [do deserto argelino, onde estão as forças sarauís]”, insistiu.
No início de Junho, pôde finalmente sair e voltou a partir para Espanha. É lá que continua a tratar das marcas dos 19 meses de cativeiro, ferimentos visíveis e menos visíveis, problemas graves de circulação. Uma saída do Sara Ocidental como todas, temporária. “Voltarei à minha terra, voltarei quando terminar os tratamentos. Ainda não alcancei o meu objectivo.”
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