domingo, 11 de dezembro de 2022

Khaya: “O pior foi [os polícias marroquinos] obrigarem a minha mãe a ver enquanto nos violavam”

 


Durante um ano e sete meses, esteve presa na sua própria casa, cercada e atacada de todas as formas imagináveis pelas forças de Marrocos. A sarauí Sultana Khaya passou por Lisboa.

PÚBLICO- Sofia Lorena

10 de Dezembro de 2022


Em 2020, quando a Frente Polisário declarou o regresso à luta armada, depois de considerar que as forças marroquinas tinham violado o cessar-fogo em vigor durante 29 anos, Sultana Khaya estava em Espanha, onde tinha ido por razões médicas. Decidiu de imediato voltar para Bojador, a sua cidade, no Sara Ocidental ocupado. Marrocos aproveitou o regresso da presidente da Liga para a Defesa dos Direitos Humanos e Protecção dos Recursos Naturais para retaliar contra o movimento de libertação e quis fazer dela um exemplo.

Sultana, Luaara e a mãe estiveram presas durante 19 meses. Sem luz, sem água, sujeitas aos odores de produtos químicos que lhes atiravam para dentro de casa, ao camião que uma madrugada embateu contra o edifício, ao assédio e aos ataques sexuais de polícias que lhes entravam em casa quando queriam, para lhes levar os telefones, para lhes bater, para o que quisessem. “Mas nós todos os dias subíamos ao telhado e içávamos a bandeira do Sara Ocidental, e eles nunca conseguiram tirá-la, apesar de terem tentado de tudo, camiões com gruas... Com a nossa determinação, libertámos essa parte da nossa casa”, descreveu Sultana, sorriso de vencedora, numa conversa na Casa do Alentejo, durante a sua passagem recente por Lisboa.

Sultana diz que não se importa de relembrar as memórias desses dias. Apesar de admitir que foram duros como nada antes tinha sido, a ela que a polícia marroquina tirou uma vista, numa manifestação. “Foi a minha escolha. Ser activista, lutar pelo meu povo”, afirmou. De acordo com o relatório Situação dos Direitos Humanos no SaraOcidental, publicado pela Associação de Amizade PortugalSahara-Ocidental (AAPSO), por ocasião do Dia Internacional dosDireitos Humanos, este sábado, 10 de Dezembro, a violação de Sultana e de Luaara pela polícia marroquina aconteceu a 12 de Maio de 2021.

“Entraram no nosso quarto, onde estávamos as três, eu, a minha mãe e a minha irmã, tiraram-nos a roupa, e sofremos violência sexual, com a minha mãe a ver. Apontavam bem a lanterna para que ela visse tudo”, contou Sultana. “O pior foi obrigarem a minha mãe a ver enquanto nos violavam”, disse. Há outra coisa que Sultana descreve como “pior”: “Não podíamos dormir, os químicos que nos lançavam faziam arder os olhos, não poder dormir era terrível.”

Dar o salto
Nascida sob ocupação, Sultana descreve a vida da sua família como a de todos os sarauís. “Vivemos os mesmos problemas de todos, a minha família foi separada, uma parte foi para o exílio, vive nos acampamentos [no deserto argelino, contíguo ao Sara Ocidental, ocupado desde 1975, e à Mauritânia], o meu pai e a minha mãe ficaram nos territórios. O meu pai já morreu. Antes de mim e dos meus irmãos, os meus pais também sofreram e estiveram presos”, recordou.

Sultana fala como se tivesse nascido já activista, mas sabe bem quando é que começou a sê-lo por inteiro. “A 21 de Maio de 2005, dei o salto.” Nessa data, em Bojador, houve “uma grande manifestação contra a ocupação”, “aí começou a minha verdadeira actividade, e comigo a de toda uma geração”. Depois desse protesto, foi expulsa da sua cidade e levada para El Aaiún [que os sarauís vêem como a sua capital], daí de novo expulsa, para Smara.

Depois, surgiu a possibilidade de fazer um curso de francês na Universidade de Marraquexe. “Para mim, era a única maneira de continuar a estudar e a lutar. Éramos um grupo de 500 jovens, 500 estudantes sarauís, e organizávamos também manifestações. Ali, tínhamos mais liberdade de movimentos do que nos territórios ocupados”, descreveu. Em 2007, no dia 10 de Maio, data da fundação da Frente Polisário, o movimento de libertação sarauí, fizeram uma manifestação dentro da universidade. “Aí a polícia atacou-me e tiraram-me um olho. Puseram-me na prisão, em Marrocos. Em vez de prenderem o que me tirou a vista, prenderam-me a mim.”

Foi há 15 anos, Sultana perdeu uma vista, mas a determinação com que já lutava pelo direito do seu povo a um país só aumentou. Dois anos depois, co-fundava a Liga para a Defesa dos Direitos Humanos, “uma ferramenta para desafiar Marrocos”, para “ter um quadro legal”, ainda que ilegal à luz da lei marroquina. No mesmo ano, houve Gdeim Ikiz, quando os jovens, “a geração dos nossos filhos”, pegaram nas suas jaimas (tendas beduínas) e ergueram um acampamento de protesto nos arredores de El Aaiún. As tendas chegaram a sete mil e ali estiveram entre 20 mil e 30 mil pessoas (perto de 10% de uma população estimada entre os 200 mil e os 400 mil). “Marrocos reagiu como sempre, com violência e repressão”, descreveu Sultana.

A partir daí, admite, o regresso à luta armada começou a ser visto como “inevitável” por muitos jovens que não vêem presente nem futuro. Mas, como os sarauís levam a resistência pacífica ao limite, o inevitável ainda demorou dez anos.

Sultana acabou por ser uma das grandes vítimas do regresso à guerra. “Fui apenas uma, as vítimas continuam, civis atingidos por drones nas zonas libertadas [do deserto argelino, onde estão as forças sarauís]”, insistiu.

No início de Junho, pôde finalmente sair e voltou a partir para Espanha. É lá que continua a tratar das marcas dos 19 meses de cativeiro, ferimentos visíveis e menos visíveis, problemas graves de circulação. Uma saída do Sara Ocidental como todas, temporária. “Voltarei à minha terra, voltarei quando terminar os tratamentos. Ainda não alcancei o meu objectivo.”

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