domingo, 13 de julho de 2014

Mohamed VI reina com mão de ferro após ter evitado a Primavera Árabe




  •  Filipe VI reúne-se 2.ª e 3.ª feira em Rabat com o rei marroquino
  •  Celebra os seus 15 anos de reinado com a visita de Filipe VI
  • Abriu a mão para controlar os distúrbios, mas voltou às suas origens autoritárias
  • Persegue os dissidentes, humilha o governo dos islamitas...
  • Não os deixa sequer proibir as telenovelas


EL MUNDO - IGNACIO CEMBRERO 13/07/2014 02

Mouad Belghouate já não canta “Os Cães do Estado”, um título que aludia às forças antidistúrbios marroquinas. Apodado Lhaqed (O Devastador) o raper, de 26 anos, cumpre pena de prisão no cárcere de Oukacha em Casablanca. Como se não bastassem duas condenações anteriores, no passado dia 1 de Julho foi de novo condenado a mais quatro meses por estar embriagado na via pública e, alegadamente, ter agredido as forças da ordem. Acusações que recusa.

Lhaqued era uma das vozes mais visíveis do movimento 20 de Fevereiro (20F), que encarnou há três anos a versão marroquina da Primavera Árabe. Outros dos seus protagonistas estão também atrás das grades por delitos que, aparentemente, não têm relação com aquelas revoltas. Em meados de maio nove jovens foram condenados de uma tacada a penas até um ano de prisão.

"No que concerne aos direitos humanos em Marrocos observamos com frequência cerimónias de corta-fitas para inaugurar grandes projetos", refere Eric Goldstein, vice-diretor para o mundo árabe da ONG norte-americana Human Rights Watch. "Mas por detrás do ecrã, as autoridades continuam a deter e a prender dissidentes com acusações fabricadas, ao mesmo tempo que dispersam à cacetada manifestações pacíficas, sobretudo no Sahara Ocidental", afirma.
As sentenças punitivas "demonstram que o regime voltou às suas essências", afirma Aboubakr Jamai, ex-diretor do desaparecido semanário marroquino “Le Journal Hebdo” e agora professor de história na sede europeia de uma universidade norte-americana.
 
Manifestações em Marrocos

O rei Mohamed VI foi controlando com habilidade essa onda de protestos que, em 2011, sacudiu Marrocos e a maioria dos países árabes. Aos olhos de investidores e analistas, Marrocos é o país mais estável do norte de África. Assim o reflete, por exemplo, o índice que anualmente elaboram a fundação norte-americana “The Fund for Peace” e a revista “Foreign Policy”.

Por essa razão Marrocos é a principal aposta norte-africana da Europa, à frente da Tunísia, e evidentemente também de Espanha. O rei Filipe VI reunir-se à 2.ª e 3.º feira próximas em Rabat com Mohamed VI, uma semana antes de este cumprir o 15.º aniversário da sua entronização.

As promessas do monarca alauita no seu discurso de 9 de março de 2011: a elaboração de uma nova Constituição que transfere alguns poderes do rei para o chefe do Governo e a realização das eleições mais transparentes da sua história que deram uma curta maioria islamita desativaram a primavera árabe. Como em outros países da região, os islamitas do Partido da Justiça e do Desenvolvimento (PJD) chegaram ao Governo, em janeiro de 2012, Mas aí tudo acabou. Ao contrário do Egipto ou da Tunísia, não exerceram o poder.
 
Manifestações no Sahara Ocidental

Os 30 meses que Abdelilá Benkiran leva à frente de um Governo de coligação estão sendo um rosário de humilhações para os islamitas. Talvez a mais chamativa tenha sido a proibição pelo Ministério do Interior, em setembro de 2012, de uma concentração, numa praça de Tânger, que deveria concluir o congresso das juventudes do PJD. Benkiran ia ser o principal orador, mas o Interior alegou razões de "segurança e manutenção da ordem" e vetou a sua realização.


Há muitos outros casos de menosprezo real por Benkiran, desde as ordens dadas para investigar a corrupção policial e aduaneira no norte do país, até nomeações como a do ex-primeiro-ministro, Driss Jettou, como o presidente do Tribunal de Contas. Tudo isso sem que o governo e o seu líder tenham sido informados.


Luta pelas telenovelas

No início deste verão as impotências islâmicas foram reveladas pelo seu desespero com a programação da televisão pública que, teoricamente, está sob a tutela de seu ministro das Comunicações, Mustafa el khalfi. Este apodou no Senado as telenovelas de "abominação", especialmente as mexicanas, por serem consideradas libertinas. Deu o exemplo de um filme em que uma mulher tem um relacionamento com um empregado doméstico. "No Dia do Juízo Final não estarei pronto para assumir a responsabilidade perante Deus" destas séries, afirmou.

Dias antes, perante o plenário da Câmara de Representantes (câmara baixa), o ministro acusou os seus detratores de querer "converter Marrocos num prostíbulo mexicano" suscitando uma onda de protestos, entre as quais uma do ministério dos Negócios Estrangeiros do México. El Khalfi viu-se obrigado a retificar no Twitter.

Eneko Landaburu, que até ao ano passado foi embaixador da União Europeia em Rabat, recorda como numa ocasião Benkiran lhe disse: "Não fui eu; foi o patrão". Explicava assim, sem contrariedade alguma, que era o rei quem tinha tomado uma determinada decisão que era da sua competência. "O Governo marroquino não tem o controle efetivo das alavancas do poder", defende Bernabé López, o mais reputado dos peritos espanhóis do Magreb.

"O problema de fundo é que temos um Governo que não governa, que não aplica a Constituição de 2011 que supostamente lhe atribui mais poderes", constata num editorial Toufic Bouachrin, diretor do “Akhbar al Youm”, talvez o diário que goza de maior margem de manobra. Não está claro que, mesmo que o tivesse querido, Benkiran tivesse podido fazer outra interpretação  da Lei fundamental.

Para certos setores laicos e inclusive progressistas não lhes desgosta que o palácio real tenha posto trela curta aos barbudos, como popularmente são chamados os islamitas. "Rejeitamos que Marrocos caia na armadilha de países como o Iraque, Síria, Iémen, Líbia ou mesmo a Tunísia, onde as coisas não são ainda claras", declarava Driss Lachgar, o líder dos socialistas marroquinos, no oitavo congresso da sua juventude. O PJD é "obscurantista", denunciou.

"Se não fosse o palácio a cortar-lhes as vazas estaríamos rezando a todas horas", comenta um empresário de Casablanca que foge para a Europa quando chega o Ramadão (mês de jejum islâmico). "Acredite-me, comparada com tudo o que nos rodeia no mundo árabe, a monarquia marroquina é um mal menor para os seus súbditos e para os seus vizinhos europeus", sublinhava.

O arranque do verão coincide com a metade da legislatura que, em Marrocos dura 5 anos. A imprensa que não pertence a partidos políticos faz um balanço muito negativo destes primeiros 30 meses de Benkiran. "O programa que consiste em lutar contra a corrupção está paralisado (...)", afirma em editorial Bouachrin. "A reforma da Justiça continua a ser uma promessa", recorda.

"A liberdade de imprensa retrocedeu com este Governo", realça ainda o diretor do ”Akhbar al Youm”. Bekiran " deixou que os centros de poder, da segurança, das finanças ou da Justiça ajustem contas com a imprensa independente e, por isso, irrita", prossegue sem explicar de quem dependem esses censores. "A imprensa independente e valente desapareceu neste país excepto alguns meios que continuam lutando contra ventos e marés", lamenta-se.

Ali Anouzla, o jornalista mais crítico do sistema, está em liberdade condicional desde outubro, acusado de apologia do terrorismo e colaboração com grupo terrorista, por ter “linkado” um artigo do seu diário digital “Lakome” ao blog jornalístico “Orilla Sur” em que foi divulgado o primeiro vídeo do ramo norte-africano da Al-Qaeda em Marrocos. O seu diário periódico digital, o terceiro mais lido em Marrocos, foi fechado e ele corre o risco de ser condenado a 20 anos de prisão. Outro jornalista, Mustafa Hassnaoui, cumpre uma condenação de quatro anos de prisão efetiva.

Fomenta-se o descrédito dos islâmicos moderados para, segundo Bernabé López, "derrubar em futuras eleições o partido que tem servido para fazer uma transição sui generis". Quando o PJD perder nas urnas, o Makhzen – como é designado todos os centros de poder próximos do rei - pode definitivamente virar a página da primavera marroquina. Talvez seja então que o Partido da Autenticidade e Modernidade (PAM), criado em 2008 por um amigo do monarca, Fouad Ali el Himma, assuma o cargo da chefia do governo. A julgar pelas suas investidas, Benkiran considera o PAM como o seu principal adversário.

Por muito mau que seja o balanço islamita – há apenas unanimidade em reconhecer a Benkiran o mérito de ter baixado o défice orçamental de 7% para 5%... - não é claro que os marroquino o venham a sancionar nas urnas dentro de dois anos. "Muitos marroquinos pensam que não se lhes tem deixado governar", defende Eneko Landaburu.

Há, portanto, que lhes dar uma segunda oportunidade quando houver de novo que ir votar. E é inclusive possível que nas zonas rurais, onde ainda reside 45% da população, consigam ainda mais votos. A sua passagem pelo Governo permitiu ao PJD dar-se a conhecer no campo onde os funcionários do Interior incentivam a população a secundar os partidos artificiais. Talvez não seja tão fácil afinal virar toda a página da Primavera Árabe.




O rei não conhece "Orientalismos"


"Aproveito esta feliz ocasião para dizer a Vossa Majestade quanto me orgulham os vínculos de sólida amizade e consideração mútua que nos unem (...)". Mohamed VI, Rei de Marrocos, prometia felicidades ao rei Filipe VI no telegrama de congratulações que lhe enviou há três semanas. O novo rei da Espanha irá começar na segunda-feira a sua primeira viagem a Marrocos. Compartilhará com o monarca alauita um "Ftour 'ou jantar de quebra do jejum durante o mês do Ramadão.
Apesar da receção calorosa, parte com uma desvantagem em relação a D. Juan Carlos. Seu pai era um mestre em lidar com dirigentes árabes. Sabia que não podia abordar qualquer questão sensível até ao final da conversa; sabia que um "não" tinha tantas ‘nuances’ que até poderia converter-se num "sim". Ajudou as empresas espanholas a fazer grandes contratos, o último dos quais o AVE [combóio de alta velocidade] no deserto da Arábia Saudita. "Filipe VI é como sua mãe, Dona Sofia, educada num colégio interno alemão; não sabe sintonizar-se com os costumes dos povos "orientais", lembra um diplomata que viajou com ele. Seu pai tentou aproximá-lo a essa cultura.


Em 1985, quando tinha 16 anos, enviou-o às celebrações da entronização do Sultão Qabus, do Omã. "Mas eu não vi empatia", frisa o funcionário. A última vez que esteve em Marrocos foi em 2012 para inaugurar um fórum de negócios em Casablanca. Com Marrocos, mais que contratos, Don Juan Carlos conseguiu fazer baixar a tensão sempre que a sua ajuda era solicitada. O presidente de governo Jose Luis Rodriguez Zapatero pediu a sua contribuição para resolver o bloqueio da fronteira de Melilla, em 2010. Um telefonema seu ao monarca alauita acabou com o problema. Obterá Filipe VI os mesmos resultados quando ocorrerem fricções?

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