quinta-feira, 1 de janeiro de 2015

O 25 de Abril em Portugal, o Sahara, a CIA, o Borbon e a “exemplar” Transição



O 25 de abril de 1974, a Revolução dos Cravos em Portugal faz soar os alarmes da CIA e converte a península Ibérica num centro de atenção especial dos serviços de inteligência norte-americanos. Ao mesmo tempo, a ditadura militar de Grécia colapsa; a saúde de Franco se debilita e o futuro de Espanha também parece incerto, e em Itália, os comunistas encontram-se mais perto do que nunca de participar num Governo nacional. O desenvolvimento incontrolado da revolução portuguesa pode resultar na perda da base norte-americana das Lajes, nos Açores. E essa instalação é vital para a Força Aérea dos Estados Unidos: durante a guerra do Yon Kippur, em 1973, nenhum outro país da OTAN, exceto Portugal, permitiu abastecer os aviões norte-americanos que se dirigiam para Israel.
 
“Eu não podia imaginar Ford, Kissinger e seus aliados europeus, observando tranquilamente o desenrolar da revolução em Portugal”, escreve Philip Agee no seu livro “Acoso y Fuga: con la CIA en los talones”. Este país era membro fundador da OTAN, prova de que, depois da Segunda Guerra Mundial, Washington tinha estado disposta a abraçar qualquer país desde que fosse anticomunista”.

25 Abril 1974: Revolução dos Cravos em Portugal

Vernon Walters

Em agosto de 1974, o tenente-general Vernon Walters, diretor adjunto da CIA, visita Portugal para avaliar a situação. E poucas semanas mais tarde tem lugar “Manifestação da Maioria Silenciosa” do general Spínola e o falhado contragolpe encabeçado por este general a 28 de setembro. Antonio de Spínola era um homem ligado à CIA, abertamente anticomunista, esteve em Espanha, durante a Guerra Civil, com as colunas portuguesas que apoiaram Franco.

General português António Spínola

Alguns dos acontecimentos que se começam a produzir em Lisboa para desestabilizar o Governo da Revolução são a repetição de acontecimentos já conhecidos: no Brasil, dez anos antes, Walters ocupava o cargo de adido militar da Embaixada dos Estados Unidos no Rio de Janeiro, e o seu papel foi chave para ajudar a que se forjasse o golpe de Estado contra o regime constitucional do Presidente Goulart. Entre as operações mais eficazes destinadas a provocar o levantamento militar, destacaram-se as grandes manifestações de rua realizadas contra o Governo, muito parecidas com a que Spínola pretendia promover em Portugal.

Embaixador dos EUA em Lisboa Frank Carlucci

A CIA envia a Lisboa, como embaixador, um dos seus homens fortes, Frank Carlucci, com a missão de se envolver a fundo até que fosse conseguido neutralizar o processo sócio-político desencadeado a 25 de abril, iniciado desde que soaram na rádio os primeiros acordes da “Grândola vila morena”. Para que não haja dúvidas sobre o envolvimento direto da Agência nos assuntos internos de Portugal, Carlucci será posteriormente promovido a diretor de operações secretas da CIA, cargo que ocupará com Ford e Carter. Carlucci mantem uma relação muito direta com o futuro secretário de Defesa Caspar Weinberger e Donald Rumsfeld, então chefe de gabinete de Gerald Ford. No final de 1975, a CIA consegue derrubar o governo de esquerda de Vasco Gonçalves e ascende ao poder um dos homens controlados pelos Estados Unidos, Mário Soares.

Enquanto isso, em Espanha continua a incerteza política. A saúde de Franco deteriora-se rapidamente e o seu desaparecimento físico parece eminente. Aproveitando a delicada situação que vive o Regime nessas horas, o omnipresente Walters aparece também para dar uma mão ao seu velho amigo Hassan II. Não é em vão que o jornalista Bod Woodward descreve Vernon Walters como o representante do monarca alauita na CIA.

A ANEXAÇÂO do SAHARA

 Desde os tempos do desembarque norte-americano nas suas costas, durante a II Guerra Mundial, Marrocos foi sempre considerado um aliado primordial pelos Estados Unidos. As alterações provocadas pela influência da revolução portuguesa, que põe em perigo a base dos Açores, convertem num lugar geoestratégico especialmente sensível toda essa zona do Atlântico tão próxima do Estreito de Gibraltar. Além disso, investigações realizadas durante os primeiros anos da década de 70 demonstram que se pode obter urânio através do ácido fosfórico procedente do fosfato. E o Sahara Ocidental é o principal produtor do mundo deste mineral. Tampouco há que desdenhar, em termos de futuro, a importância das suas reservas petrolíferas.

Hassan II com o secretário de Estado dos EUA, Henry Kissinger

Nessas circunstâncias, o diretor adjunto da CIA começa a manobrar em favor de Marrocos, para que Hassan II se apodere do que, até esse momento, havia sido o Sahara espanhol. E começa a congeminar-se a “Marcha Verde”. O Monde Diplomatique, na sua edição em língua inglesa, publicou em 2005 um artigo, sustentado em documentos desclassificados dos arquivos dos EUA, em que se chega à conclusão de que a apropriação do Sahara por parte de Marrocos, em 1975, tem êxito graças à intervenção dos Estados Unidos a seu favor. Num destes documentos, enviado pelo diretor da CIA, William E. Colby, a Kissinger refere-se que há que tentar, a todo o custo, “controlar a reação contrária a Marrocos que vão provocar em Haya [Tribunal Internacional de Justiça] as suas reivindicações sobre o Sahara Ocidental”. E acrescenta: “É possível que Hassan II tenha chegado à conclusão de que uma intervenção armada espanhola contra a sua invasão do Sahara provoque uma mediação internacional favorável aos seus interesses”.


Marcha Verde: uma encenação digna de Hollywood: os »figurantes»... 

Está claro que todos consideram os integrantes da “Marcha Verde” exclusivamente carne de canhão. O artigo do Le Monde Diplomatique cita outro documento desclassificado em que Kissinger, depois de se reunir com o presidente Gerald Ford e com o Conselheiro para os Assuntos Europeus, Arthur Hartman, afirma: “Há que levar o tema à ONU, mas com a garantia de que o Sahara passe para Marrocos”.

Enquanto o secretário-geral da ONU, Kurt Waldheim, visita os países implicados no processo de autodeterminação do Sahara, Marrocos, nas suas costas, urde, juntamento com os Estados Unidos, uma estratégia para se apropriar do território. O eixo da atuação sobre o terreno consiste em lançar uma gigantesca coluna de civis marroquinos que se introduza no território saharaui. Paralelamente, as pressões políticas exercidas pelos Estados Unidos devem fazer desistir as tropas espanholas de utilizar a força para defender as suas posições.

... são «carne de canhão»

A “marcha” é desenhada por agentes dos serviços de inteligência norte-americanos num gabinete de estudos estratégicos situado em Londres e financiado pelo Kuwait. O secretário de Estado norte-americano, Henry Kissinger, é quem dá o visto bom à operação. Hassan II encarrega o seu secretário de Defesa, o coronel Achakbar da supervisão dos trabalhos. O monarca marroquino assume, imperturbável, que em caso de se vir a despoletar a violência, podem produzir-se até 30.000 baixas entre os seus súbditos integrantes da “marcha”.

A 21 de agosto de 1975, Kissinger encontra-se em Jerusalém quando recebe a confirmação de que o projeto está pronto. Quase dois meses antes do Tribunal de Haya se pronunciar, o secretário de Estado norte-americano conclui a entrega do Sahara a Marrocos com um telegrama remitido a Rabat desde a embaixada dos Estados Unidos em Beirute. “Laissa poderá andar perfeitamente dentro de dois meses. Ele o ajudará em tudo”, diz o texto. “Laissa” é nome de código da “Marcha Branca” que se estava preparando e que dois meses depois Hassán II lançará com o nome de “Marcha Verde”. “Ele” são os Estados Unidos.

O PRÍNCIPE HERDEIRO E O seu “IRMÃO MAIS VELHO”

A 2 de novembro, com Franco agonizante já de forma irreversível, Marrocos ameaça com uma invasão pacífica do Sahara Ocidental, um território a quem [Espanha] havia adjudicado, há alguns anos, a condição de província espanhola de pleno direito. O Príncipe Juan Carlos, em funções de Chefe de Estado, realiza uma visita relâmpago a El Aaiún para falar com os altos comandos militares espanhóis e comunica-lhes a decisão de abandonar o território. Do outro lado está Hassan II, a quem ele considera um “irmão mais velho” e com quem vai a manter uma estreita relação até à sua morte.

Príncipe Juan Carlos: Abandonar o território...

Vernon Walters reconhece, no seu livro “Silent Missions”, que ajudou o príncipe Juan Carlos e Hassan II a negociar a retirada das tropas espanholas do Sahara e a posterior anexão da ex- “província” espanhola.

Os norte-americanos aumentam o fornecimento de armas e munições a Marrocos logo que começam a produzir-se as primeiras tensões na zona. Além disso, para não aparecerem como claros impulsionadores de uma guerra de anexão, utilizam um mecanismo complementar para apoiar belicamente Hassan II: a transferência de armas através de países amigos. Como a Jordânia, que envia a Marrocos 26 aviões F-54, em maio de 1976; e 16 morteiros de 155 mm em outubro. Mais adiante, com a Administração Reagan, essa ajuda se incrementa de forma notável. O secretário de Defesa Caspar Weinberger autoriza o envio de armamento “sem limite” para acabar com a “rebelião” no Sahara e 30 instrutores norte-americanos começam a formar os pilotos marroquinos em táticas antimíssil. Em outubro de 1981, Vernon Walters visita Rabat para reafirmar a Hassan II o apoio dos EUA à sua política de anexão.





Durante o Conselho de ministros de 17 de outubro de 1975, o Governo de Arias Navarro decide abandonar o Sahara. Ante o eminente falecimento de Franco, elude os seus compromissos internacionais de apoio à autodeterminação do Sahara e cede ante as pretensões de Marrocos, que goza do apoio total do Império neste conflito. Nessas circunstâncias, a debilidade do regime de Franco, cujos pupilos estão já centrados em como conduzir a Transição, propicia a rápida assinatura de um tratado em Madrid com Marrocos e a Mauritânia, em novembro de 1975. Ao mesmo tempo que o Príncipe visita as tropas acantonadas no deserto saharaui, o seu administrador privado, Manuel de Prado y Colón de Carvajal, reúne-se com o secretário de Estado Henry Kissinger. “À incapacidade do ditador haveria que juntar as informações que indicam que o Príncipe Juan Carlos teria negociado com a CIA a retirada espanhola”, escreve Antonio Díaz Fernández, no seu livro “Los servicios de inteligencia españoles. Desde la guerra civil hasta el 11-M”.

Povo saharaui: o abandono da Espanha e a invasão marroquina levou à separação de famílias, à fuga e ao exílio

O Tratado de Madrid envolve a transferência da administração do Sahara para Marrocos e a Mauritânia, com um vago compromisso para que as novas potências administradoras do território procedam mais tarde à sua descolonização. Em princípios de 1976, quando as tropas espanholas abandonam o Sahara, inicia-se uma guerra de resistência da Frente POLISARIO, apoiada pela Argélia, que impede uma dominação estável marroquina e provoca a retirada da Mauritânia em 1979. A maior parte dos militares espanhóis que serviram no Sahara consideraram o seu abandono definitivo às mãos de Marrocos uma traição ao povo saharaui, que [39 anos depois], ainda não é dono do seu próprio território.

(*) jornalista de investigação espanhol nascido em Madrid, em 1956. É licenciado em Ciências da Informação pela Universidade Complutense. Autor do libro a “La CIA en España”.


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