terça-feira, 18 de dezembro de 2018

CENTRO POMPIDOU: A CENSURA “GRAVADA EM MÁRMORE”




O que parecia ser uma simples iniciativa cultural transformou-se num bom exemplo das ingerências marroquinas na vida pública francesa.

No dia 30 de Outubro o Centro Nacional de Arte e Cultura Georges Pompidou, em Paris, anunciou a apresentação numa das suas galerias de uma mostra dedicada à questão do Sahara Ocidental, organizada sob a supervisão do artista norte-americano Jean Lamore, e que enquadrava a apresentação do livro Necessidade dos rostos, uma obra coletiva da qual Lamore é um dos autores.

Compreendia uma colecção de livros, de brochuras e de fotografias exemplificando os caminhos da resistência saharaui — militar e política — à ocupação marroquina assim como o dia-a-dia da população nos territórios ocupados, marcado pela repressão policial e a discriminação social.

“O objectivo desta iniciativa é dar a conhecer ao público francês a realidade da luta do povo do Sahara Ocidental” disse Lamore na altura, numa declaração à imprensa. Das fotografias faziam parte as que tinham sido encontradas em poder dos soldados marroquinos feitos prisioneiros pelas forças armadas do movimento de libertação durante o período de guerra, suspensa pelo acordo de cessar-fogo assinado em 1991. Segundo Lamore estas fotos “contradizem a versão oficial das autoridades marroquinas” na qual o território ter-lhe-ia sido “restituído pacificamente pelo colonizador espanhol”.

Segundo declararam inicialmente os responsáveis do Centro, a exposição permaneceria na galeria até Julho de 2019, prevendo-se a sua inclusão no programa da universidade de verão cuja organização é supervisionada pela direção do Centro Georges Pompidou. No dia 10 de Novembro, porém, Lamore foi surpreendido por aquilo que considerou uma decisão “inqualificável”. Conforme então relatou à comunicação social, o Centro teria suspendido a apresentação do livro e retirado a mostra devido a pressões das autoridades e da imprensa marroquinas.

“É lamentável que em pleno séc. XXI, em França, obras de arte sejam censuradas e retiradas de uma mostra em resultado da pressão de um Estado estrangeiro. É inaceitável!”, disse o artista.
Incriminando, em primeiro lugar, a direção do Centro, de onde partiu aliás a iniciativa do lançamento da obra, qualificou a decisão, da qual não foi informado, de “censura inaceitável”.
“É uma censura inaceitável. A maneira unilateral como foi feita — enviam-se ordens de Marrocos e Paris verga-se — faz-me acreditar que não estamos no século XXI. Regressámos aos séculos XIX e XVIII”.

E era tanto mais inaceitável quando se tratava de um projeto cultural

Frisou que foi o Centro que decidiu mostrá-lo ao público, sabendo perfeitamente que abordava o conflito do Sahara Ocidental. “Não viemos aqui para vender bombons ou louça de barro mas para apresentar um tema sensível. Há uma grande maturidade neste projeto e uma reconhecida qualidade estética. (. . . ). Não tive qualquer informação do Centro Pompidou sobre a sua decisão de suspender o projeto. Não é aceitável que uma instituição cultural se comporte deste modo”.

“Pessoalmente conheço muito bem a situação. Conheço o problema do Sahara Ocidental desde há muito tempo. Tenho uma relação profunda com o povo saharaui mas sempre tive o cuidado de não fazer propaganda. Não há nada de propaganda naquilo que faço. Limito-me a apresentar factos”.

Lembrou que foi a terceira vez na sua carreira de artista que foi objeto de ingerências marroquinas. A primeira foi em Paris, em La Villette, aquando de uma exposição mas a direção “manteve-se firme” apesar da pressão do Quay d'Orsay (sede do Ministério dos Negócios Estrangeiros francês) sob instigação de Marrocos. A segunda quando foi excluído da Bienal de Dacar (Senegal) financiada por Marrocos.

No dia seguinte Jean Lamore publicou uma carta aberta dirigida a Serge Lasvignes, o presidente do Centro Pompidou. Nela lembrou que o projeto proposto por um coletivo informal de artistas investigadores, de que faz parte, é apoiado por personalidades “de prestígio” como José Saramago, prémio Nobel da Literatura, Eyal Sivan, Noam Chomsky ou Ken Loach. “É conhecido e respeitado a nível internacional e foi sem dúvida por este motivo que o Centro Pompidou se interessou por ele há já vários anos”. Lembrou que a mostra em questão foi apresentada em Outubro de 2012 na Pequena Sala do Centro tendo sido depois integrada na Coleção da Biblioteca Kandinsky e do Gabinete da fotografia, após a sua apresentação no Beyrouth Art Center.

“Em Outubro de 2018 fomos contactados pela Biblioteca Kandinsky a fim de que fosse apresentado no âmbito das coleções permanentes do Centro e tivemos o cuidado de ter uma longa troca de ideias sobre o formato da sua apresentação a fimm de evitar toda a ambiguidade de interpretação”.

Explicou que o projeto conheceu um longo caminho no seu processo de amadurecimento e resultou de uma abordagem artística “rigorosa” e de uma “profunda ligação” aos valores humanos. “Trata-se de fotografias, a maioria delas anónimas, de proveniência e formato diversos, que revelam uma guerra escondida”, disse. Inclui também testemunhos da ocupação e imagens de satélite do muro com que as forças marroquinas dividiram o Sahara Ocidental ao longo de mais de 2.000 km. Recordou que tinha consagrado ao muro um filme - Building Oblivion — que foi projetado na Assembleia Nacional francesa em 2008.

O artista denunciou as declarações do presidente do Centro Pompidou que escreveu numa carta que “a posição da França sobre este assunto [o Sahara Ocidental] está gravada em mármore”. “Esta posição é contrária ao direito internacional e à posição da ONU que define o Sahara Ocidental como um território não autónomo e ocupado ilegalmente por Marrocos desde 1975” disse, salientando que “valoriza mais” as considerações de ordem ética que a intromissão de um país que reivindica a anexação “unilateral” de um território.

Considerou que neste caso se trata dos valores dos direitos humanos, da liberdade de imprensa e mais geralmente da liberdade de expressão, indicando que numerosas personalidades, jornalistas, intelectuais e parlamentares, “se interrogam sobre este grave disfuncionamento: o caso de um estabelecimento cultural público francês obedecer a uma intromissão de caráter político que emana de um governo estrangeiro”.

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