quarta-feira, 14 de maio de 2014

Marrocos: Ali Aarrass, o Calvário do Inocente



Foi espancado, queimado com pontas de cigarros e violado com garrafas até confessar ter cometido um crime do qual tinha sido ilibado. Depois de ter sido considerado inocente em Espanha, Ali Aarrass foi extraditado para Marrocos, onde, sob tortura, admitiu fazer parte de um grupo com propósitos terroristas.

Por Tiago Carrasco – revista de maio da Amnistia Internacional – Portugal

O longo calvário de Ali Aarrass começou em 2006, quando a Polícia espanhola o começou a investigar por suspeitas de práticas terroristas. Ali, então com 44 anos, tinha uma vida pacífica: nascera em Melilla, um enclave espanhol em território marroquino, mudara-se com 15 anos para a Bélgica, país que lhe concedeu a cidadania, mas, em 2005, decidira regressar à cidade natal com a mulher e a filha, a fim de ajudar o pai nos seus últimos anos de vida. Para isso, abriu uma mercearia. Nada fazia prever que fosse alvo de investigação. “O meu irmão Ali nunca teve uma opinião política, considerava a política como algo negativo. Também jamais pertenceu a qualquer grupo. Era uma espécie de eletrão livre que dedicava a atenção à família e aos amigos. Era conhecido pela sua generosidade e honradez”, diz Farida Aarrass, irmã de Ali e principal defensora da sua inocência.



Porém, em 2008, respondendo a um pedido de extradição de Marrocos, as autoridades espanholas decidiram prendê-lo. Durante 32 meses. Ali foi mantido em cativeiro, em solitária, de nada lhe valendo que a investigação liderada pelo juiz espanhol Baltazar Garzón fechasse o caso, em 2009, sem qualquer prova contra ele. A 14 de dezembro de 2010, as autoridades espanholas, ignorando os alertas do Comité dos Direitos Humanos das Nações Unidas e da Amnistia Internacional para a possibilidade de julgamento injusto e práticas de tortura, entregaram Ali Aarrass aos serviços de Inteligência marroquinos. Nesse momento, o calvário, que já tinha sido demasiado longo, tornou-se ainda mais doloroso.

“Levaram o meu irmão para um centro de detenção secreto, na zona de Témara, perto de Rabat. Ninguém soube do seu paradeiro durante 12 dias. Hoje sabemos que foi vítima de vários tipos de tortura por parte da DST (Direção de Vigilância do Território)”, diz Farida. “Foi pendurado pelos punhos e pelos tornozelos ao teto e espancado até perder a consciência, foi queimado com pontas de cigarros, aplicaram-lhe choques elétricos nas orelhas e nos testículos, tentaram afogá-lo, violaram-no com garrafas até lhe causarem lesões no ânus e ameaçaram raptar a sua filha, de 4 anos, e violá-la à sua frente”. Durante estas sessões de interrogatório sob tortura, Ali terá sido coagido a assinar a confissão do seu crime. “ Os documentos até estão escritos em árabe clássico, idioma que ele não sabe ler, uma vez que nós somos do Rif e fomos educados por freiras católicas. Nunca vivemos em Marrocos”, diz Farida. “Isso é só mais uma evidência que a confissão foi feita para pôr fim à tortura”. Ali confessou fazer parte de uma rede de tráfico de armas da Bélgica até Marrocos. A sentença, baseada meramente na confissão feita diante dos carrascos, foi de 15 anos de prisão, atenuada para 12 anos após recurso, por uso ilegal de armas e participação num grupo com intenções terroristas.



A história de Ali Aarrass encontra paralelos com a de muitas outras pessoas em Marrocos. “Qualquer um pode ser vítima de tortura em Marrocos, mas há uma tendência para a usarem contra aqueles que se tornam como que uma ameaça à segurança nacional, como suspeitos de terrorismo e ativistas pela autodeterminação da região separatista do Sahara Ocidental” – diz Sirine Rached, investigadora da Amnistia Internacional para o Norte de África. “Temos queixas de estudantes, manifestantes, ativistas dos direitos humanos, membros da oposição e suspeitos de terrorismo, mas também suspeitos de delitos comuns, como uso e tráfico de droga”. São variadas as técnicas denunciadas nessas queixas; “Desde espancamentos, incluindo pancadas na cabeça, até espalharem fezes na cara dos interrogados, passando por crimes de cariz sexual, como violações ou forçarem-nos a ficar nus e vendados nas celas”, conta a investigadora.


Entretanto, o calvário de Ali Aarrass continua. Encontra-se detido na prisão de Salé II, nas imediações de Rabat. E, apesar da pressão da comunidade internacional que pede uma investigação ao seu caso, as condições humanitárias em que Ali vive permanecem miseráveis, como se pode constatar nestes excertos da carta enviada pelo presidiário a Alain Van Gucht, cônsul belga em Marrocos, datada de 17 de fevereiro deste ano:

“Sr. Cônsul, eu, Ali Aarrass, informo-o de que, na atualidade, continuam a maltratar-me, a ameaçar-me, a acusar-me e proíbem-me dormir (…). Privam-me do correio. Impedem-me de escrever à minha família e aos meus advogados (…) encontro-me submetido diariamente a uma forma de humilhação degradante e psicologicamente destrutiva (…) não recebi qualquer cuidado médico, a minha saúde agrava-se cada vez mais, tanto física como mentalmente (…) eles tornam a vida impossível”.    

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