Foi
espancado, queimado com pontas de cigarros e violado com garrafas até confessar
ter cometido um crime do qual tinha sido ilibado. Depois de ter sido
considerado inocente em Espanha, Ali Aarrass foi extraditado para Marrocos,
onde, sob tortura, admitiu fazer parte de um grupo com propósitos terroristas.
Por Tiago
Carrasco – revista de maio da Amnistia Internacional – Portugal
O longo
calvário de Ali Aarrass começou em 2006, quando a Polícia espanhola o começou a
investigar por suspeitas de práticas terroristas. Ali, então com 44 anos, tinha
uma vida pacífica: nascera em Melilla, um enclave espanhol em território
marroquino, mudara-se com 15 anos para a Bélgica, país que lhe concedeu a
cidadania, mas, em 2005, decidira regressar à cidade natal com a mulher e a
filha, a fim de ajudar o pai nos seus últimos anos de vida. Para isso, abriu
uma mercearia. Nada fazia prever que fosse alvo de investigação. “O meu irmão
Ali nunca teve uma opinião política, considerava a política como algo negativo.
Também jamais pertenceu a qualquer grupo. Era uma espécie de eletrão livre que
dedicava a atenção à família e aos amigos. Era conhecido pela sua generosidade
e honradez”, diz Farida Aarrass, irmã de Ali e principal defensora da sua
inocência.
Porém, em
2008, respondendo a um pedido de extradição de Marrocos, as autoridades
espanholas decidiram prendê-lo. Durante 32 meses. Ali foi mantido em cativeiro,
em solitária, de nada lhe valendo que a investigação liderada pelo juiz
espanhol Baltazar Garzón fechasse o caso, em 2009, sem qualquer prova contra
ele. A 14 de dezembro de 2010, as autoridades espanholas, ignorando os alertas
do Comité dos Direitos Humanos das Nações Unidas e da Amnistia Internacional
para a possibilidade de julgamento injusto e práticas de tortura, entregaram
Ali Aarrass aos serviços de Inteligência marroquinos. Nesse momento, o
calvário, que já tinha sido demasiado longo, tornou-se ainda mais doloroso.
“Levaram o
meu irmão para um centro de detenção secreto, na zona de Témara, perto de
Rabat. Ninguém soube do seu paradeiro durante 12 dias. Hoje sabemos que foi
vítima de vários tipos de tortura por parte da DST (Direção de Vigilância do
Território)”, diz Farida. “Foi pendurado pelos punhos e pelos tornozelos ao
teto e espancado até perder a consciência, foi queimado com pontas de cigarros,
aplicaram-lhe choques elétricos nas orelhas e nos testículos, tentaram afogá-lo,
violaram-no com garrafas até lhe causarem lesões no ânus e ameaçaram raptar a
sua filha, de 4 anos, e violá-la à sua frente”. Durante estas sessões de
interrogatório sob tortura, Ali terá sido coagido a assinar a confissão do seu
crime. “ Os documentos até estão escritos em árabe clássico, idioma que ele não
sabe ler, uma vez que nós somos do Rif e fomos educados por freiras católicas.
Nunca vivemos em Marrocos”, diz Farida. “Isso é só mais uma evidência que a
confissão foi feita para pôr fim à tortura”. Ali confessou fazer parte de uma
rede de tráfico de armas da Bélgica até Marrocos. A sentença, baseada meramente
na confissão feita diante dos carrascos, foi de 15 anos de prisão, atenuada
para 12 anos após recurso, por uso ilegal de armas e participação num grupo com
intenções terroristas.
A história
de Ali Aarrass encontra paralelos com a de muitas outras pessoas em Marrocos. “Qualquer
um pode ser vítima de tortura em Marrocos, mas há uma tendência para a usarem
contra aqueles que se tornam como que uma ameaça à segurança nacional, como
suspeitos de terrorismo e ativistas pela autodeterminação da região separatista
do Sahara Ocidental” – diz Sirine Rached, investigadora da Amnistia
Internacional para o Norte de África. “Temos queixas de estudantes,
manifestantes, ativistas dos direitos humanos, membros da oposição e suspeitos
de terrorismo, mas também suspeitos de delitos comuns, como uso e tráfico de
droga”. São variadas as técnicas denunciadas nessas queixas; “Desde
espancamentos, incluindo pancadas na cabeça, até espalharem fezes na cara dos
interrogados, passando por crimes de cariz sexual, como violações ou
forçarem-nos a ficar nus e vendados nas celas”, conta a investigadora.
Entretanto,
o calvário de Ali Aarrass continua. Encontra-se detido na prisão de Salé II,
nas imediações de Rabat. E, apesar da pressão da comunidade internacional que
pede uma investigação ao seu caso, as condições humanitárias em que Ali vive
permanecem miseráveis, como se pode constatar nestes excertos da carta enviada
pelo presidiário a Alain Van Gucht, cônsul belga em Marrocos, datada de 17 de
fevereiro deste ano:
Sem comentários:
Enviar um comentário